Frederico Henriques
Muitas vezes observamos diversos elementos de barbárie em nosso cotidiano. O terrorismo e o ascenso da extrema direita na Europa, crises ecológicas como a do Vale do Rio Doce e do Zika vírus no Brasil, mas sem dúvida alguma a síntese destes elementos de barbárie está no Estado Islâmico da Síria e do Iraque (Daesh). Um grupo que massacra os povos, oprime as mulheres e destrói todo e qualquer patrimônio que não seja o deles. Na luta por Kobane contra o Daesh, o ocidente conheceu o movimento curdo, uma das esperanças contra este sintoma da barbárie.
Além da atuação do Partido da União Democrática (PYD) no Curdistão Sírio, rojava, novas alternativas surgiram em toda a região. Dentre os partidos, é importante destacar o Partido Democrático dos Povos (HDP), da Turquia. Em janeiro de 2016 o PSOL foi convidado a participar do congresso deste nosso partido irmão turco. Fundado em 2012, atingiu apenas 2% dos votos na sua primeira eleição, mas chegou a 13% em junho de 2015 e barra, por um momento, a pretensão de centralização do poder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP).
Essa entrevista com Alp Altinörs, vice-presidente do HDP, foi realizada na sede nacional do Partido em Ancara, no dia seguinte ao congresso do Parido Democrático dos Povos. Para além da história e dos desafios que o partido tem atualmente, Altinörs destaca como os levantes de Kobane e Gezi mudaram a história do HDP e da Turquia.
Entrevista com Alp Altinörs
Frederico Henriques: A primeira forma de organização do HDP era um Congresso. Como se viu a necessidade de se transformarem em partido? Sim, o Congresso Democrático dos Povos foi estabelecido em 2011, depois das eleições gerais. Nesta, foi formado um bloco chamado Trabalho, Democracia e Liberdade. Com este bloco, tivemos 35 parlamentares nessa eleição. Neste processo eleitoral, participamos como candidatos independentes porque se um partido participa de eleições há uma grande clausula de barreira de 10%. A grande dificuldade de ultrapassar esta votação fez com que, mesmo unido, este movimento não tivesse condições de superar esta cláusula eleitoral. Mesmo sem estar como partido, conseguimos uma grande vitória. Ter 35 parlamentares foi um exito histórico. Depois, tivemos como tarefa unir todos os povos deste país, os movimentos sociais, os socialistas e os comunistas, assim como o movimento curdo. É verdade que houve outras iniciativas para estabelecer partidos de unidade anteriormente, se chamava Partido Guarda-Chuva. A ideia era construir uma casa comum, mas não foi vitoriosa porque os movimentos e os setores democráticos de esquerda não queriam entrar em uma unidade tão estreita como partido. Por isso [Abdullah] Öcalan propôs outra via. Desde a prisão, ele disse que poderia se criar um Congresso não estreito, onde todos os movimentos sociais poderiam fazer parte sem se dissolver. Esse congresso seria um parlamento dos povos, esse foi o primeiro passo para organizar um partido dos povos. Ele dizia que, se nascesse um partido a partir deste congresso, o partido poderia ter 20% ou 30% dos votos na Turquia. Nesse ano, o partido dos curdos teve apenas 6,5% dos votos. E, no ano 2012, o Partido Democrático dos Povos foi estabelecido. Eu fui um dos fundadores. No ano de 2014, nas eleições municipais, participamos pela primeira vez no Ocidente como HDP e nas cidades curdas como BDP. Obtemos 7% dos votos.
Frederico: Como conseguir manter a unidade entre tantos grupos diferentes? Como lidar com os conflitos internos e externos? Tivemos muitas dificuldades, não apenas por causa dos pequenos grupos, mas especialmente devido ao Estado. Logo depois de fundar o congresso houve várias operações policiais nas quais prenderam 8000 militantes do partido curdo. Pode imaginar? Pensa se 8000 do seu partido fossem presos por 5 anos. Mesmo nestas condições fomos avançando, porque se a luta é dura, os conflitos internos são menores. E se a luta é relaxada, os conflitos internos são agravados. Outra coisa: os anos 2011 e 2012 foram anos de guerra, o conflito armado entre o movimento armado curdo e o Estado, Recep Tayyip Erdogan era primeiro ministro. Nessa época, o governo não pode vencer as batalhas e uma greve de fome começou nas prisões. Os prisioneiros do movimento curdo, Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), foram os protagonistas da greve de fome. Foram mais de 2000 prisioneiros. A primeira reivindicação foi que o governo abrisse dialogo com Öcalan. Em seguida, o processo de diálogo começou, em 2013. Este processo de paz trouxe muitos problemas. Os marxistas e esquerdistas acreditavam que Öcalan iria fechar um acordo com Erdogan por mais autonomia nas regiões curdas e seria um desastre para o país. Não foi o que aconteceu. Porém, em junho de 2013, ocorreu o grande levante de Gezi.
Frederico: É sobre isso que gostaria que você desenvolvesse. Qual a influência de Gezi e da juventude no Partido? O levante foi um evento histórico. Eu também estive todo o momento presente. Gezi, nos seus primeiros dias, não movimentou o Curdistão; ele não foi distante. Não houve levantes nas cidades curdas, apenas cidades turcas. Mas, cinco dias depois, o povo curdo reivindicou o levante do ocidente. Gezi mudou a correlação de forças em todo o país, e HDP foi o produto dele. Pois depois da revolta o clima político continuou. Por exemplo, nas eleições de junho de 2015, muita gente que participou, votou no HDP. E as dúvidas se Öcalan iria fazer um pacto com Erdogan se resolveram, ele nunca iria fazer um pacto com o líder do AKP. Ele reivindicou o processo de paz e a construção de uma luta mais dura e profunda. Outro impacto foi em Rojava. No norte da Síria, houve a construção de zonas autônomas. Rojava é uma experiência democrática dos curdos e tem um importante conteúdo popular, não é só nacionalista. É uma revolução das mulheres e tem um conteúdo social também, mas não é ainda uma revolução socialista, pois ainda está em guerra. Além disso, essa zona sempre foi atrasada economicamente pelo governo de Assad, não há uma economia forte ou poderosa. Depois de Gezi, muitos jovens turcos foram a Rojava lutar nas fileiras das YPG [Unidade de Defesa Populares dos curdos] e YPJ [Unidades de Defesa das Mulheres]. Dentre os que se dirigiram para lá, muitas eram mulheres. Há inclusive partidos socialistas e comunistas que formaram unidades armadas e se dirigiram para lá, e muitos deles se tornaram mártires e heróis. Para além de turcos, havia australianos, alemães… Hoje há dois batalhões internacionais em Rojava na luta contra o fascismo do Daesh.
Frederico: Qual o impacto da luta de rojava no Curdistão do Norte (leste da Turquia)? Como a luta dos curdos transformou o HDP? Esta luta é a batalha dos valores da humanidade contra o fascismo. Como na Guerra Civil Espanhola, como naquele momento, há diversas brigadas internacionais. Daesh é um produto dos países imperialistas, primeiramente dos Estados Unidos, junto com o fascismo Saudita e do Catar, além do governo do AKP. É por isso que o diálogo de paz tem fracassado. Enquanto o governo está conversando com o movimento curdo aqui, ele está apoiando Daesh na Síria e no Iraque. Os extremistas islâmicos estão atacando, com o apoio físico e logístico do exército turco, os curdos. É por isso que, em outubro de 2014, houve um grande levante no Curdistão do Norte (região oeste do Estado turco). Esta revolta de 6 e 7 de outubro foi outro evento histórico, pois aqui também participaram milhões de pessoas. Gezi foi o sediado no Oeste e o levante de Kobane aconteceu no Leste. Logo, a tarefa dos revolu cionários socialistas foi unir os dois eventos populares em uma só frente popular contra o governo do AKP. Por isso, nosso partido resolveu participar nas eleições de 7 de junho de 2015 como partido. Foi um grande risco, pois se não passássemos os 10% perderíamos tudo, mas se ganhássemos, levávamos tudo. Então a campanha de 7 de junho se transformou numa grande campanha popular, pois se conseguíssemos passar a cláusula de barreira, Erdogan não centralizaria mais o poder e não se tornaria presidente. Nosso co-presidente, Selahattin Demirtas, em discurso histórico, reivindicou o nosso papel histórico e disse que não deixaríamos ele se tornar presidente. Este discurso fez com que no ocidente, especialmente aqueles representados na revolta de Gezi, decidissem votar pelo HDP. O nosso partido se tornou central para barrar os avanços autoritários do AKP, que não conquistou, num primeiro momento, maioria absoluta no parlamento.
Frederico: Assim como no Brasil, as grandes cidades turcas vivem crises constantes. Como HDP incorporou o debate de direito à cidade? E como passou a debater de forma mais intensa sobre opressões? A nossa bancada parlamentar tem dentro dela todas essas cores, nossa lista foi construída com todas essas urgências. Nós também convocamos todos esses movimentos com um objetivo político central, até porque sem este objetivo não seria possível construir um espaço tão grande no nosso espectro político. Por exemplo, nosso objetivo nas eleições de 2015 era entrar no parlamento com um grupo muito plural, tendo ecologistas, feministas e todos esses movimentos para derrotar o AKP. Vale destacar que metade da lista é de mulheres. Ou seja, o objetivo comum era derrotar Erdoğan, para que ele não seja um ditador nesse país. Todo mundo apoiou. Porém, depois de junho, todas as condições se modificaram. Erdoğan começou uma guerra contra os curdos e acabaram as condições de paz. Não havia mais possibilidade para o debate, e nas eleições de novembro eles retomaram muito espaço com a volta da guerra.
Frederico: Como se desenvolveram as relações com o BDP? Descreva as relações com o movimento curdo. Na verdade, desde as eleições de 2014, já tínhamos visto o nosso potencial quando o nosso candidato a presidente pontuou 9,8% dos votos. Sem dúvida, foi corajoso de nossa parte, quase 10%. E, depois destas eleições, BDP, o partido curdo, se integrou definitivamente ao HDP. Com o objetivo de manter as suas lutas, os curdos mantêm uma organização própria em sua região, o Partido Democrático das Regiões [BDP]. Nossas cidades no Curdistão pertencem a este partido. Eles trabalham apenas como partido dos curdos e estão construindo autonomia. Eles são componentes [similar às tendências, no PSOL] do nosso partido. Todos atuam como componentes do HDP, assim como os partidos socialistas que não se dissolveram, entre outros.
Frederico: Desenvolva a concepção de democracia e confederalismo democrático no HDP. Queremos uma democracia local e mais força aos agentes e atores locais. Na Turquia, as cidades são dirigidas por pessoas nomeadas pelo governo central de Ancara. É um Estado ultranacionalista, aqui todos os poderes são colocados nas mãos do governo central. Porém, as prefeituras e os governos não são eleitos, são nomeados. Há presidentes de distritos que são eleitos, mas sem nenhum poder. Nos municípios que dirigimos, construímos pela primeira vez na Turquia copresidentes, uma mulher e um homem, que dirigem o município juntamente, com igual autoridade. Isso é democracia também. Queremos um sistema de consultas populares, um sistema de assembleias de bairros, até de cidades, províncias, chegando à assembleia nacional. Erdogan quer justamente o oposto: todo o poder para Ancara, o centro político do país. E lá, todo o poder na mão de um homem, como a ditadura de Somoza na Nicarágua.
Frederico: Quais foram os principais desafios das eleições de junho e novembro de 2015? Qual o impacto da guerra psicológica e física do governo? Esse foi um período de terrorismo de Estado. O atentado de Ancara foi um ataque do Estado, não é verdade que tenha sido um ataque independente. É verdade que os sujeitos que fizeram o atentado pertencem ao Daesh, mas foram utilizados pelo serviço de inteligencia turco. Logo, este foi um massacre do Estado, assim como os 33 de Suruc. Note que foi ali que foi retomada a guerra. Erdogan nunca condenou o Daesh por esses atentados, seja de Suruc ou de Ancara. Ele sempre diz terrorismo de forma genérica, com o objetivo de colar a imagem dos fundamentalistas islâmicos ao movimento curdo. O caso de Ancara é emblemático. Logo depois dos ataques, a polícia atacou os atingidos com bombas de gás lacrimogêneo, enquanto a ambulância para atender os feridos demorou mais de 45 minutos. Nesse período, este edifício foi queimado por um grupo de 200 fascistas que nos atacaram com a ajuda da polícia. Até hoje essas pessoas não foram punidas pelos seus atos, por mais que tenham sido condenadas a 30 anos de prisão. Não aplicaram a pena e não aplicarão. Imagina, 400 edifícios do nosso partido foram atacados no período entre essas duas eleições, inclusive trabalhadores da construção civil e da agricultura foram atacados. Houve uma grande onda fascista. Mesmo depois de todos esses ataques, conquistamos 11% dos votos e conseguimos, mais uma vez romper a clausula de barreira.
Frederico: Como vocês acreditam que o Brasil e a comunidade internacional podem contribuir com os enfrentamentos aqui na Turquia? O governo de Erdogan é fascista, ele tem como exemplo a Alemanha de Hitler. Ele diz abertamente que vai criar um Estado como aquele, então é necessária uma frente internacional contra esse governo. Como fizeram os socialistas e comunistas na Espanha contra o fascismo de Franco, na Alemanha, contra Hitler, na Itália, contra Mussolini. Agora, é necessária uma frente internacional contra Erdogan, pois ele tem a mesma mentalidade do Daesh e da Al-Qaeda. Pior, agora ele está no governo. Quem são seus aliados? O fascismo saudita e Israel. Agora, ele declara que a Turquia e o Estado sionista precisam mutuamente um do outro, e esqueceu do caso da Flotilha de Gaza. Note que os nove mortos da Flotilha eram membros do AKP. Agora, Erdogan toma parte também na guerra no Iêmen, onde milhares de civis foram mortos. Por isso, chamamos todos os povos da América Latina a combater o fascismo na Turquia. Agora, nas cidades do sul do Curdistão turco existe um massacre do nosso povo. Existe um toque de recolher em diversas cidades curdas, que dura mais de 5 meses. Lógico que muitos civis estão sendo mortos por balas, tanques e helicópteros. Não há lei, não há dignidade, não há direitos humanos. Há guerra urbana e luta contra um povo que quer autonomia. Por isso, chamamos os povos da América Latina à solidariedade internacional. Como dizia Che Guevara, agora há uma dor no Curdistão e os povos de Che têm que sentir está dor e se juntar ao povo oprimido, os curdos, na sua luta social e democrática.
Frederico Henriques é Educador Popular e Colaborador da Secretaria de Relações Internacionais do PSOL