Marco Antônio Rocha
Embora a saída da Ford seja algo que atinja a memória afetiva de um projeto de desenvolvimento que se perdeu, o fato não é um acontecimento isolado. Ele representa mais um capítulo da crise aberta pela incapacidade do empresariado brasileiro capitanear uma rearticulação produtiva com o sistema capitalista internacional no período pós-fordistas.
O estilo de desenvolvimento em que o processo de internacionalização das multinacionais garantia a articulação de uma cadeia produtiva integrada no espaço nacional, não se tornou mais possível em um universo de cadeias fragmentadas e de especialização por tarefas nas cadeias globais. Durante a reestruturação produtiva do sistema capitalista internacional, não houve no país a construção de um projeto que possibilitasse superar os esquemas tradicionais de divisão do trabalho entre centro e periferia.
Nesse sentido, a saída da Ford é a continuidade do esfacelamento da estrutura produtiva de caráter fordista, desenvolvida ao longo do processo de industrialização no Brasil. Durante a mudança na forma de internacionalização das empresas multinacionais e com a acirramento da competição internacional promovida pela industrialização das economias asiáticas, a burguesia industrial brasileira não demonstrou ter a menor capacidade de promover políticas garantidoras de uma inserção internacional do sistema industrial brasileiro que combinasse a sofisticação de sua pauta de exportação com a melhoria substancial da estrutura ocupacional.
Falta de perspectivas
O caso da Ford é ilustrativo desse processo. De certa forma, é resultado de tudo isso, das mudanças na lógica de atuação das multinacionais dos países centrais, dos efeitos da inserção internacional das economias de industrialização recente, do progresso tecnológico na competição global da indústria automotiva e da falta de perspectivas sobre o crescimento da economia brasileira nesse contexto.
Em outros termos, é tanto resultado do vácuo em relação a um projeto de desenvolvimento de longo prazo quanto dos limites de outro projeto de desenvolvimento, cujo principal eixo de articulação dependia da presença do capital estrangeiro.
No que se refere a decisão da Ford, ela possui lógica semelhante da decisão das demais montadoras tradicionais em relação às mudanças recentes na indústria automotiva. A reorientação das estratégias das montadoras foi condicionada por três fatores interrelacionados:
O primeiro foi a mudança da concentração geográfica da demanda e do perfil do consumo de veículos; o segundo fator foi a entrada de novas empresas montadoras e o acirramento da competição nos mercados de maior dinamismo; e o terceiro é formado pelos efeitos da mudança tecnológica nas estratégias das empresas líderes.
Mercado de luxo
A mudança do padrão de consumo das economias desenvolvidas, com a estagnação da demanda por automóveis na Europa e o crescimento da demanda nos Estados Unidos, concentrada em carros de luxo e SUVs, provocou o deslocamento do mercado consumidor para as grandes economias em desenvolvimento. Ainda que sejam também grandes mercados para carros de luxo e de grande porte, a mudança geográfica dos mercados com maior crescimento significou uma maior taxa de crescimento da demanda localizada em carros de menor porte e menor valor adicionado.
Muitas dessas economias, a exemplo da China, Índia e Rússia, desenvolveram capacidade local de produção por meio do fomento de montadoras locais. Essas novas entrantes pressionaram as margens para baixo, sobretudo nos mercados de grande crescimento, sendo especialmente bem-sucedidas na entrada nos nichos de automóveis de menor valor adicionado.
Esse movimento fez com que parte das montadoras tradicionais reavaliassem as estratégias nesses nichos de mercado, reduzindo os modelos e enxugando a produção voltada aos mercados emergentes. No cenário de queda drástica do comércio internacional provocado pela pandemia, a necessidade de promover a rápida ocupação da capacidade produtiva instalada provavelmente acelerou a reorganização estratégica da produção global das montadoras.
A escolha por esse tipo de estratégia está relacionada também à mudança do perfil dos investimentos das montadoras tradicionais em direção às novas tecnologias da Quarta Revolução Industrial.
Em geral, as grandes montadoras têm voltado parte dos investimentos na aquisição de patentes e de empresas desenvolvedoras de tecnologias chaves para a geração de carros com menor impacto ambiental e para automóveis de direção autônoma. Como as mudanças tecnológicas deverão significar a entrada de novas empresas no setor vindas de áreas relacionadas ao desenvolvimento das novas tecnologias, as montadoras tradicionais têm demonstrado pouco interesse em se manter na competição nos nichos de menor valor adicionado, concentrando esforços nos nichos de maior valor e no posicionamento para a competição nos novos modelos de maior complexidade tecnológica.
Economia pouco atrativa
Com a redução dos esforços competitivos nos modelos voltados aos mercados emergentes e a necessidade de racionalizar a produção global frente a essas mudanças estratégicas, é natural que economias pouco atrativas e com baixa perspectiva de crescimento, como se tornou a brasileira, sejam preteridas em relação a mercados emergentes de maior crescimento.
Entretanto, é necessário levar em consideração que a maior atratividade de outras economias emergentes esteve relacionada não só a maiores taxas de crescimento, mas igualmente à existência de políticas voltadas ao desenvolvimento da produção automobilística local, inseridas geralmente em estratégias nacionais mais amplas de desenvolvimento das forças produtivas.
Em um cenário de mudanças globais, é difícil supor que a mera manutenção de um ritmo modesto de crescimento do mercado interno seja suficiente para se contrapor ao movimento geral de reestruturação da indústria automobilística. Assim, como seria ainda mais difícil supor que o problema resida em um conceito vago e genérico como “Custo Brasil”, solucionável por meio de reformas de cunho liberalizante que seriam suficientes para reverter a perda de competitividade da indústria brasileira e defendida em bloco pela burguesia brasileira. A agenda do “Custo Brasil” só revela a falta de visão do que restou da burguesia industrial sobre a magnitude das mudanças no sistema industrial internacional e nas práticas de política industrial mundo afora.
Incapacidade empresarial
Do episódio da Ford, retiram-se algumas lições importantes. A primeira é nos fazer lembrar de como as estratégias das multinacionais podem facilmente desfazer imensos esforços dispendidos em relação a um estilo de desenvolvimento associado. A segunda é a incapacidade de o empresariado industrial brasileiro propor ou compor um projeto de desenvolvimento produtivo que vá além de, na melhor das hipóteses, uma inserção subordinada nas cadeias de valor. A terceira é como as economias que procuraram construir políticas de desenvolvimento industrial estão se demonstrando com maior capacidade de barganha e, inclusive, com maior atratividade para o investimento estrangeiro.
Em meio a isso, buscam-se soluções momentâneas possíveis. A tentativa de fazer uma empresa brasileira ou uma dessas empresas entrantes no setor automobilístico, seja indiana ou chinesa, assumir o controle do parque produtivo salvaria os empregos e a economia das cidades afetadas em especial, Taubaté e Camaçari, mas não deixaria de ser uma solução momentânea. Sem o crescimento do mercado doméstico e sem a construção de um projeto de base popular voltado ao desenvolvimento das forças produtivas, o episódio da Ford será apenas mais um dos vários que se seguirão.