Guilherme Boulos
O primeiro desafio: a pandemia- Nós temos três grandes desafios em 2021. O primeiro vem com a segunda onda da pandemia. Há todo o processo de atraso na vacinação e os absurdos cometidos pelo governo federal. Isso está fazendo com que essa onda seja tão ou mais feroz que a primeira. A perspectiva, baseada em informações de profissionais e gestores de saúde, é de um cenário de UTIs 100% lotadas e consequente caos sanitário. O que vimos em Manaus, com o completo descaso federal, pode se repetir no Brasil inteiro. A pandemia é o pano de fundo no qual se dá toda a vida nacional e internacional neste momento. Além disso, a pandemia implica um bloqueio às mobilizações de rua, à recuperação econômica e às perspectivas de geração de emprego, e cria um cenário de incerteza. A batalha em relação a esse tema é o processo de vacinação. A aprovação da vacina é apenas o primeiro passo. Após a aprovação, inicia-se um processo extremamente complexo, que implica compra de seringas, produção em massa, operação logística para poder levar a vacina aos rincões do Brasil, e um vasto processo de conscientização e de informação. O que nós podemos ver em breve, caso esse processo não tenha o mínimo de eficiência, são aglomerações nas portas de postos de saúde, com todo mundo querendo se vacinar. Não há, até agora, informação sobre etapas, cronograma, horários etc. Tudo isso coloca uma complexidade de operação e é muito improvável que o general Eduardo Pazuello ou o governo Bolsonaro deem conta. A vacinação em massa de gripe há uma década alcançou 1,5 milhão de pessoas por dia. Essa era a logística do SUS, mas hoje não temos nem doses disponíveis. Assim, o processo de vacinação pode se arrastar para o segundo semestre, ou até após o fim do ano.
O segundo desafio: a retomada do auxílio emergencial
O segundo trata da miséria, da fome e da crise social e econômica do país, agravadas pela pandemia. O auxílio emergencial funcionou até aqui como um colchão social. Foi por causa dele que nós reduzimos cenas explícitas de miséria e de violência. O auxílio atendeu quase 70 milhões de pessoas. Dez milhões têm no auxílio a única fonte de renda. Trata-se de um elemento decisivo para evitar que o país caia em uma epidemia de miséria. O corte abrupto do auxílio trouxe consequências drásticas, com efeitos imprevisíveis. O último levantamento de 2020 mostrou o maior desemprego da série histórica do IBGE. E não são só os 14 milhões de desempregados, mas também seis milhões de desalentados, sem falar no imenso contingente de trabalhadores que o IBGE chama de subutilizados pessoas que têm trabalhado muito menos do que a jornada média e recebendo muito menos. Isso para não entrarmos no exército de informais. O auxílio emergencial foi fundamental para permitir que a economia não caísse no fundo do poço. É sabido o efeito multiplicador das políticas de transferência de renda. Estudos de associações comerciais Brasil afora mostram que teríamos um efeito dominó de falência no comércio varejista, pois o auxílio permitiu que a demanda não fosse totalmente deprimida. É essencial que a esquerda tenha na ordem do dia a disputa pela manutenção do auxílio.
O terceiro desafio: o IMPEACHMENT de Bolsonaro
Já o terceiro é construir o processo de luta pelo impeachment de Bolsonaro. Não é novidade que, ciclicamente, ele volta a falar em golpe, pois essa é a convicção mais profunda que ele tem. Tudo o que ele quer é governar sem nenhum tipo de obstáculo, aplicando as medidas mais autoritárias, fazendo seu próprio AI-5. Ele não o fez não porque não quis, mas por não encontrar respaldo sobretudo nas Forças Armadas, e também nas outras instituições. No entanto, o Exército, que poderia sustar suas aventuras, não demonstrou disposição até aqui. Não existe qualquer tipo de divisão, entre a oposição a Bolsonaro, sobre o fato de que o objetivo unitário nosso é o impeachment. Rodrigo Maia elevou o tom, mas não se mexeu, não usou a caneta, sob o argumento de que não haveria maioria congressual para o impedimento do presidente. Sabemos que o impeachment é uma possibilidade difícil atualmente, mas é um processo que, às vezes, torna-se incontrolável, e força certos setores sociais a agirem de um jeito não planejado ou previsto por eles. A depender do cenário, se conseguirmos força para tornar a abertura do impeachment uma realidade, com formas de pressão e mobilização social, podemos ampliar as adesões, construindo uma maioria que sustente esse processo. Nossa dificuldade é que não há precedente de processos de impeachment sem mobilização social e sem ruas aquecidas. Não existe possibilidade sanitária de se convocar um ciclo de mobilizações maciças no país. Nesse sentido, a pandemia é funcional para Bolsonaro, e tem sido uma tábua de salvação para ele. Não fosse a pandemia, com o nível de indignação e de insatisfação que nós temos visto, seria inevitável termos mobilizações de rua em todo o país, com adesão de amplos setores.
As Forças Armadas
Não acho possível falar do Exército como força homogênea, e nosso nível de conhecimento sobre o que acontece dentro das Forças Armadas é muito limitado. Sabemos da existência de um grupo ligado diretamente ao bolsonarismo, seja com os generais da ativa nos ministérios ou com uma série de oficiais da reserva, que são bolsonaristas antes do próprio Bolsonaro. É o grupo do Silvio Frota, representado pelo general Augusto Heleno. Do outro lado, há figuras que respondem pelo Exército, como Fernando Azevedo, ministro da Defesa, e Edson Pujol, comandante do Exército, cujas manifestações públicas são sempre mais comedidas. Eles não têm uma postura de defesa de golpe e, em alguns momentos, ao que parece, funcionaram como freios às aventuras do presidente. Se Bolsonaro busca saídas autoritárias, parece não ter encontrado esse respaldo nas Forças Armadas. Mas isso não quer dizer que elas sejam o bastião da institucionalidade no Brasil. Se olharmos para a história, não estamos muito autorizados a acreditar nisso. Obviamente, Bolsonaro flerta e isso é muito perigoso com milícias e com bandas podres de polícias militares país afora. A relação dele com a milícia do Rio de Janeiro e a expansão delas por outras regiões do país é um sinal de alarme. É preciso ter um processo de denúncia, de atenção permanente. Além disso, não podemos confiar na classe dominante brasileira. Em um segundo turno entre Bolsonaro e a esquerda em 2022, eles vão tapar o nariz e votar em Bolsonaro novamente. Tudo o que eles queriam na vida é um Bolsonaro que soubesse usar garfo e faca. No cenário atual, mesmo com tudo o que está acontecendo, não vejo a classe dominante tomando iniciativa do impeachment nem sendo militante aguerrida disso.
Perspectivas para a esquerda
A esquerda precisará ter um papel importante de trabalho de base, de conexão com as periferias, com os bairros, com a luta imediata e concreta do povo. É estar lá e dialogar com a insatisfação, buscando dar um caráter organizado para essas manifestações. O campo progressista brasileiro está dividido em três blocos. Um deles se organiza em torno do PDT, do Ciro Gomes, e tem uma crença, no meu entendimento, não realista, de que atrairá setores do centro-direita ou de uma direita civilizada para algum tipo de aliança em 2022, encabeçada por um projeto de centro-esquerda. Esse bloco constrói sua movimentação política em torno disso. Outro é aquele nucleado pelo PT, que segue sendo, apesar do desgaste sofrido nos últimos anos, o partido hegemônico da esquerda. Por fim, há tudo o que se mobiliza em torno do PSOL. Uma parte do PCdoB está mais pendente a navegar com o Ciro e outra, nas raias mais próximas ao PT. E o PSOL traduz uma esquerda mais renovada, com maior capacidade de dialogar com novos movimentos sociais, com uma dinâmica de luta de rua, com a juventude, que foi muito bem expressa na nossa campanha em São Paulo. Esses são hoje os três principais blocos com uma política própria. Nosso desafio é construir uma unidade política desses setores para derrotar o bolsonarismo se possível, com uma unidade de projeto para 2022. Isso se constrói com um debate programático para o país. Vou trabalhar ao longo desse ano nessa direção e acredito que é o que o PSOL deva fazer também.