Do aturdimento da primeira hora, do forte desejo de que tudo não passasse de um pesadelo, a este novo 14 de março, que marca os cinco anos de nossas vidas sem Marielle Franco, não houve um dia sequer sem a sua lembrança. Não houve um dia sem vermos o seu rosto por toda a parte, sem ouvirmos e falarmos sobre ela, sobre as suas causas e lutas, sobre esse feminicídio político que até hoje está inaceitavelmente sem solução.
Quem mandou matar Marielle talvez não tenha cogitado a potência da sua existência transcendental. Paradoxalmente, o extermínio de seu corpo coincidiu com sua transformação em ícone universal do feminismo negro e socialista.
Para nós, amigas e companheiras de lutas dessa mulher gigante, a violência política de gênero contra Marielle alterou abruptamente nossas rotas existenciais. Repentina e dolorosamente, viramos sementes, brotos, tornamo-nos girassóis – e dos grandes!
Passamos a compor na política brasileira uma crescente plantação anticapitalista, feminista, negra, LGBTQIAPN+ e favelada.
Queríamos muito, do fundo de nossos corações, ter Marielle ao nosso lado agora, suas gargalhadas e pescotapas divertidos, seu abraço imenso, sua integridade de caráter e entusiasmo na luta, sua força e assertividade impressionantes diante dos desafios cotidianos. Mas o nosso compromisso agora é honrar a memória de Marielle, a filha de Dona Marinete e de seu Antônio, a mãe de Luyara, a companheira de Mônica Benício, a irmã de Anielle, a mulher exuberante, a militante dedicada, a parlamentar altiva, o ser humano rebelde.
Nascida de um povo desde sempre oprimido e renegado por sua cor, gênero, orientação sexual, endereço, classe social, Marielle não se conformava com as violências e as desigualdades produzidas cotidianamente contra a sua gente pelo racismo estrutural, pelo Estado submisso aos interesses do capital. Contra a brutalidade na política, Marielle erguia a voz e afirmava: “não vou ser interrompida”. E não foi. Jamais permitiremos que seja.
Eleita vereadora em 2016 no Rio de Janeiro, com mais de 46 mil votos, Marielle era ponta de lança de um movimento que nacionalmente destacou-se por um levante de mulheres negras cansadas da sub-representação na política. O seu feminicídio político nos impôs a tarefa de concretizar no Parlamento o grito de milhões de mulheres mundo afora. Não seríamos interrompidas. Não fomos.
Não tivemos direito ao luto. Sete meses depois do crime, fomos eleitas para o Parlamento federal e para o estadual no Rio de Janeiro. Ocupamos comissões importantes, assumimos a liderança de nossas bancadas, erguemos nossa voz. Enfrentamos, além do racismo cotidiano no Congresso e na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a violência política expressa em ofensas diárias, difamações, desinformações, ameaças e ataques à nossa integridade moral e à própria memória de Marielle.
Um fato específico demonstrou, em 2018, o perigo representado pelo ideário fascista daqueles que comemoraram o feminicídio político de Marielle. Bolsonaristas fluminenses foram eleitos como deputados no âmbito federal, estadual e também para o governo do Estado, com votações estrondosas, mesmo depois de terem quebrado a placa de rua feita em homenagem à Marielle, fato que teve ampla visibilidade por meio da imprensa e das redes sociais. Pedaços da placa destruída foram ostentados como um troféu mórbido que depois os parlamentares mandaram emoldurar e pendurar em seus gabinetes do ódio. Alegaram ter agido em nome da ordem. Da ordem fascista, faltou dizerem.
Podemos parecer repetitivas, mas, infelizmente, demasiadamente atuais quando denunciamos o encarceramento e o genocídio negro, os feminicídios, as desigualdades de gênero, raça e classe, a miséria, a fome, o racismo ambiental e, não menos grave, a violência política racista e de gênero que, cotidianamente, tenta impedir que nós mulheres pretas socialistas ocupemos a política historicamente dominada por uma maioria de homens brancos, com origem social nas oligarquias fisiológicas e clientelistas brasileiras ou a serviço destas.
Nas redes sociais, somos agredidas de forma preconceituosa e ameaçadas com o uso de robôs digitais, ou por aqueles que os imitam, em efeito manada, na linguagem chula usada como arma virtual pela extrema direita. No parlamento, enfrentamos calúnias, difamações e até mesmo ameaças de perda de mandatos, como no caso em que, aos quatro meses de trabalho de Alerj, eu, Renata Souza, enfrentei e superei um pedido de impeachment feito pelo governador Wilson Witzel, em represália à denúncia, então feita por mim à ONU, da existência de operações policiais com disparos feitos de helicópteros contra comunidades periféricas. Recém-chegada ao Congresso, eu, Talíria Petrone, recebi da Polícia Federal informações de um plano tramado na deep web para me matar e depois, via Disque Denúncia, soube de um outro plano de assassinato contra mim por parte das milícias, e precisei passar um ano sem pisar no Rio de Janeiro por recomendação de segurança. Ambas, até hoje, já em segundo mandato, precisamos confiar as nossas vidas aos agentes responsáveis por nossa escolta 24 horas.
Somos mal-vindas na política porque ameaçamos o status quo, porque empunhamos as mesmas bandeiras que um dia foram abraçadas de coração, corpo e alma por Marielle. Quando erguemos a voz e a cabeça, percebemos as caras e bocas de repulsa à nossa ousadia de ocupar a política com os nossos corpos e as pautas e reivindicações de gente preta. Somos vistas como insolentes.
Não tem sido fácil prosseguir nesse terreno minado por um projeto político retrógrado e reativo a pautas centrais para nossas vidas, um projeto inimigo das mulheres, do povo preto, dos indígenas, da classe pobre e da própria mãe natureza. Por mais de uma vez, perguntaram-nos se pensamos em desistir, ou de onde tiramos as forças para insistir. Não há respostas fáceis. Somos mulheres comuns, com sonhos, planos pessoais, famílias, filhos – como Moana Mayalú e o recém-nascido Kaluanã Sol, de Talíria -, gestados e criados no ritmo das lutas, ao som dos megafones e das palavras de ordem por mais democracia, contra a exploração, as desigualdades e o extermínio do nosso povo e do meio ambiente, em defesa dos nossos direitos reprodutivos, por liberdade e por uma resposta sobre quem mandou matar Marielle e por quê. Seguimos por Marielle, nossa amiga, irmã. Seguimos por todas nós.
Para nós, não há alternativa além de seguir em frente no movimento da ocupação da política, não com a ilusão de que ocorrerá a partir do parlamento alguma mudança estrutural na vida cotidiana das maiorias exploradas. Sabemos muito bem, no entanto, que ocupar esse espaço faz uma diferença concreta. Agora mesmo, por exemplo, tramita um Projeto de Lei que busca proibir o aborto em casos de estupro. Não podemos permitir tamanho retrocesso. Mas é das ruas, das favelas, da periferia, do povo organizado e mobilizado para a luta que vem a nossa força para deter ameaças como essa, e para defender e conquistar direitos, os quais não foram obtidos em acordos fechados em gabinetes da branquitude.
Não vamos conseguir derrotar as graves desigualdades brasileiras em conversas regadas a cafezinhos com nossos opressores. Será sempre com muita luta e pressão social que conseguiremos mudar a vida. Foi assim que há apenas 91 anos as mulheres obtiveram o direito ao voto no Brasil. E as pretas analfabetas ainda tiveram que esperar até 1985 para participar das eleições.
Fomos as mulheres com a maior votação da história da esquerda no Rio de Janeiro em 2022, eu, Renata, com 174.132 votos, quase o triplo em relação à primeira eleição, e eu, Talíria, com 198.548, cerca do dobro de 2018. A nossa responsabilidade tem o tamanho dessa votação. O déficit de representação das mulheres pretas na política é um desafio e tanto. No Congresso, não passamos de 2% as mulheres negras eleitas em 2022. Na Alerj, entre 70 deputados, somos 15 mulheres, das quais cinco são pretas.
Essa prevalência da desigualdade de gênero e de raça no Parlamento expõe a desigualdade que nós mulheres enfrentamos em todos os espaços desta sociedade estruturada na lógica do patriarcado racista. Enfrentamos a tripla jornada, recebemos os menores salários, somos a minoria nos postos de comando. Homens estupram uma mulher a cada oito minutos e cometem quatro feminicídios por dia no Brasil. Nos feminicídios, a maioria dos algozes é um companheiro, namorado ou marido que não aceita um pedido de separação, não toleram a liberdade e a autonomia das mulheres. No caso do feminicídio político de Marielle, cometido no Mês das Mulheres, cinco anos após o crime, a própria falta de respostas funciona como denúncia do poder daqueles que até hoje se mantêm no anonimato e em liberdade sob o silêncio e a proteção de muitos.
Enquanto não houver solução para esse feminicídio político, não podemos afirmar que vivemos numa democracia plena e saudável. A justiça por Marielle é também a justiça pelo suor e o sangue de cada brasileira preta, indígena, favelada, periférica, jovem, adulta ou idosa, com ou sem necessidades especiais, LGBTQUIAPN+ ou não, que ainda precisa lutar para tentar viver de cabeça e voz erguidas neste Brasil do século 21, ainda tão racista e patriarcal.
Renata Souza É mulher preta, cria da Maré, jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, deputada estadual pelo PSOL-RJ, presidente da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj.
Talíria Petrone É mulher preta de Niterói, professora de História, mestra em Serviço Social, deputada federal pelo PSOL-RJ, mãe de Moana Mayalu e Kaluanã Sol.