Carlos Eduardo Martins
Professor Associado da UFRJ, editor da revista Reoriente: estudos sobre marxismo, dependência e sistemas-mundo e professor visitante no Arrighi Center for Global Studies (2022).
A reeleição de Donald Trump surpreendeu os muitos que imaginavam tê-lo derrotado definitivamente na eleição de 2020, ou posteriormente, por meio do desgaste junto à opinião pública provocado pelos processos criminais que resultaram em condenação por fraude fiscal no Estado de Nova York e em denúncias de apropriação ilegal de documentos da Casa Branca, tentativa de golpe de Estado e de fraude eleitoral na Georgia. A vitória conquistada no voto direto, Colégio Eleitoral, Senado e Câmara de Deputados, indica a profunda crise do Partido Democrata, que se tornou o último bastião do internacionalismo liberal que dirigiu a política estratégica estadunidense de 1980 a 2016, até a inflexão provocada por Donald Trump.
Uma “nova” política internacional
Trump ensaia uma mudança de paradigma na política externa dos EUA. Partindo da premissa do declínio dos Estados Unidos, o atribui a uma tecnoburocracia globalista que usa a República para financiar alianças geopolíticas estratégicas, promover a expansão e o fortalecimento de organismos multilaterais, impulsionar a universalização do liberalismo político e do direito internacional. Mas essa política, segundo Trump e seus falcões, teria favorecido a desindustrialização, o desinvestimento, a deslocalização produtiva, a multiplicação de conflitos internacionais e a elevação dos custos de manutenção da ordem mundial acima da capacidade de gestão do Estado estadunidense. Caberia ao novo governo federal destruir essa tecnoburocracia (a que acusa de socialista, por promover normas universais e patrocinar aliados), cancelar e redefinir as políticas públicas.
O segundo governo Trump pretende descartar as políticas de hegemonia e o universalismo liberal, para substituir o imperialismo informal por um imperialismo tout-court, que imponha a força do Estado estadunidense sobre as pressões competitivas do mercado mundial e as tendências multipolares, destruindo-as parcial ou completamente. Para Trump, os Estados Unidos em declínio empregam recursos escassos. Para ampliar (otimizar) esses recursos, deve vender segurança a preços monopólicos para aliados ou colaboradores, ao invés de financiá-los, delimitar os seus inimigos ou adversários estratégicos, descartar valores universais, múltiplas frentes de conflito e redefinir a sua noção de espaço vital para derrotar as forças emergentes do sistema-mundo contemporâneo. Pretende substituir a economia política neoliberal, lastreada na internacionalização de mercados, capitais e na democracia liberal de baixa densidade social, por uma economia política mafiosa ou neofascista, baseada na força, ameaças, sanções, embargos, protecionismos seletivos, fidelidades, anexações e guerras com os objetivos de alcançar vantagens de aliados ou colaboradores, cercar, isolar ou destruir adversários, desglobalizar e reindustrializar os Estados Unidos.
A China é escolhida como a principal adversária, ameaça geopolítica, inimiga. De fato, desde o primeiro mandato de Trump, a potência asiática tornou-se alvo de cerco, bloqueios, sanções e restrições comerciais e de investimentos. Ele pretende atingir amplamente as cadeias globais de valor que vinculam a economia estadunidense à chinesa, e não apenas os segmentos de fronteira tecnológica e estratégicos, como semicondutores, supercomputadores, inteligência artificial, biotecnologia e defesa. O bloqueio na economia mundial ao setor de alta tecnologia chinês possui crescente apoio dos empresários das Big Techs do Vale do Silício, cada vez mais sensíveis à proteção estatal para enfrentar o gigante asiático, muitos dos quais se aproximam do atual presidente pela sua maior agressividade com Pequim.
Trump articula a inversão dos termos da Realpolitik de Nixon e Kissinger: convida a Rússia a entrar na Pax Americana, garantindo-lhe territórios ocupados na Ucrânia, suspendendo parcialmente as sanções impostas em busca de contrapartidas, como o distanciamento entre Putin e Xi Jinping, para afastar os principais pilares asiáticos da ameaça eurasiana. A OTAN, caso sobreviva, teria a sua missão e fontes de financiamento inteiramente redefinidas. Os Estados Unidos devem se afirmar como o poder moderador de uma Europa balcanizada, a quem venderia armas e serviços de proteção, orientando-a para o cerco e dissuasão do poder chinês. Buscam estimular divisões e conflitos intra-europeus para reduzir os riscos de uma reafirmação de Berlim e Paris como eventuais polos integradores de uma Europa soberana, assentada em um complexo industrial-militar próprio. O apoio à extrema-direita europeia nacionalista e refratária à integração, além de ser parte de uma ofensiva mundial neofascista liderada por Trump e Musk, tem o objetivo de impulsionar rivalidades locais e limitar escalas.
Para conter o revisionismo chinês, as tendências multipolares e a projeção do Sul Global com o fortalecimento do BRICS, Trump ensaia resgatar a doutrina do “destino manifesto” e ampliar o espaço vital estadunidense. Este englobaria o hemisfério Ocidental e outras regiões estratégicas, para garantir o controle de recursos (Groenlândia, por exemplo), corredores-chave (Canal do Panamá) e contingentes demográficos ampliados. Ameaça retomar o expansionismo e as anexações territoriais, violar soberanias, impulsionar guerras híbridas, estabelecer controle estrito sobre os governos nacionais, promover deportações em massa, fixar zonas de exclusão, usar países vizinhos como centros de encarceramento de deportados. Além disso, pretende organizar novas ondas de destruição de direitos sociais e dos ecossistemas, afirmando o racismo e fascismo inerentes a seu projeto.
As advertências sobre a possível retomada do Canal do Panamá, por suposta violação da neutralidade do Tratado Torrijos-Carter em favor da China, e a incorporação da Groenlândia e do Canadá ao território estadunidense, por razões de segurança nacional, devem ser vistas sob este prisma. Da mesma forma, compreende-se a pressão sobre Zelensky para a entrega da exploração de minerais e terras raras do subsolo ucraniano em troca da ajuda militar estadunidense pregressa e superestimada, a pretensão de se apropriar da Faixa de Gaza para transformá-la em um empreendimento imobiliário de alto luxo e deportar 1,5 milhão de palestinos para Estados vizinhos, respaldando o subimperialismo israelense no Oriente Médio, ademais do uso de El Salvador como terceiro país seguro para receber imigrantes ou encarcerados banidos dos Estados Unidos. A designação de carteis mexicanos ou venezuelano como organizações terroristas, e do Estado cubano entre aqueles que respaldariam o terror, dá suporte à intervenção unilateral estadunidense a pretexto de autodefesa e coloca os governos desses países sob pressão, com o objetivo de obter vantagens ou isolá-los.
Interessado em impulsionar a desglobalização e a reindustrialização dos Estados Unidos, Trump usa a migração de indocumentados, a produção de fentanil, o suposto comércio desleal, a segurança nacional, a competição na fronteira tecnológica, a defesa do dólar e ― por último na lista de prioridades ―, a violação à democracia e aos direitos humanos, para ameaçar ou impor tarifas, sanções e embargos. São alvos, em particular, os países ou regiões que possuem superávits comerciais com os Estados Unidos, como China, México, Canadá, União Europeia e Índia, ou inimigos ideológicos, como Venezuela ― de quem cancelou as licenças para produzir e exportar petróleo através da Chevron ―, e Coreia do Norte e Irã, objeto de ameaça de intervenção militar se não aceitarem um acordo sobre o seu programa nuclear. Mesmo Taiwan e Vietnã correm riscos. Ele advertiu os países do BRICS quanto à aplicação de tarifas de 100%, caso avancem nas discussões sobre alternativas monetárias ao dólar, e pretende cortar custos e atingir o universalismo liberal ao retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, da Organização Mundial de Saúde e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, além de destruir a USAID.
O novo projeto de Estado
O estabelecimento de tarifas para proteger o mercado interno atinge fortemente as corporações estadunidenses mais transnacionalizadas, ancoradas em expressivos fluxos de mercadorias entre filiais e matrizes, e os consumidores estadunidense. Trump busca cooptar o empresariado internacionalizado e garantir o apoio das camadas médias cortando impostos, direitos, gastos públicos e empregos no governo federal, se lançando contra a transição energética para tecnologias limpas e reafirmando a economia política dos combustíveis fósseis. Usa ainda, no limite, o poder de coerção de um capitalismo de Estado em construção, lastreado na imunidade relativa do exercício da Presidência da República concedida a Trump pela Suprema Corte, no acesso a informações sigilosas da inteligência estadunidense sobre empresas e cidadãos pelo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk, e no acercamento às Big Techs, registrado na presença e financiamento de sua posse por Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Sam Altman (OpenAI), além do próprio Musk (Tesla, SpaceX).
Musk, que dirige o DOGE, sequer aprovado pelo Congresso, lidera uma ação macarthista de demissões, fechamentos de programas, agências e departamentos, tomando por alvo a burocracia liberal, qualificada como a grande inimiga interna pelo Project 2025 (o projeto do think tank de extrema direita Heritage Foundation, que é a base de seu programa de governo), bem como a educação, a ciência, a saúde, a previdência social, a ajuda internacional para fins humanitários, as ações afirmativas, a receita federal e a proteção ao consumidor. Para referendar a atuação de Musk, Trump mobiliza na Corte Suprema, onde possui maioria, a intitulada teoria executiva unitária, que dá poderes imperiais ao Presidente da República sobre a administração pública federal, convertendo-a num espaço de patrimonialismo e estrita fidelidade política. As Forças Armadas e o aparato repressivo passam por forte depuração política e não é casual a sincronicidade entre o gesto nazista de Musk nos comícios comemorativos da vitória de Trump e a decisão do presidente de perdoar os líderes de milícias de extrema-direita, como Proud Boys e Oath Keepers, envolvidos no ataque ao Capitólio.
A recusa às tecnologias verdes se associa ao rechaço à legislação ambiental, à tributação dos custos ambientais, à criminalização da violência ecológica e à elevação dos gastos públicos e privados para financiar a transição energética. Trump assenta sua economia política em uma nova ofensiva espacial do extrativismo e da produção de combustíveis fósseis, na desglobalização produtiva e no fortalecimento do complexo industrial-militar e sua conversão em fonte de exportação de bens e serviços. Pretende ainda limitar o peso do setor financeiro, vinculando a queda nas taxas de juros a dos preços dos combustíveis, e suas críticas a Jerome Powell sinalizam conflitos e tensões.
Contradições e resistências
Estamos assistindo à entrada do sistema-mundo contemporâneo em um período de caos e empates catastróficos. No governo Biden, presenciamos o colapso da hegemonia dos Estados Unidos como força capaz de estabelecer a ordem mundial, o que se revelou no fracasso da coalizão liberal para asfixiar a Rússia e derrubar Putin. Ele não apenas se fortaleceu, mas também o projeto multipolar de uma nova maioria global, mediante a aproximação entre Moscou e Pequim e a ampliação do BRICS, que passou a incluir na condição de membros plenos potências energéticas em combustíveis fósseis como Irã, Emirados Árabes e Arábia Saudita, em energias renováveis como a Indonésia, e Estados com localização estratégica como Egito e Etiópia.
Com Trump, estamos assistindo o desmonte das instituições e políticas da hegemonia anterior e a tentativa de transformar os Estados Unidos em um império global, partindo do amplo domínio sobre o Hemisfério Ocidental e da redefinição das relações com a Europa. Entretanto, os limites internacionais e internos para efetivar este projeto são imensos. Entre eles podemos destacar:
(1) A China dificilmente poderá ser contida por tentativas de bloqueio, dada a escala de seus recursos demográficos, a capacidade de investir do seu Estado e de suas empresas, suas alianças internacionais e seu soft power. Ela é um poder mundial assentado no desenvolvimento da revolução científico-técnica e na projeção internacional vinculada à ideia de comunidade de destino comum e compartilhado para a humanidade, atualizando e modernizando os princípios da conferência de Bandung. O DeepSeek Chatbot sinalizou a entrada da China na fronteira da inteligência artificial e revela que a principal força chinesa está na ciência, na educação e na dimensão pública do conhecimento, os elementos mais dinâmicos das forças produtivas no século XXI, o que lhe dá grande capacidade de enfrentar a escassez de suprimentos e fazer mais com menos. Ademais, vai se destacando como potência líder na geração de energias renováveis, seguida da Indonésia, condição a que os países latino-americano, dotados de biodiversidade, clima tropical e reservas estratégicas de lítio poderão aceder. A negação da transição energética por Trump atrasa e debilita os Estados Unidos na disputa pelo novo paradigma biotecnológico emergente;
(2) A aplicação de tarifas, sanções e embargo contra seus parceiros comerciais poderá resultar na crescente exclusão dos Estados Unidos dos fluxos de comércio e investimento da economia mundial. China, México e Canadá representam 41% das importações dos Estados Unidos. A tentativa de Trump atingi-los abre imensa oportunidade para redirecionar mercados e investimentos e para o aumento da influência da China nas Américas, isolando os Estados Unidos no Hemisfério Ocidental, sujeitando-o inclusive à escassez de matérias-primas e mercadorias;
(3) É improvável que Trump consiga distanciar a Rússia da China ou frear a sua crescente aproximação. A Rússia tem sustentado seu esforço de guerra e vem obtendo apoio material e diplomático crescente. Inversamente, o conflito tem gerado inflação na União Europeia, crises políticas na Alemanha e França e vem ampliando o déficit fiscal e o endividamento nos Estados Unidos. A pretensão de Trump de inverter o fluxo financeiro com a Europa, dividi-la e ampliar sua subordinação militar e política é uma aposta de alto risco e contraria os interesses profundos da região com forte vocação eurasiana;
(4) A desglobalização do sistema produtivo e da força de trabalho estadunidenses enfrenta imensos obstáculos. Dificilmente a redução de impostos e a destruição de direitos poderão compensar as diferenças de taxa de lucro em favor do investimento no estrangeiro, ensejando a resistência do empresariado de setores internacionalizados mais tradicionais contra as tarifas. As deportações de imigrantes tendem a reduzir o exército de reserva e pressionar os custos salariais. O apelo ao capitalismo de Estado e ao fascismo para solucionar esses conflitos deve agravar as lutas de classes nos Estados Unidos; e
(5) Os países latino-americanos devem reforçar os seus instrumentos de integração regional, como a Celac e a Unasul, e sua vinculação ao Sul global, mediante o Brics, para enfrentarem de forma articulada as ameaças do imperialismo estadunidense. A presidência do Brasil nessa organização em 2025 é uma oportunidade extraordinária para mobilizar a América Latina em torno de respostas globais. Os governos do campo progressista devem assumir a defesa da soberania nacional e realizar amplas mobilizações de massa para isolar a burguesia dependente e as forças aliadas do trumpismo, como vem demonstrando Claudia Sheinbaum. Devem romper o pacto com a financeirização e a austeridade, combustível do fascismo e um dos pilares da hegemonia dos Estados Unidos, e impulsionar o desenvolvimento em uma concepção nacional, popular, latino-americana e multipolar.
Ou inventamos, ou erramos: para novos tempos, são necessárias criatividade, liderança e ousadia.