Dennis de Oliveira
A restauração conservadora do século XXI A luta contra o racismo no Brasil está diretamente conectada aos movimentos de resistência às novas formas de exploração do capital global. Após o período chamado pelo historiador egípcio Eric Hobsbawm de Era dos extremos, entre 1914 e 1991, ou também chamada por “breve século XX’’, o início do terceiro milênio é marcado por uma restauração conservadora.
Essa restauração tem dois elementos. O primeiro é a vitória das forças lideradas pelos Estados Unidos na Guerra Fria, marcada simbolicamente pela queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da antiga União Soviética em 1991. Tal fato histórico possibilitou uma avalanche ideológica conservadora sem precedentes que deu bases a um processo civilizatório baseado na imposição do paradigma da economia de mercado como discurso único. O segundo é a consolidação da reorganização do modelo de reprodução do capital processo já iniciado nos anos 1970 como resposta à crise cíclica do capitalismo com a transformação da produção das grandes plantas industriais em redes globais de nichos produtivos especializados, radicalizando a divisão internacional do trabalho.
Por uma coincidência trágica, tais processos ocorreram no mesmo momento da redemocratização do Brasil, nos anos 1980. Os novos sujeitos coletivos que protagonizaram a luta contra a ditadura militar de 1964/85 ganharam força na arena política e pressionaram na repactuação sociopolítica da Nova República, obtendo conquistas importantes na Constituição de 1988, em especial no tocante aos direitos sociais.
Importante destacar que o movimento negro foi um dos sujeitos coletivos desse processo. Entretanto o racismo estrutural brasileiro impediu uma maior visibilidade das agendas. Em 1978, no ato de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, lideranças de uma organização de encarcerados, chamada Centro de Lutas Netos de Zumbi, denunciaram as condições bárbaras em que os detentos viviam.
O ato de fundação do MNU também foi um protesto contra a tortura e o assassinato de Robson Silveira da Luz jovem trabalhador da zona oeste da capital paulista, numa delegacia policial.
Esses fatos ocorreram três anos depois dos grandes atos de protesto contra o assassinato de Vladimir Herzog, no DOI-CODI, em outubro de 1975, que deu início a uma grande campanha contra as torturas e assassinatos de presos políticos. Nesse contexto, o MNU defendia a tese de que “todo preso comum é também um preso político”, infelizmente não abraçada pelo campo progressista.
Por que esse fato é importante? No ano de 1988, mesmo ano de promulgação da Constituição, a Escola Superior de Guerra (ESG) a mesma instituição vinculada às Forças Armadas e que foi o think-tank responsável pela elaboração da Doutrina de Segurança Nacional que permeou toda a lógica político-ideológica da ditadura lançou um importante documento. Tratava-se de Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI 1990/2000 Década vital para um Brasil moderno e democrático. No capítulo social foi apontado que os focos desestabilizadores da democracia nesse período foram os cinturões de miséria e os “menores abandonados”. Por esta razão, a ESG defendia a manutenção dos aparatos repressivos constituídos na ditadura.
É interessante observar que a pactuação democrática dos anos 1980 não tocou a fundo a mudança nesse item. Mais que isso, a própria transição negociada pelo alto da ditadura para a democracia, entre o final dos anos 1970 e 1980, impediu o pleno julgamento dos agentes da repressão. A Lei da Anistia foi o instrumento normativo que possibilitou isso.
Assim, o que a ESG na prática defendia é que o “inimigo interno” deixou de ser “os opositores do regime” para “os moradores da periferia ou dos cinturões de miséria”. Visionária ou não, a ESG já preparava o terreno para uma situação de intensificação da miserabilidade com a adoção do modelo neoliberal na economia brasileira que começou com maior força a partir dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso.
As ações do movimento negro e o “Neoliberalismo progressista” Nesse período, o movimento negro brasileiro, com todas as dificuldades, teve importantes ações, como a organização de Encontros Nacionais de Mulheres Negras. Neles, lideranças feministas negras apontavam os mecanismos estruturais de opressão sobre a mulher negra. Foram realizados também Encontros Regionais e Nacionais de Entidades Negras. Destaca-se aqui o importante encontro de 1991, na cidade de São Paulo, em que cerca de 600 delegados representando 250 entidades denunciaram o “extermínio programado da população negra e pobre” tendo como base justamente esse documento da Escola Superior de Guerra e apontando a articulação entre racismo, capitalismo e neoliberalismo. Vale também destacar a Marcha da Consciência Negra, de 20 de novembro de 1995, em celebração aos 300 anos de Zumbi dos Palmares e, na sequência a realização do Congresso Continental dos Povos Negros das Américas no Memorial da América Latina, em São Paulo.
O ano de 1995 foi ímpar por conta da confluência de dois processos políticos. O primeiro foi o acúmulo político-ideológico do movimento negro, que chegou a apresentar um programa político de combate ao racismo ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Ele se tornou o primeiro chefe de Estado a reconhecer o racismo como problema nacional. O segundo, decorrente disso, foi uma inflexão pontual do projeto neoliberal que, diante das demandas crescentes das populações empobrecidas com a intensificação da concentração de renda por conta do novo padrão de acumulação e reprodução do capital, passou a incorporar as reivindicações pontuais desses movimentos, buscando retirar as perspectivas de ruptura. É a corrente que a pensadora Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista” e que vai ter papel importante em várias conferências internacionais, entre elas a Conferência de Combate ao Racismo de Durban, em 2001.
Fraser afirma que foi uma aliança real e poderosa de dois companheiros improváveis: por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores mais dinâmicos, de alto nível “simbólico” e financeiro da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). O que manteve esse casal estranho junto foi uma combinação diferenciada de pontos de vista sobre distribuição e reconhecimento. Mais adiante, a pensadora estadunidense elencou o programa desse bloco: O bloco progressista-neoliberal combinava um programa econômico expropriai-vos e plutocrático com uma política liberal-meritocrática de reconhecimento. O componente distributivo desse amálgama era neoliberal. Determinado a soltar as forças do mercado da mão pesada do Estado e da mina de “impostos e gastos”, as classes que controlavam esse bloco queriam liberalizar e globalizar a economia capitalista. (…) Calhou, desse modo, aos “Novos Democratas” contribuir com o ingrediente essencial: uma política progressista de reconhecimento. Recorrendo às forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. O núcleo desse ethos eram os ideais de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres e direitos LGBTQ; pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. Esses ideais foram interpretados de uma forma específica e limitada que era totalmente compatível com a Goldman Sachsificação da economia dos EUA. Proteger o meio ambiente significava comércio de carbono. Promover a posse da casa própria significava empréstimos subprimes agrupados e revendidos como títulos lastreados em hipotecas. Igualdade significava meritocracia.
A Conferência de Durban foi um palco onde essas visões ideológicas se confrontaram. A radicalidade da luta antirracista no Brasil que apontava para uma ruptura com a ordem capitalista neoliberal enfrentava dois campos: um da extrema direita expressa na proposta da Escola Superior de Guerra, de intensificação dos mecanismos de extermínio; e outro, de uma comoditização das agendas antirracistas dentro dessa proposta do “neoliberalismo progressista”. O Banco Mundial, nesse período, atuou como uma instituição de governança global que financiava programas de enfrentamento da pobreza como “danos colaterais” das políticas de ajuste fiscal preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional.
Uma pessoa importante nesse período que impactou essas discussões foi James David Wolfensohn, empresário australiano radicado nos EUA que atuou como presidente do Banco Mundial, entre 1995 e 2005. Foi justamente nesse período que Wolfensohn colocou o tema do combate à pobreza como central na agenda do Banco Mundial. Porém, a ideia de combate à pobreza ia no sentido de articulá-la dentro da perspectiva de constituição de uma governança global que garantisse o ajuste das economias dos países dependentes aos paradigmas da globalização neoliberal.
No relatório anual de 2000, o Banco Mundial afirmou que a “pobreza mundial continua sendo um problema de grandes proporções”. Na abertura do relatório, Wolfensohn defendeu a necessidade de se combinar esforços em nível nacional (estabelecendo compromissos do país, abordagem integrada de longo prazo, parcerias e focos nos resultados) e global (na qual o banco se colocou como uma plataforma-suporte para implantação de políticas de combate à pobreza).
A ação do Banco Mundial se articulou com o FMI (responsável pela imposição dos ajustes macroeconômicos) por meio dos chamados Poverty Reduction Strategy Papers (PRSP), que consistem em trabalhos realizados por países membros do FMI que combinaram ajustes macroeconômicos com políticas de redução da pobreza monitoradas por técnicos do fundo e do Banco Mundial.
Após esse período, o cenário da luta contra o racismo teve mudanças significativas. Primeiro, a crise do modelo neoliberal no início do século XXI possibilitou o fortalecimento da corrente antineoliberal e, com isso, em vários países da América Latina foram eleitos governos com plataformas desenvolvimentistas ou anticapitalistas. No caso do Brasil, em 2003, com a vitória da frente liderada pelo PT em 2002, várias demandas do movimento social de negros foram institucionalizadas, em especial as ações afirmativas (como a promulgação da Lei Nº 10.639/03, as cotas raciais nas universidades e serviço público, o Estatuto da Igualdade Racial, entre outros). Mais: o modelo de governança participativa proposto pelo PT possibilitou a presença de lideranças do movimento negro em diversos espaços institucionais sem, contudo, haver uma reformulação nas estruturas racistas do Estado brasileiro.
A resultante disso é que essa participação institucional ocorreu perifericamente, “nas franjas” dos espaços governamentais.8 Apesar de tudo, houve uma incorporação institucional da energia do movimento negro para tais espaços, configurando um “antirracismo de resultados”, isto é, a luta contra o racismo se deslocou meramente para a eficácia de políticas institucionais.
Porém, o grande problema é de fundo ideológico. A luta contra o racismo, centrada nas políticas públicas de promoção, consolidou a ideia de que o racismo é um problema de ordem comportamental. Mesmo algumas enunciações de “racismo institucional” e “racismo estrutural”, centram-se em argumentos de comportamentos inadequados de agentes no poder. A diferença é que há aqueles que consideram que é possível uma reforma por meio de mecanismos institucionais ressaltando os aspectos teoricamente disfuncionais do racismo e que, portanto, por meio do convencimento ou por pressões dos movimentos sociais e outros que desconsideram essa possibilidade, reafirmando uma essencialidade racial que determina os comportamentos preconceituosos.
Os erros do reducionismo “progressista” da luta antirracista Como resultado, há uma tendência no campo progressista de reduzir a luta antirracista a dimensão comportamental e enxergar o movimento meramente como “identitário”. Quais são os erros dessa visão?
Primeiro: a componente racial está diretamente articulada com as hierarquias da divisão internacional do trabalho radicalizada com os novos arranjos produtivos globais. Tais arranjos se organizam da seguinte forma: no topo, os centros produtores e disseminadores de tecnologias e processos, no intermédio, a aplicação das tecnologias e produção manufatureira, e na base, o fornecimento de insumos e matérias primas.
Essa foi uma zona de enfrentamento dos projetos progressistas na América Latina. Países como Bolívia e Venezuela tiveram que garantir uma situação de bem estar às populações, como também envidar esforços para retirar as economias dos países da situação de mero fornecedores de matérias-primas.
No caso do Brasil, país colocado na zona intermediária e que, por situações singulares, tem uma estrutura capacitada de produção tecnológica, a luta foi contra o desmonte das universidades públicas e empresas estatais capazes de induzir cadeias produtivas de maior valor agregado. Nesse sentido, a democratização do acesso tanto a universidades públicas como às empresas públicas, por meio das cotas raciais, permitiu a inserção da população negra nessa produção tecnológica, possibilitando a articulação do desenvolvimento científico-tecnológico às demandas sociais dessas populações.
Não é à toa que as campanhas direitistas contra Evo Morales e Hugo Chávez, por exemplo, tiveram forte conotação racista. Ideologicamente, tal discurso cristalizou os lugares subalternos desses povos e suas nações no cenário global do capitalismo, assim como o próprio Banco Mundial que historicamente prega o desinvestimento no ensino superior com o argumento populista de que se deve priorizar a educação básica.
Também esse elemento explica o porquê da USP a universidade responsável pela esmagadora maioria da produção científica e tecnológica do país e colocada entre as cem maiores do mundo ter sido a mais resistente em adotar as cotas raciais. Ciência e tecnologia é o poder dentro da cadeia global da produção capitalista.
Um exemplo que deixa isso nítido são as telas de cristal líquido que equipam celulares, produto que envolve uma sofisticação tecnológica desenvolvida nos centros de pesquisa e desenvolvimento sediados nos países centrais do capitalismo e que tem como matéria-prima o mineral coltan, extraído com mão de obra de crianças escravizadas na República do Congo.
Basta ver a composição étnica dos países em que se situam esses centros de pesquisa sofisticados (bem como os seus integrantes) e do país que fornece a matéria-prima e o insumo (e das crianças escravizadas nesse tipo de trabalho).
Segundo: o capitalismo brasileiro foi construído a partir do sistema escravista e não significou uma ruptura com a ordem anterior e sim uma transição, como afirma o pensador brasileiro Clóvis Moura.
Moura defende a ideia de que entre 1850 e 1888 se constituiu uma “modernização sem mudança”, pois a constituição da infraestrutura necessária para o estabelecimento do capitalismo foi feita por meio de inversões de capital estrangeiro, principalmente britânico. Assim, constituiu-se uma aliança entre esse capital e as classes dominantes brasileiras que se, ao mesmo tempo aceitaram serem sócias minoritárias nesse projeto, mantiveram seus privilégios, interditando qualquer possibilidade de constituição de um projeto nacional que implicasse uma aliança com a classe trabalhadora nacional.
O racismo operou, assim, como uma ideologia que sustentou esse projeto de submissão e, inclusive, de transformação da imensa massa de negros e negras ex-escravizados em excedente de mão de obra que possibilitava o rebaixamento geral do valor da força de trabalho. Foram criadas as condições necessárias para a realização do fenômeno da superexploração da mão de obra13, isto é, o pagamento em valores inferiores às necessidades de reprodução elemento essencial do capitalismo dependente, segundo Ruy Mauro Marini.
Constituiu-se, assim, uma tipologia de Estado que tem como tripé de sustentação a concentração de renda e patrimônio, a concepção restrita de cidadania e a violência como prática política recorrente. Daí as dificuldades de implantação no Brasil de pactuações democráticas efetivas, ainda que dentro dos marcos de uma democracia burguesa liberal clássica. Esse é o sentido da palavra de ordem de uma organização do movimento negro, a Rede Quilombação, de que “a democracia não chegou na periferia”.
Assim, o enfrentamento do racismo é o elemento central da construção de um projeto político transformador do país, de ruptura com a ordem capitalista global e transformação radical das estruturas sociopolíticas. Não se trata de política meramente identitária, tampouco de enfrentar comportamentos disfuncionais.
Lelia Gonzales, no texto intitulado amefricanidade, fala do “racismo como denegação”, ou seja, uma postura recorrente das classes dominantes de negar a condição amefricanidade do país, independente do pertencimento étnico pessoal.
Em um projeto político que tem como centro aprofundar a democracia e combater as desigualdades sociais, colocar a luta contra o racismo em segundo plano é desconsiderar que negras e negros sempre foram excluídos de qualquer possibilidade de pactuação democrática e que o racismo é uma ideologia que sustenta a concentração de renda, a ponto de naturalizarem-se cenas de crianças negras vendendo doces nos cruzamentos e a Escócia, país majoritariamente branco, ter uma reitora negra na Universidade de St. Andrews, enquanto aqui…
Isso não é mero identitarismo, mas produto de uma arquitetura ideológica que define lugares sociais. Pois, desde as origens, no Brasil, as classes sociais são racializadas: negras e negros foram escravizados para o trabalho e brancos educados para colonizar e expropriar as riquezas.