Gilberto Maringoni
O chavismo vive maus momentos. A crise atual atinge o cotidiano da população venezuelana de forma muito mais aguda do que o locaute empresarial de 2002-2003, quando a economia praticamente estancou por três meses e o governo de Hugo Chávez quase foi a pique.
Os sintomas estão nas ruas na forma de uma disparada inflacionária, da falta de gêneros de primeira necessidade nos mercados, de carências orçamentárias e do avanço da oposição de direita. No meio de tudo, o presidente Nicolás Maduro tenta se equilibrar diante de uma crescente insatisfação popular e de um preocupante cerco do conservadorismo latino-americano.
Especulação cambial
Talvez a maior expressão da turbulência econômica esteja na oscilação da taxa de câmbio. Enquanto a cotação oficial de importação está em 13,5 bolívares por dólar, a moeda norte-americana pode ser trocada nas ruas pela proporção de até mil para um. A inflação para 2016 deve ultrapassar 800% ao ano. Os dois fenômenos estão interligados.
O principal impulsionador da onda altista é a carência de dólares na economia, que gera especulação em moeda forte e transmissão imediata aos preços internos. Num país que compra no exterior alimentos e manufaturados, o efeito é dramático.
Assim, produtos importados pela taxa oficial são vendidos internamente por redes de contrabando a preços baseados na cotação paralela, provocando irrefreável espiral ascendente. Medidas governamentais anti-especulativas desincentivam importações, provocam o esvaziamento de gôndolas de supermercados e o sumiço de bens duráveis das lojas. Companhias aéreas estrangeiras têm cancelado suas operações no país pelas dificuldades em receber os valores dos bilhetes em cotações que valham a pena. Empresas estrangeiras com negócios com o Estado deixam contratos para trás, receosas de perdas crescentes.
O governo tem tentado, desde 2013, manter importações essenciais, como as de alimentos, e busca incentivar a produção local de hortifrutigranjeiros, em sua maior parte oriunda de pequenas e médias propriedades rurais.
Apesar de toda a crise, o país ainda apresenta uma balança comercial superavitária.
Não há fome
Não há fome na Venezuela, apesar de tudo. O site Food first afirma: “Segundo as mais recentes pesquisas disponíveis no fim de 2015, os venezuelanos consomem uma média diária de 3.092 calorias, volume bem acima da recomendação da FAO, de 2.720 para segurança alimentar, mas abaixo dos indicadores de 2011, quando a média consumida era de 3.221 calorias”.
Se não é uma situação ideal, tampouco se pode falar em crise humanitária, como setores da direita começam a propagar.
Em um país no qual a carga tributária situase ao redor de 10% do PIB e em que o financiamento do Estado vem em sua maior parte das exportações de petróleo, a queda das cotações do barril, a partir de 2012, acentuou as incertezas. A tabela em anexo é baseada em uma cesta que envolve a produção de 12 países, representando uma média de diversos tipos de óleo. A redução dos preços em 2008 foi seguida de expressiva alta nos anos seguintes, alcançando o pico de US$ 107,48, em 2011. Quatro anos depois, o barril era comercializado por menos da metade desse valor. No início de 2016 a baixa chegou a US$ 30 e agora estabilizase pouco acima dos US$ 40.
Apesar de mudanças institucionais de peso nos últimos 18 anos, o país não alterou sua dependência crônica do petróleo. Cerca de 97% do valor das exportações é garantida pelo produto. Beneficiada, como a quase totalidade da América Latina, pelo boom das commodities nos anos 2000, a prosperidade interna observada até 2012 não mudou a posição do país na divisão internacional do trabalho e acentuou esse papel. Assim como observado em Brasil, Argentina, Peru, Chile etc., reafirmaram-se as características históricas da Venezuela como exportador de produtos de baixo valor agregado e importador de manufaturados. Ou seja, apesar de exuberante em termos políticos, o ciclo de governos reformistas da região reforçou o caráter periférico dessas economias.
Perda de iniciativa
Presa em uma armadilha estrutural de difícil superação na economia, a situação venezuelana é agravada pela paulatina perda de iniciativa política do governo Maduro, que se vê, desde o fim de 2015, diante de uma maioria oposicionista na Assembleia Nacional. Tendo logrado obter número mais que suficiente de assinaturas para a convocação do referendo revogatório inscrito na Constituição, a oposição agora está em uma batalha judicial com o governo para provar a autenticidade das firmas.
A protelação tem razão de ser, pois maduro corre sérios riscos de ter seu mandato encurtado por meio da consulta popular. Se a decisão ficar para 2017, o quarto ano da atual gestão, o presidente será destituído, mas quem assume é seu vice, Aristóbulo Istúriz.
A ofensiva da direita é potencializada pela onda conservadora que atinge a América do Sul, em especial Brasil, Argentina e Paraguai. Os governos Michel Temer, Maurício Macri e Horácio Cartes tentam de todas as formas isolar o país no Mercosul e trabalham de forma articulada com a oposição interna. O chanceler do governo golpista do Brasil, José Serra, vai além e procura dar um golpe no bloco, tentando impedir a Venezuela de assumir a sua presidência rotativa.
Com a popularidade cadente, Maduro busca, há mais de dois anos, aparar arestas internas e consolidar suas pontes com as Forças Armadas. O Exército, em especial, teve suas atribuições ampliadas desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999. De contingente de segurança e defesa, suas ações se ampliaram para missões humanitárias diante de catástrofes naturais, distribuição de alimentos, apoio e construção de obras de infraestrutura e manutenção da ordem interna.
Economia e política
Todas as saídas para a Venezuela têm obrigatoriamente que começar pelo front econômico. Sem a perspectiva de uma alta significativa nos preços do petróleo em médio prazo, o governo hesita em tomar medidas que reduzam o papel do Estado na economia.
Recentemente, uma equipe de economistas ligada à Unasul propôs um plano que envolve a liberação da taxa de câmbio (controlada desde 2003), o fim do subsídio energético o que inclui gasolina e eletricidade e a adoção de políticas sociais focadas para fazer frente às carências de setores mais vulneráveis.
Além de resistências políticas no interior do próprio governo, a última medida, em especial, demanda um montante de dinheiro que ainda precisa ser contabilizado. Dentre as sugestões, está a venda de 13 refinarias da PDVSA, a estatal petroleira, instaladas nos Estados Unidos, algo praticamente descartado pelo governo.
Caso não retome a iniciativa política, o governo corre o risco de ver sua já escassa popularidade se derreter ainda mais e abrir espaço para a chegada da oposição ao Palácio de Miraflores.
O projeto econômico da direita é conhecido: um choque ultraortodoxo, o desmonte de quase duas décadas de uma institucionalidade avessa ao neoliberalismo e um realinhamento internacional subordinado à potência dominante.
Gilberto Maringoni é professor da UFABC e dirigente do PSOL.