Daniella Cambaúva
Quarenta anos separam dois encontros emblemáticos da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Salvador. Disputas, a derrota da ditadura, derrotas, conquistas e um golpe conservador aproximam 1979 e 2019, mais do que se esperava, após três décadas de democracia.
No 31º Congresso, o da Reconstrução, compareceram um presidente da UNE recém-chegado do exílio e uma cadeira vazia por Honestino Guimarães, líder do movimento estudantil, preso e desaparecido pela ditadura. Já a 11ª edição da Bienal dos Estudantes e o 15º Conselho Nacional de Entidades de Base (CONEB) aconteceram entre 6 e 10 de fevereiro, também na capital baiana, com a existência de um político exilado, Jean Willys. A denúncia de que o desaparecimento, sobretudo de pretos e pobres, não terminou com o fim do Regime Militar e a iminência de perseguição política segue viva.
Jair Bolsonaro, dias antes da eleição, declarava que “marginais vermelhos” tinham duas opões: “ou vão para fora, ou vão para a cadeia”, entre outras ameaças. Para o movimento estudantil, a hora é de lutar para fortalecer o Escola Sem Mordaça e barrar o Escola Sem Partido, de resistir e de disputar a opinião pública.
Ampliar diálogo
A 11ª Bienal dos Estudantes e o CONEB se constituíram no primeiro encontro nacional do movimento estudantil após a eleição de Bolsonaro. Reuniram seis mil jovens da UNE, da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) e da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). Conseguiram produzir um documento que dá à juventude a ampla responsabilidade de compor a frente pela construção de uma unidade na esquerda. “A tarefa da nossa geração é ampliar o diálogo, amparar as divergências e fortalecer a organização em torno da defesa de nossa soberania, os direitos sociais e a democracia”, consta na Carta de Salvador.
A UNE congrega estudantes de diversos matizes políticos. Alguns a criticam por uma suposta moderação durante os governos Lula e Dilma. Mesmo com as nuances, a marca que o último encontro de Salvador deixa é a da unidade de oposição ao governo.
Para os grupos que compõem a juventude do PSOL, os estudantes são motor da resistência e da oposição de esquerda. Mesmo antes da posse do atual governo, já eram anunciados ataques aos setores populares. Também se vislumbravam medidas que afetam estudantes e trabalhadores – num contexto em que grande parte dos jovens têm difícil acesso à Universidade pública, fazem dívidas para pagar uma instituição privada, têm trabalhos precários e não vislumbram perspectiva de se aposenta.
A CPI da UNE
A ocupação das escolas no estado de São Paulo contra a reorganização escolar proposta pelo ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP), depois a ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) para exigir uma CPI que investigasse a máfia da Merenda e a mobilização nacional contra o golpe que colocou fim ao governo de Dilma Rousseff mostram que os estudantes estão entre os protagonistas da resistência ao conservadorismo.
A partir desses acontecimentos, começou uma articulação para instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a UNE.
Desde maio de 2016 o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) tenta implantar a CPI. O pastor fala em uso irregular de receita pública, alegando que contas da organização foram reprovadas quatro vezes pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Ele questionou especificamente o repasse de 44,6 milhões de reais a título de “reparação pela perseguição sofrida durante o Regime Militar”. Tal reparação se deu porque a ditadura colocou a UNE na ilegalidade, metralhou e incendiou a sede no Rio de Janeiro na noite de 31 de março para 1º de abril de 1964. Além de perseguir, prender, torturar, assassinar e fazer desaparecer centenas de estudantes.
“Na última legislatura por três vezes consegui colher essas assinaturas e por três vezes a CPI foi rejeitada na Câmara. Quando conseguimos que ela fosse aceita, poderes escusos a arrancaram de nossas mãos”, declarou Marco Feliciano, ao pedir apoio dos novos deputados federais para a criação da CPI. São necessárias 171 assinaturas para apresentar o pedido de abertura da comissão. Investigar a UNE é também um desejo do PSL, que tem 55 cadeiras, a segunda maior bancada da Câmara.
A UNE mantém um Conselho Fiscal que se reúne semestralmente para prestar contas publicamente e explicar o orçamento. A entidade mobilizou uma série de manifestações contra o golpe e contra Michel Temer a partir de 2016. A UNE chegou a organizar uma campanha de arrecadação para realizar caravanas com universitários de todas as regiões a Brasília na véspera da votação do impeachment da Câmara.
Há pedido de CPI apresentado pelo deputado Filipe Barros (PSL-PR), que ainda precisa de 80 assinaturas para se viabilizar. “Na bancada do PSL, por meio dos 52 deputados, fechamos questão em torno do presidente Rodrigo Maia. Votamos em peso na candidatura dele. E nós sabemos que o PCdoB mal atingiu a cláusula de barreira e se contribuiu para a eleição do Maia foi uma contribuição mínima perto do PSL”, disse.
Segundo Felipe Barros, os objetivos da CPI são investigar o “aparelhamento da UNE pelos partidos políticos” e a verba destinada à instituição nos últimos anos. Se as assinaturas forem recolhidas, o pedido de abertura de CPI dependerá do presidente da Casa Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O 11 PONTOS DA UNE, UBES E ANPG EM DEFESA DA EDUCAÇÃO E DO BRASIL
1) Em defesa da educação pública.
2) Liberdade de pensamento e autonomia universitária.
3) Liberdades democráticas e constituição.
4) Em defesa da livre organização.
5) Contra as perseguições políticas.
6) Em defesa de nossa soberania.
7) Em defesa dos direitos sociais.
8) Em defesa do desenvolvimento.
9) Contra as reformas da previdência e trabalhista.
10) Em defesa da paz e da autodeterminação dos povos.
11) Contra o pacote de Sérgio Moro e o genocídio do povo negro
O PSOL na entidade
Estiveram em Salvador representantes dos coletivos manifesta (Ação Popular Socialista-APS), Ocupe! (Fortalecer o PSOL) Rua (Insurgência), Juntos (Mês) e Afronte! (Resistência), que fazem o que denominam “oposição de esquerda” à direção majoritária, ligada ao PCdoB.
Resistência é a palavra que Tábata Tesser, 31 anos, encontra para falar sobre o papel da juventude nos próximos meses. “Para Bolsonaro, somos uma ameaça. E se a nossa existência está ameaçada, seremos resistência”. Ela é integrante do diretório estadual do PSOL de São Paulo e militante do grupo Manifesta.
Para além da disputa pelo discurso ideológico e contra as ameaças à democracia, existem as razões pragmáticas: com o arcocho, quem apanha primeiro é a juventude trabalhadora.
“Na reforma da Previdência, quem serão os mais afetados? As mulheres negras, que são precarizadas”, exemplifica a ativista. Tábata menciona que o encontro em Salvador foi marcado pela crítica ao apoio que o PCdoB deu à candidatura de Rodrigo Maia à presidência da Câmara dos Deputados e as denúncias às medidas do governo Bolsonaro contra a educação. “Ele quer uma educação que aliene as pessoas, que não emancipe. A gente quer uma educação que popularize os debates”.
A juventude, ou melhor, as juventudes do PSOL são diversas. Organizam-se em pelo menos cinco coletivos. O objetivo é o mesmo: lutar para que temas fundamentais para a juventude entrem na agenda nacional. Para isso precisam estar no dia a dia da discussão partidária.
Linha de frente
Carolina Coltro, 31 anos, estudante de Direito, está no PSOL desde o começo de março de 2017. Já era militante de esquerda desde 2002 e se filiou pelo “posicionamento muito coerente diante do golpe de 2016”, que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.
“O PSOL soube ter uma política que por um lado mantinha o programa, as bandeiras levantadas, e ao mesmo tempo soube ser linha de frente da classe trabalhadora”. O partido foi oposição de esquerda aos governos do Partido dos Trabalhadores, lutou quando a esquerda foi atacada e quando vieram os efeitos do golpe.
O que as juventudes querem, opina Carolina, é construir e consolidar um partido da luta direta, além de estar no parlamento. Ela está otimista com a aliança entre PSOL e MTST, e acredita que parte da tarefa é cobrar para que o partido não decepcione e possa ser linha de frente na oposição a Bolsonaro.
Carolina questiona a percepção de que jovem cansou da política. “A juventude mostra grande envolvimento com a vida do país, se entendermos a política como forma de interferir na realidade”. O que existe é um descontentamento com a forma política cotidiana. O coletivo afronte! nasceu no período de enfrentamento contra o golpe, e cumpre papel de organizar jovens, estudantes ou não, da universidade e da periferia, para fazer as discussões políticas. “Parte da esquerda expressou uma política na eleição do presidente da Câmara ao apoiar a eleição do Rodrigo Maia. Não que queira derrotar o governo Bolsonaro, e nós não achamos que a UNE seja bem conduzida com essa política, pelo contrário”, criticou.
No entanto, todas essas divergências são secundárias, considera Carolina, diante dos ataques que a UNE sofre da direita.
Guilherme Prado Almeida de Souza, 28 anos, do Ocupe, é graduado em Relações Internacionais e mestrando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC).
O coletivo surge em 2017, a partir da união de um grupo que estava na corrente fortalecer, e quis ampliar a atuação para além do movimento estudantil. Os guias são combate ao machismo, ao patriarcado, ao colonialismo e ao racismo.
Ele avalia a UNE como uma instituição importante historicamente, de posição central em muitas lutas, e defende que a entidade tenha um papel unificador para a esquerda. “A nossa crítica hoje à UNE é burocrática. A gente entende que, nos últimos tempos, a UNE acabou não tendo o papel que deveria ter”.
Há pontos que unificam todos os grupos. Um deles é a chamada Escola Sem Partido. “Professores e estudantes acabam sendo os primeiros atacados em um país no qual é proibido pensar. A Escola Sem Partido é [uma batalha] um de nossos desafios centrais. A gente só não pode esquecer que, paralelamente a isso, tem um projeto que ataca o trabalho e as aposentadorias. E os estudantes têm que estar cientes de que vão ser atacados de múltiplas formas”, conclui Guilherme.
Bandeiras estratégicas
Deborah Cavalcante, 26 anos, mestranda em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é militante da Coordenação Geral do Rua – Juventude Anticapitalista. “Somos estudantes e ativistas periféricos e consideramos as lutas ecossocialistas feministas, LGBT e antirracistas como estratégicas!”, define.
O Rua se organiza a partir de diversas frentes de intervenção política movimento estudantil universitário e secundarista; antiproibicionista; feminista; LGBT; negros e negras; cultura; moradia; e meio ambiente.
O coletivo preferiu se reunir para responder às perguntas da reportagem. O Rua foi fundado em janeiro de 2014, no I Acampamento Nacional das Juventudes Anticapitalistas para fundar um movimento social de juventude capaz de organizar jovens da classe trabalhadora em diferentes territórios: universidades, escolas, quebradas e periferias pelo Brasil. “Atuamos com autonomia, tendo o PSOL como aliado!”, afirmam.
Em 2015, o agrupamento estava nas ocupações das escolas em São Paulo contra a reorganização escolar. Ocuparam escolas e universidades em 2016 pelo Fora Temer, contra a Reforma do Ensino Médio e a Emenda Constitucional do teto dos gastos. “Estivemos em massa em junho de 2013, na primavera feminista e na greve geral de 2017. Isso para ficar só em alguns exemplos”.
O movimento Rua entende que a UNE pode ter um papel decisivo na luta contra o desmonte e a privatização que estruturam o projeto educacional de Bolsonaro. “O movimento estudantil se debruçou sobre uma importante polêmica: como enfrentar Bolsonaro e o novo fascismo? De um lado, a direção majoritária, ligada ao PCdoB, reivindicava a votação em Rodrigo Maia (DEM), candidato também de Bolsonaro, à presidência da Câmara. De outro, o movimento Rua e outros setores da oposição defendiam que só seria possível derrotar a CPI da UNE e a cláusula de barreira parte da Reforma Política proposta por Maia com uma oposição unificada e com radicalização do movimento de massas”, afirmam.
A confluência necessária
Camila Souza Menezes, 28 anos, do Juntos, conta que o coletivo atua em universidades e escolas e envolve frente feminista (Juntas), uma LGBT (Juntos pelo Direito de Amar e Ser), além do Juntos Negros e Negras. “Se a gente organiza nossa indignação coletivamente, somos capazes de defender a superação do sistema capitalista”, disse.
Ela considera que recentemente tiveram experiências positivas porque os jovens foram linha de frente em diversas manifestações, não apenas no Brasil, mas em outros países. Junho de 2013 foi importante para a juventude fazer política nas ruas. A ocupação nas escolas pelos secundaristas mostrou que podem ser a vanguarda de um movimento político.
É também estratégia do Juntos! Ocupar espaços institucionais. “Tivemos algumas vitórias. Elegemos em 2016 a Fernanda Melchionna, mais uma vez, dessa vez como a vereadora mais votada de Porto Alegre, fundadora do nosso movimento de juventude. A Sâmia Bomfim em São Paulo, e o David Miranda no Rio de Janeiro. É um avanço e reconhecimento do nosso trabalho, do enraizamento”, avaliou. Todos os três se elegeram em 2018 para a Câmara dos deputados.
O encontro da UNE em Salvador pode marcar uma nova fase. Há no horizonte novamente uma fronda autoritária. Na frente de resistência, o movimento estudantil há quase um século tem papel destacado na construção da democracia. “A UNE está sob ataque diante do projeto da CPI da UNE. Não vamos aceitá-la, em que pesem nossas divergências internas. Quem manda na entidade são os estudantes!”, afirmou Camila Menezes, do Juntos!