Lígia Bahia
Existe no ar uma pergunta: o que se precisa fazer para o SUS dar certo? A interrogação obviamente está na cabeça de quem acredita que a saúde é um direito, que a rede pública pode se ampliar e funcionar direito. E a resposta, se endereçada apenas para essa parte da sociedade não seria fácil. Mas, partiria de um ponto avançado porque pressupõe que o SUS é a melhor resposta para a organização das necessidades de saúde. Caso a questão se deslocasse do deve para o pode e fosse: é possível o SUS dar certo? Ou ainda: um sistema universal de saúde é viável em um país da periferia do capitalismo? Ficaria ainda mais difícil encontrar os argumentos para fundamentar um sim, não, talvez. São perguntas bastante distintas, ainda que todas se refiram à possibilidade da afirmação da saúde pública como solução. Por sua vez, esse gradiente cujos polos são o deve e o pode inclui apenas quem é ou pensa ser, ou declara ser favorável ao SUS. As indagações dos que proclamam que a saúde pública deve ser focalizada, restringir-se à assistência aos pobres são menos complexas. Quem der por favas contadas que é incorreto ou impossível (o que não é o mesmo) que o SUS aprovado pela Constituição de 1988 seja implementado tenderá a formular perguntas sobre como se deve ou se pode combinar privado e público para obter desde melhores retornos financeiros até a redução de conflitos sociais.
No Brasil o direito universal à saúde não é unânime. Apesar da imensa conquista que tivemos com a formalização desse direito na Constituição de 1988, o espectro de dúvidas sobre o SUS é amplíssimo. Ao contrário do que ocorreu em países desenvolvidos europeus, nos quais houve uma coalizão em torno das políticas sociais universais e hoje se debate a factibilidade de preservação dos sistemas de proteção social, aqui se está às voltas com propostas de desmonte das mais elementares condições de regulamentação do trabalho assalariado. Ou seja, por vezes, as divergências sobre a intervenção estatal nas relações sociais são estabelecidas em torno do que sequer chegou a existir. Assim, a complicação a ser deslindada é de que SUS estamos falando. Aquele formulado por sanitaristas comunistas nos anos 1970-80? O SUS real, constituído como um conjunto de serviços e instituições gestoras? Ou as duas versões juntas e misturadas como frequentemente evocam os militantes mais jovens que defendem o SUS? Portanto, qualquer análise sobre o SUS requer reconhecer a polissemia do termo. Certamente a distância que separa o projeto original de reforma sanitária e SUS do que existe na prática é imensa e poderia até se dizer que está aumentando. Por outro lado, nem a tsunami neoliberal e as restrições orçamentárias e ataques permanentes à ineficiência e má gestão das instituições públicas destruíram o SUS.
Eleições pós eleições, sejam majoritárias ou proporcionais, o aprimoramento do SUS tem sido pautado por partidos e coalizões políticas de esquerda, de centro e de direita. Pode-se dizer sem medo de errar que o SUS, a despeito de apreciações positivas ou negativas de sua efetividade, é um consenso político. Os representantes políticos reafirmam a necessidade de fortalecer o SUS. Se isso acontece ou não é outra história. O importante é sublinhar que a bandeira SUS não é apanágio de transformadores sociais radicais. Os programas sobre saúde das mais diversas candidaturas são incrivelmente parecidos. Todos querem preencher lacunas assistenciais por meio de contratação de profissionais de saúde e abrir novas unidades ambulatoriais e hospitalares. Até mesmo as polêmicas sobre as organizações sociais e a precarização dos vínculos de trabalho, que animaram o debate de entidades sindicais e partidos de esquerda, deixaram de ser um divisor de águas nas eleições de 2016. Prefeitos eleitos, inclusive das maiores cidades, se comprometeram com a restrição das transferências de recursos orçamentários para as OS. Portanto, o debate sobre o SUS é extremamente complexo, depende de quem o propõe e da concepção de SUS.
Sindicalistas militantes favoráveis ao SUS costumam não estranhar o fato de estarem vinculados a planos privados de saúde; uma entidade defensora da educação pública gratuita não acha nada demais que seu sindicato venda planos de saúde. Empresários da saúde, que estão bilionários com o comércio de atividades assistenciais, também se dizem defensores do SUS. Portanto, antes de tudo é preciso esclarecer quem fala e a que SUS se refere.
Sanitaristas, pesquisadores e militantes que participaram do processo de debates e da luta pela redemocratização tendem a valorizar aspectos políticos, societários e técnicos que envolvem o SUS que nem sempre serão priorizados na mesma ordem ou não serão similares aos de outras perspectivas analíticas. Não que exista uma concepção certa ou melhor do que a outra. Trata-se apenas de declarar a origem dos argumentos, até para evitar que o excesso de apreciações normativas nos impeça jogar a criança com a água do banho. Algo ainda que difuso do projeto do SUS permaneceu e se renova. Simultaneamente, a emissão de políticas anti-SUS, de uso privado de recursos públicos vem sendo amplamente mobilizada pelos governos das três esferas de poder e obtém apoio ativo de segmentos empresariais e conta com o consentimento passivo de setores da esquerda. Assim, a relação um SUS consensual, mas extremamente frágil, e a expansão da privatização, inclusive nas hostes dos defensores da saúde pública, não é linear.
O SUS deu certo?
O Brasil é o único país da America do Sul que possui um sistema universal de saúde. Então, de certo modo, o SUS deu certo. No entanto, não é a nação que gasta mais recursos com saúde pública. Há uma contradição estrutural: apesar do sistema universal, os gastos com saúde são menores do que os de países vizinhos e as despesas privadas são maiores do que as públicas. Ou seja, o invólucro é de sistema universal e as condições materiais são similares àquelas encontradas em países nos quais o acesso aos serviços de saúde é direcionado pelo mercado. Entender as razões que explicam essa disjuntiva é imprescindível, especialmente porque o problema não é um defeito de fabricação do SUS. O SUS constitucional tinha um orçamento compatível com a missão da universalização da atenção. As duas novas fontes de custeio (Cofins e CSLL) para a seguridade social somadas às anteriores (impostos gerais e contribuição previdenciária) seriam suficientes para a expansão de direitos sociais. Mas, mal a Constituição foi aprovada, a conversa sobre direitos que não cabem no orçamento se disseminou. Hoje são poucos os que ainda acreditam que a Constituição foi um enorme avanço em relação ao direito à saúde. Tem quem, sem ou por querer, concorde que o SUS foi promulgado sem o devido financiamento e também aqueles que julgam que houve um conchavo dos sanitaristas com a direita porque o texto constitucional afirma a presença da iniciativa privada.
Na realidade, as entidades da sociedade civil se depararam com arenas de negociação específicas nos debates sobre o texto constitucional. Na saúde, os sanitaristas estabeleceram acordos com parlamentares progressistas. E o setor privado buscou apoio junto ao Centrão (parlamentares que representavam setores sociais mais conservadores), maioria na Constituinte, e se expressaram em votações importantes, como a questão da reforma agrária, na qual foi preservada a distribuição desigual da terra. A aprovação do SUS foi uma inequívoca conquista. Mas, sua viabilidade foi imediatamente questionada pelo Banco Mundial. O documento “Adult Health in Brazil: adjusting to new challanges”, publicado em 1989, considera que é impossível financiar com recursos públicos a saúde para todos e avança propostas sobre a configuração público-privada mais adequada para o Brasil, sugerindo que, as pessoas pobres poderiam ter melhores serviços de saúde se o “setor público imitasse o setor industrial brasileiro moderno contratando serviços das empresas de planos de saúde.”
Havia fragilidades reconhecidas pelos sanitaristas. A origem da proposta de mudança, técnicos e pesquisadores das universidades, implicava o convencimento e a participação dos trabalhadores, de parte significativa dos sindicatos dos trabalhadores. Naquela altura os trabalhadores especializados já estavam vinculados a esquemas assistenciais privados e teriam que se dispor a oferecer sustentação para que as contribuições previdenciárias destinadas à saúde integrassem um fundo comum para a universalização e ainda cerrar fileiras no combate ao modelo privatizante que se pretendia superar. Essa preocupação estendia-se aos profissionais de saúde. Médicos e enfermeiros, entre outros, teriam que se comprometer com a construção de um sistema público que fosse baseado na compreensão social e histórica do processo saúde doença. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos sustou tais expectativas. A inclinação conservadora do governo Sarney e a eleição de Collor de Mello impuseram imensas dificuldades à implementação do SUS. Com uma base societária incipiente, mas ainda dotado de coerência política e técnica, o SUS encontrou apoiadores no movimento municipalista. A ação política do movimento municipalista por um lado ampliou as bases políticas do SUS, contudo, o protagonismo de prefeitos e secretários de saúde veio acompanhado por uma ênfase nas dimensões administrativo-institucionais e não no projeto de reforma sanitária.
Portanto, o SUS que deu certo não foi exatamente aquele formulado pelos sanitaristas. A base de apoio do SUS real não foram os trabalhadores, e sim os gestores. No início dos anos 1990, os recursos previstos para serem transferidos da seguridade para a saúde foram dramaticamente reduzidos e os hospitais privados aliados a empresas de planos de saúde retomaram posições relevantes no Congresso Nacional e junto ao Poder Executivo. O subfinanciamento, o teor eminentemente administrativo da implementação conduzido por gestores e a adesão de partes das entidades sindicais e movimentos de esquerda à concepção de que a saúde pública é para pobres e não para todos consolidaram um padrão de SUS no meio do caminho. De lá para cá houve avanços no acesso a ações e serviços, melhoria de indicadores para o país como um todo, mas as desigualdades, sejam as dimensionadas pela renda ou pelo local de moradia persistem. O Brasil tem um sistema universal, mas não é um sistema universal com potência suficiente para reduzir desigualdades.