Durante muitos anos assistimos cenas de massacres de estudantes em cidades norte-americanas – e pensávamos estar longe dessas preocupações. Outras questões graves já nos bastavam, como a luta pela sobrevivência cotidiana com um salário mínimo, ainda que tais notícias nos provocassem extrema consternação por, principalmente, tratar-se de crianças, jovens e professores em um lugar que se espera ser acolhedor. Mas, aos poucos, testemunhamos essas tragédias chegando aqui também.
O atentado da última segunda-feira (27/03), no qual um garoto de 13 anos matou uma professora de 71 anos e feriu outras três e mais um aluno, insere-se em um contexto maior que só agora a sociedade começa a entender. Trata-se do décimo sétimo ataque desde 2002 no Brasil. Desses, cinco só de agosto para cá. No total foram 35 vítimas fatais e 76 feridos, entre crianças e adultos.
Agora, além de expressar solidariedade às vítimas e a seus familiares, bem como a toda a comunidade escolar, é necessário procurar entender o que está acontecendo. E, com esse conhecimento em mãos, apontar possíveis soluções.
O agressor da escola da Vila Sônia, em São Paulo, segundo informações preliminares, encaixa-se no perfil da maioria dos que agiram em outros casos – tanto no Brasil, quanto no exterior. Anteriormente, sem motivo, agrediu um colega e proferiu ofensas racistas a outro. Também sem motivo havia agredido o próprio irmão. O autor da tragédia já havia sido transferido de unidade escolar porque havia ameaçado um aluno por Whatsapp – nas mensagens usava o nome de um dos autores do massacre de Suzano. Admirava armas, como testemunhou uma funcionária que viu suas postagens na internet e pelos desenhos de faca vistos no seu caderno recolhido pela polícia. Os vizinhos disseram que era muito retraído e sempre ficava isolado e não interagia com outras crianças do bairro.
Para o ataque, vestiu-se de preto com uma máscara com a mesma estampa das usadas em pelo menos outros dois atentados e identificada com os supremacistas brancos dos Estados Unidos. Ele narrou os passos das agressões que pretendia promover pela rede social até pouco antes de sair de casa.
Segundo o relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental, esses ataques “são normalmente associados ao bullying e situações prolongadas de exposição a processos violentos, incluindo negligências familiares, autoritarismo parental e conteúdo disseminado em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagem”. O local escolhido é devido ao fato da escola dar maior visibilidade, mas também por vingança ao que acreditam ser a razão dos seus sofrimentos.
A despeito do fato de que muitas pessoas possam ter passado por situações de bullying e sobrevivido, não significa que não carreguem marcas em sua personalidade na vida adulta. Mesmo que não tenham consciência disso. De qualquer forma, é fácil perceber que nossos jovens, um ou outro, em algum momento da vida precisam do apoio de um adulto. Presenciamos isso nas salas de aula todos os dias. Se é explícito quando alguém resolve agredir o próximo, em outros casos os sinais da violência são deixados no próprio corpo escondidos pelas roupas.
Adolescentes retraídos, sem terem com quem dividir seus problemas, encontram no mundo virtual relacionamentos que faltam na vida real. Eles não se divertem na companhia de amigos ou no convívio com familiares, mas encontram distração em jogos pela internet. A partir daí, os algoritmos vão lhe oferecendo conteúdos cada vez mais atraentes, à medida que identifica suas preferências e abrindo o caminho para a interação com pessoas simpáticas ao pensamento da extrema-direita e com discurso de ódio.
Claro que esses jovens já têm predisposição para serem atraídos por essas ideias. Como os responsáveis, por quaisquer motivos, não acompanham o que os adolescentes sob sua responsabilidade estão vendo nos computadores, as chances deles serem cooptados por esses grupos extremistas são muito grandes.
E há aí uma coincidência histórica: a partir desse século a extrema-direita tem cada vez mais mostrado a cara em vários países e no Brasil não é diferente. A pesquisadora Adriana Dias – falecida recentemente – passou seus últimos dias de vida nos alertando para esse perigo. Na internet, a tarefa desses criminosos tem sido facilitada pela forma como as mensagens são distribuídas. Como a sociedade não tem controle sobre esses processos, jovens sem capacidade de discernimento tornam-se presas fáceis para tornarem-se potenciais agressores e suicidas.
Os autores desses atentados são em sua imensa maioria brancos do sexo masculino e suas vítimas preferenciais são mulheres de qualquer idade. Revirando suas redes sociais, percebe-se que são misóginos, homofóbicos, racistas, xenófobos. Isso os leva a escolherem seus alvos em públicos específicos. Dos ataques ocorridos no Brasil, só um – o de Suzano – teve rapazes como maioria das vítimas.
Não é somente a pandemia que pode explicar o aumento desse tipo de ocorrência a partir dos últimos anos. O isolamento pode ter influenciado, uma vez que os jovens puderam ficar mais tempo imersos no mundo digital sem sofrer tanta recriminação dos pais ou responsáveis. As escolas estavam fechadas e até as aulas eram virtuais. Mas não se pode esquecer que o Brasil nesse momento estava sob um governo que incentivava a violência contra adversários políticos e proferia um discurso de ódio que facilmente encontrava quem com ele se identificava. E, mais grave ainda, tomou medidas legais para facilitar o acesso a armas de fogo. O presidente Bolsonaro transformou-se em “garoto propaganda” do armamento como solução para quem se sentisse “injustiçado” ou que sua “liberdade” estivesse sendo cerceada.
Não à toa houve aumento do feminicídio, das agressões por motivações políticas e ideológicas e, com a volta das aulas presenciais, dos atentados dentro das escolas.
Nas primeiras horas após o último atentado a mídia tradicional, principalmente a televisiva, preocupou-se como sempre em narrar os fatos, algumas com muito sensacionalismo. Poucos veículos se debruçaram para compreender esse tipo de evento. Políticos bolsonaristas, como o governador de São Paulo, aproveitam a onda de medo que se propaga na população e lançam propostas de fácil aceitação, mas que nada resolvem.
Não há nenhuma lógica em imaginar a eficácia do policiamento para evitar esse tipo de tragédia, até porque não há policiais para todas as escolas (estaduais, municipais e particulares). Especialistas consideram mais eficaz estabelecer procedimentos para a prevenção.
Podemos começar por uma ampla campanha na sociedade pela cultura da paz e contra o discurso de ódio. Enquanto isso, nas escolas, com apoio de psicólogos, pode-se treinar funcionários e professores para perceber comportamentos que indiquem a necessidade de maiores cuidados. Boa parte dos educadores já faz isso e, em muitos casos, escuta os jovens e são responsáveis por evitar que o problema se agrave. Mas o apoio do profissional da área seria fundamental para ouvir esses adolescentes e encaminhar para tratamento adequado se necessário. As famílias igualmente deveriam saber que na adolescência as transformações nos corpos e mentes de meninos e meninas os deixam bastante inseguros. E essa fragilidade torna uma parte, ainda que pequena, presa das garras dos propagadores de ódio ou suscetíveis ao suicídio. E os responsáveis precisam estar atentos e, em caso de suspeita, saberem a quem recorrer.
Às polícias cabe um papel fundamental, não no interior das unidades de ensino, mas no monitoramento das redes sociais que propagam a violência, em todas as suas formas, seja contra as mulheres, negros, LGBTQIA+, imigrantes ou por motivos de preconceito religioso. Aos legisladores fica a tarefa de tipificar esses crimes na sua especificidade e ao Judiciário a aplicação das penas aos criminosos.
Esse não é um problema exclusivo das escolas. Ele se manifesta nela, mas as raízes estão espalhadas em toda a sociedade. Por isso, a responsabilidade é de todos.
Dilson Goiana
Professor de História da rede pública municipal e estadual (aposentado),ex-metalúrgico, participou da chapa de oposição de São Paulo em 1987. É Membro do diretório do PSOL de Embu das Artes e militante desde 2006.