Carolina Peters e Raquel Mattos
O golpe em curso no país tem sido qualificado por diversas análises como um golpe patriarcal. As implicações de tal apontamento são muito mais profundas do que o peso simbólico da derrocada da primeira mulher eleita presidenta da República e a extinção das secretarias de Políticas para as Mulheres e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, já escanteadas pelo governo agonizante. Afastada do mandato sob o coro misógino de manifestantes e congressistas, ecoado pela mídia monopolista, o linchamento de Dilma e outras mulheres públicas é uma tentativa de calar as tantas vozes femininas que ocupam o espaço político em defesa de direitos. Apenas uma faceta do movimento do capital brasileiro para retomar seu processo de acumulação através da superexploração dos trabalhos das mulheres.
Nos últimos anos, os movimentos de mulheres se caracterizaram como uma das mais ativas forças políticas na conjuntura brasileira. Junto às centrais sindicais, as feministas travaram um importante batalha contra o Projeto de Lei 4330, que prevê a flexibilização dos direitos trabalhistas ampliando a terceirização, regime no qual a maioria das contratadas são mulheres. As Marchas das Margaridas, levando as reivindicações das trabalhadoras do campo, e a Marcha Nacional de Mulheres Negras, que reuniu mais de dez mil pessoas pela luta antirracista em novembro passado, pararam Brasília e confrontaram corpo-a-corpo a violência fascista. O número expressivo de estudantes engajadas na defesa da educação pública, conduzindo ocupações em escolas, é um pequeno expoente do crescente ganho de consciência entre as jovens mulheres de nossa condição de oprimidas.
No enfrentamento ao pior do conservado rismo, representado pelo gângster Eduardo Cunha à frente da Câmara dos Deputados e seu PL 5069, projeto em tramitação que visa proibir o atendimento integral e de urgência a mulheres vítimas de estupro e restringir o acesso à contracepção de emergência (pílula do dia seguinte), floresceu uma primavera de lutas das mulheres, que pretende perdurar apesar da repressão e das tentativas de cooptação pelo mercado.
Como um dos setores mais vulneráveis dentro da sociedade de opressão-exploração, binômio usado pela socióloga brasileira Heleieth Saffioti para expressar a indissociável relação entre a opressão machista e apropriação do trabalho reprodutivo feminino pelo sistema de exploração capitalista, o impacto da crise sobre as mulheres é particularmente brutal. Isso é perceptível desde as primeiras notas do ajuste fiscal, as medidas provisórias 664 e 665, ainda sob a batuta de Dilma e seu ministro Joaquim Levy. Entre outras coisas, as medidas restringiam o acesso ao seguro-desemprego num país onde, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas representam o segundo segmento social com maior taxa de desocupação, atrás da juventude; e alteravam as condições para recebimento da pensão por morte, cuja maioria de beneficiárias é mulher, reduzindo seu valor em até 50%.
A posse ilegítima de Michel Temer e a indicação controversa de seu “machistério”, como ficou conhecido o gabinete devido à ausência de indicações de mulheres para o cargo de ministras, coisa que não ocorria desde a ditadura civil-militar, são a lufada de naftalina que empolga a elite ainda desgostosa com as conquistas populares da Constituição de 88 e os avanços sociais dos últimos anos, como a Emenda Constitucional nº 72, que assegura direitos às trabalhadoras domésticas, promulgada em abril de 2013.
Das páginas de um semanário conservador, emerge a antagonista idealizada das mulheres que assumem o espaço público e protagonizam a ação política: a moça “bela, recatada e do lar”, impressa à imagem da primeira-dama interina. Ao rés-do-chão, para as mulheres que vivem do trabalho, não existe a opção de sermos belas, recatadas e do lar. Diante da crise econômica, as alternativas oferecidas a nós pelo capital são a terceirização, a flexibilização de direitos trabalhistas, a saída do mercado formal e a superexploração do trabalho doméstico.
Um dos fatores da desvalorização e do desinteresse pelo trabalho doméstico é o fato de não ser uma atividade produtiva; não produzir mercadoria para ser trocada, não produzir lucro. Ocorre, no entanto, que essa atividade que consiste na criação e a socialização de crianças, na manutenção de casas e de pessoas (da infância até a velhice) é fundamental para a produção de algo imprescindível para a reprodução do sistema capitalista: a força de trabalho. De forma indireta, mesmo o trabalho doméstico não remunerado produz mais-valia.
O trabalho doméstico remunerado constitui uma das principais ocupações para as mulheres brasileiras. Segundo dados divulgados em 2013 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2011, das 6,6 milhões de pessoas ocupadas no serviço doméstico no país 6,1 milhões eram mulheres, ou seja, 92,6%. Por outro prisma, examinando a importância do trabalho doméstico remunerado para o conjunto das brasileiras, ele é responsável por ocupar 14,7% das mulheres, sendo, portanto, a terceira principal atividade econômica exercida por elas ficando atrás somente das atividades relativas a educação, saúde e serviços sociais, que correspondem a 17,6% da ocupação feminina, e às atividades ligadas ao comércio (17,4%), como mostra o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), produzido pela extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República em 2015.
Além de ser uma ocupação marcadamente feminina, o trabalho doméstico é uma atividade marcada pela presença maciça de mulheres negras e de baixa escolaridade. Quase metade das mulheres inseridas nele (48,9% em 2011, de acordo com o Dieese) tem apenas o ensino fundamental incompleto ou nenhuma escolarização. Das demais, 23,1% cursaram o ensino fundamental completo ou médio incompleto. O mesmo Raseam publicado em 2015 indica que, em 2012, 63,4% dessas trabalhadoras eram negras.
Na obra “Emprego doméstico e capitalismo”, de 1978, um dos primeiros estudos sobre a questão, Saffioti aponta que em períodos de expansão do capitalismo a força de trabalho tende a migrar para atividades capitalistas, ao passo que, em momentos de retração, essa força se desloca novamente para atividades não-capitalistas, como o trabalho doméstico. Assim, as empregadas domésticas preenchem uma das funções do exército industrial de reserva, à mercê das oscilações do mercado. Em um cenário de retração, o percentual de mulheres empregadas doméstica que seguiu uma tendência de queda nos últimos anos deve voltar a crescer.
Mesmo que o direito a anotação do vínculo empregatício na carteira de trabalho seja previsto desde 1972, no primeiro trimestre de 2015, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), apenas 32,3% dos trabalhadores domésticos tinham carteira assinada. Em outros setores privados, o número chegou a 78,2%. Apesar do importante conquista legal, a formalização do emprego doméstico e a garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários seguem sendo questionados pelos representantes patronais na mídia e no Congresso e estão longe de se consolidar e assegurar condições dignas de vida a este enorme contingente de mulheres.
Mas é sobre a exploração do trabalho doméstico invisível e não remunerado das mulheres que se concentra a agenda de ajustes conduzida pelo governo golpista e seus apoiadores: flexibilização dos regimes de contrato, fora da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); aumento exponencial da jornada de trabalho para até incríveis 80h semanais, advogada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI); e a iminência de mais uma contrarreforma da Previdência.
Ao contrário do que externou o incauto ministro da Saúde do governo ilegítimo, as mulheres brasileiras trabalham no total cinco horas a mais que os homens por semana. Da porta para dentro, são dez horas semanais dispendidas por eles com as tarefas da casa, enquanto o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres soma, em média, 21 horas, mais do que o dobro. Desigualdade que se reflete no acesso a direitos e na renda.
Entre 2000 e 2010, o grau de formalização entre as trabalhadoras cresceu cerca de 30% menos que entre os homens. Em certa medida, a informalidade é a única alternativa que se apresenta para muitas mulheres conciliarem o trabalho doméstico que lhes é historicamente atribuído a uma atividade assalariada. Em levantamento do IBGE de 2013, seus salários representam aproximadamente 65% dos salários masculinos no mercado informal, e 75% no mercado formal. Em comparação ao rendimento médio de um homem branco, no mesmo período, uma mulher negra recebia na casa de 30% do valor.
A distinção de tempos de trabalho para a aposentadoria de homens e mulheres provém do reconhecimento da dupla jornada de trabalho das brasileiras pelo Estado. Os cinco anos “a menos” não são mais uma compensação simbólica dessa disparidade profunda. A proposta levantada inicialmente pelo governo golpista de igualar os tempos de aposentadoria para homens e mulheres encontrou resistência mesmo do lado de lá e foi reduzida para três anos, o que ainda é um enorme retrocesso.
A pauta conservadora que busca reenquadrar a família heteronormativa, controlar os corpos e as subjetividades e minar as políticas públicas de atendimento às vítimas e de prevenção à violência contra a mulher, disseminada entre todas as camadas da sociedade, mas letal sobretudo às jovens mulheres negras e periféricas (a face feminina do extermínio da juventude negra e periférica) é a mesma que permite avançar contra direitos de toda a classe trabalhadora, com desdobramentos particulares sobre as mulheres que vivem do trabalho.
Combinar a resistência ao ajuste e ao obscurantismo, fortalecendo o enfrentamento à Presidência ilegítima de Temer, é uma tarefa imediata e unitária de toda a classe trabalhadora, com seus dois sexos, lembrando a grande Elisabeth Souza Lobo.
Carolina Peters é membro do Diretório Nacional do PSol e integra o Conselho Curador da Fundação Lauro Campos.
Raquel Mattos é advogada e membro da coordenação da Setorial Nacional de Mulheres do PSOL