Piero Leirner
Chamou a atenção de muita gente quando da edição da Medida Provisória (MP) 870 em 1º de janeiro de 2019, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, – o fato de o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) passar a subordinação do (extinto) Ministério da Fazenda para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, chefiado por Sérgio Moro.
Numa visão acrítica houve repercussão da mídia, uma vez que se tratava de órgão que tem por “missão produzir inteligência financeira e promover a proteção dos setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo”. Afinal, tratava-se de uma espécie de continuação de um amplo projeto de combate à corrupção iniciado pelo ex-juiz da Lava-Jato.
Nada mais certo e mais errado ao mesmo tempo: é de fato uma “extensão da Lava-Jato por outros meios”, mas também expressa uma completa distorção de atribuições e uma nada óbvia associação com outras leis, órgãos e políticas que estão se definindo no âmbito de um projeto que mais parece estabelecer um estado de guerra do que uma política de acordo nacional.
Falo isso, pois parto do entendimento não-trivial de que os fatos que levaram a essa “nova estrutura do Estado” delineado na MP dizem respeito a algo de difícil compreensão (e confesso que eu mesmo estou longe de entender o fenômeno como ele mereceria). Seria o que alguns têm chamado de “guerra híbrida” no Brasil, dinâmica possivelmente em curso desde 2013.
Não é dela que tratarei no momento, mas adianto que de certa forma os fatos aqui abordados dizem respeito a um nada gratuito modo de conceber “atividades ilícitas e terroristas” (assim mesmo, combinadas). Eles fazem muito mais sentido se considerados como “atos de guerra” do que de “política”, se é que podemos separar ambos assim facilmente. Diga-se de passagem, a não separação desses planos é, entre outras coisas, uma das essências da “guerra híbrida”, que tem como resultado mais notável o fato de que as pessoas que estão no meio das batalhas simplesmente não percebam o contexto a sua volta.
Concentração de poderes
Voltarei a esse assunto, mas antes gostaria de chamar a atenção para o fato de que a mesma MP apresenta um ponto muito menos discutido, mas não menos importante. Trata-se de uma linha de um parágrafo do item “G” do Artigo 5º da MP, que define as atribuições da “Secretaria de Governo da Presidência da República” (SGBR). Antes de passar a ela, cabe lembrar das atribuições anteriores de tal órgão:
“Secretaria de Governo do Brasil é uma secretaria com status de ministério ligada à Presidência da República. Foi criada em 2 de outubro de 2015, pela presidente Dilma Rousseff, resultado da fusão da Secretária-geral da Presidência, Secretaria de Relações Institucionais, Secretaria da Micro e Pequena Empresa e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Durante o Governo Michel Temer a Secretária-geral da Presidência e o Gabinete de Segurança Institucional foram recriados. Com isso a Secretaria de Governo ficou apenas com as atribuições de Relações Institucionais, ligadas à articulação política”.
Como sabemos, quando Temer desmembrou a SGBR e recriou o GSI pasta ocupada pelo General Sérgio Etchegoyen toda a área de inteligência e segurança do Estado passou a ser centralizada pelo militar. A edição do Decreto Nº 9.527, de 15 de outubro de 2018, concentrou as prerrogativas do GSI nas mãos de quem exerce o poder de chefe de conselho de guerra.
O Decreto define uma força-tarefa que no fundo centraliza as seguintes competências: “[Cria uma] Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil [e] será composto por um representante, titular e suplente, dos seguintes órgãos: I – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que o coordenará; II – Agência Brasileira de Inteligência; III – Centro de Inteligência da Marinha do Comando da Marinha do Ministério da Defesa; IV – Centro de Inteligência do Exército do Comando do Exército do Ministério da Defesa; V – Centro de Inteligência da Aeronáutica do Comando da Aeronáutica do Ministério da Defesa; VI – Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda; VII – Secretaria da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda; VIII – Departamento de Polícia Federal do Ministério da Segurança Pública; IX – Departamento de Polícia Rodoviária Federal do Ministério da Segurança Pública; X – Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Segurança Pública; e XI – Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Segurança Pública”.
Ainda que criado um pouco antes das eleições, já nos estertores do Governo Temer, tudo leva a crer que se tratou de desenhar a armadura para um Governo “amigo”, poupando o do ônus de ter que aprovar superpoderes para o novo militar que ocuparia a pasta (no caso, o general Augusto Heleno). Não bastasse isso, voltamos a tal “linha” da MP 870 (em negrito, como parte do “artigo g”): “g) na implementação de políticas e ações destinadas à ampliação das oportunidades de investimento e emprego e da infraestrutura pública; II – supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.
Tal linha seria estranha em princípio, pois claramente duplica as funções do GSI. Além disso, mais uma vez ela também condiz com a “formação” daquele que viria a ser o ocupante da SGBR, o General Carlos Alberto dos Santos Cruz. Do currículo do referido General, destaca-se uma passagem como Assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos (que lidava com Infraestrutura, entre outras atribuições que justificariam a atual posição), a partir de 2013. Há também comandos em ações humanitárias/militares das missões de paz da ONU, como no Haiti e na República Democrática do Congo. Juntando esses dois pontos, podemos entender como estão se processando fatos recentes, que circulam em torno do problema da “guerra híbrida” que, do meu ponto de vista, ainda está em curso.
Notável reviravolta
Não há espaço aqui para retomar todo um conjunto de problemas que levaram os militares a se galvanizarem em torno da candidatura de Jair Bolsonaro. Mas, é possível afirmar com segurança que a cadeia de comando do Exército o liberou para fazer campanha presidencial dentro dos quartéis desde fins de 2014, como atesta um vídeo de novembro de 2014 (https://youtu.be/MW8ME9S87SI). As cenas mostram o capitão falando para cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
A Comissão Nacional da Verdade
Como tive a oportunidade de falar em outras oportunidades, houve uma reação militar em cadeia, que teve como ponto de partida a instalação de Comissão Nacional da Verdade (CNV), realizada por Dilma Rousseff em 2011. Não se tratou de uma reação à CNV em si, mas ao fato de Dilma ter ordenado uma espécie de “censura” a moções contra ela em Clubes Militares. Tal gesto colocava às claras na visão militar a ideia de que no fundo a CNV seria uma vingança pessoal de Dilma e seus ex-companheiros de luta contra a ditadura. A reação nos meios castrenses foi evidente, mas é preciso dizer: apenas isso não explica os movimentos militares dos últimos anos. Há algumas intersecções com questões bem mais complicadas, que vinham de períodos anteriores.
Desde a abertura política, a doutrina militar vinha sistematicamente criando uma série de situações que produziram um “inimigo” identificado com um conjunto de interesses que se plasmava na tal “cobiça internacional pela Amazônia”. Isso era visto, sobretudo, por uma lente que identificava uma ação disfarçada das grandes potências por meio de ONGs, do ambientalismo, do movimento indígena, do MST, de parte da Igreja Católica, da ONU e de alguns partidos identificados com esses movimentos, entre eles o PT e, posteriormente, o PSOL. Não interessa a veracidade dessa proposição, mas o mecanismo por ela revelado, era essencialmente projetivo. Evidentemente, isso tudo possui ambiguidades: nem todos nas FFAA vão se fiar a uma leitura tão estreita; mas é notável que essas movimentações foram assumidas como sendo uma “disposição oficial” dos governos petistas. Houve desde deslocamentos de brigadas inteiras do Sul/Sudeste para a Amazônia até a mudança de datas e comemorações. Armou-se todo um novo repertório baseado, principalmente, na ideia de um “inimigo infiltrado”.
A CNV e as teorias nos quartéis
Embora durante os anos Lula esses elementos tenham ficado em relativa estabilidade, no Governo Dilma I, a CNV praticamente pavimenta o caminho para tais formulações ganharem corpo. Nesse movimento, com a ideia de que a CNV seria um compósito de (ex) comunistas querendo vingança, encontrou-se espaço para reativar a tese de um “novo comunismo internacional” que agora se materializava nesse esforço geral das “potências invasoras”, vis-à-vis a China, Rússia e suas ambições minerais e energéticas. O governo Dilma e seus aliados nos BRICS reavivariam, assim, uma espécie de comunismo 2.0, que estaria disposto a colocar a ordem internacional de ponta-cabeça, com o Brasil numa posição de “capacho sul-americano” da Rússia, sendo bancado pela China. A própria imprensa divulgou – e isso não passou batido pelos militares que serviam próximos ao gabinete presidencial ainda em 2010 – que haveria um grupo do PT associado a interesses chineses dentro do Planalto. (https://www1.folha.uol.com. br/fsp/mercado/me0407201006.htm).
Com o plano de trocas monetárias internacionais em yuan e a tendência de consórcios chineses ganharem corpo em nossa infraestrutura, especialmente na Amazônia (vide Belo Monte e os linhões da Eletrobras), é bem provável que uma luz vermelha tenha acendido entre os militares. E vamos lembrar: a partir de 2013 um ano crítico, por exemplo, nas concessões do Pré-sal e na exploração de minério na Amazônia Santos Cruz estava na Secretaria de Assuntos Estratégicos olhando para esse possível elo.
O ponto é que aí temos um certo mosaico de como setores militares foram formando uma bricolagem que está desembocando no atual estado das coisas. Não por acaso, isso ocorre ao mesmo tempo em que há um giro na política externa nos EUA da Era Trump, com foco em isolar a China.
Para se ter uma ideia de como essas junções foram se emaranhando até ganhar corpo num processo de intensificação típico de um cenário de guerra, basta ver como a partir de 2017 há um conjunto de textos produzidos por militares em que eles oferecem a “teoria nativa” de uma “guerra híbrida no Brasil”. Ali fica claro haver uma reviravolta, para não dizer inversão, na qual se coloca que a esquerda, junto com ONGs, Igreja e ONU são responsáveis por ações que visariam desestabilizar o Estado Brasileiro primeiro sob o Governo Temer e agora sob o Governo Bolsonaro.
Se num primeiro momento essa percepção se cristalizaria em torno de uma campanha petista, que chegou a incluir Guilherme Boulos e Sônia Guajajara do PSOL, para por meio de Lula produzir um “ataque híbrido” – especialmente a partir do momento em que se acionou a ONU e organismos internacionais agora as últimas movimentações do general Augusto Heleno não deixaram dúvidas sobre a reprodução dessa velha parafernália: haveria novamente uma associação entre ONGs, esquerda e movimentos sociais, especialmente indígenas, para produzir um furo em nossa soberania na Amazônia, travestido de questão humanitária (bem sabe-se como se deram as missões humanitárias, e aí os generais parecem comentar com um certo “lugar de fala”). Qualquer coincidência com as pressões realizadas sobre a Venezuela, bem na fronteira da “principal dor de cabeça” – a área Yanomami da Raposa Terra do Sol – não é mera coincidência, ainda mais quando se discute o que seria uma “ajuda humanitária” para o país.
Balão de ensaio
Creio que essa questão levantada sobre a Amazônia é um balão de ensaio de como e onde podem chegar os decretos aqui discutidos. Sem querer entrar no mérito de um debate sobre ameaças à soberania da região, cabe chamar a atenção e questionar: por que essa querela já pacificada há anos (pelo menos desde que a costura de todo o problema das demarcações realizada por Nelson Jobim) volta à baila, agora sobre a nova roupagem da “guerra híbrida”? E mais, com uma notável reviravolta: de vítima (impeachment, etc), a esquerda passa a ser o principal fator de ataque por meio do que seria um sofisticado mecanismo de guerra ideológica.
Como estamos vendo, essa noção bem particular de ideologia, tornou-se mantra na cabeça do atual governo. Assim, não podemos esperar outra coisa a não ser uma possível radicalização dos aspectos militares do já mencionado decreto de Temer, espalhando suas características para as mais diversas áreas. Insisto, o que estamos vendo é mais uma etapa de uma “guerra híbrida”, em que os ataques se consistem, sobretudo, na perturbação da cognição baseada na inversão constante de posições. O “híbrido”, nesse aspecto, diz respeito ao permanente processo de imbricamento entre política, inimizade e ataques a setores democráticos.