José Correa Leite
Estamos em meio à mais grave crise da história do Brasil. É possível que terminemos 2021 com 800 mil ou mesmo um milhão de mortos pela Covid-19. As estatísticas demográficas já registravam, em maio, não apenas os 400 mil mortos oficiais, porém 600 mil mortos a mais do que se esperaria sem a pandemia. A miséria cresce de maneira galopante e a fome ressurge no país. A expectativa de vida média da população já regrediu em dois anos. A floresta Amazônica está no limiar de um colapso que pode impactar toda a humanidade. Jair Bolsonaro, um extremado expoente da direita neofascista, promove a destruição da vida como política.
O quadro de decadência e crise do Brasil já vem de longe, assim como o mal-estar que ele gera, que permitiu a eleição do atual presidente. Seu marco é global: a civilização capitalista, financeirização, produz bens supérfluos e deixa de produzir os essenciais, comprometendo os processos de reprodução social. Essa civilização agrava as desigualdades sociais e classe, gênero, raça, regionais e internacionais; aprofunda por toda parte o autoritarismo político; e continua a nos conduzir para uma hecatombe climática, com uma sexta extinção em massa da vida no planeta. Não parece haver dúvidas que vivemos, nos dias que correm, deslocamentos tectônicos, mudanças de alcance secular, só análogos aos que ocorreram nas grandes guerras da primeira metade do século XX. O caso do Brasil é, de qualquer forma, extremo e a luta para derrotar Bolsonaro organiza, hoje, a disputa política no país.
Crise é um termo tão repetido que parece se tornar banal, sinônimo de retrocesso e desconstrução sistemáticos ou recorrentes. Mas tudo indica que estamos sendo conduzidos, ao menos em nosso país, a um tempo de qualidade diferente, de acúmulo explosivo de conflitos, indeterminação e escolhas, um tempo que os gregos – em contraposição a chronos chamavam de kairós. Um tempo que, se pode tragar com rapidez o que foi pacientemente construído, também abre oportunidades de novos recomeços.
A pergunta da qual não podemos escapar é: o que é e será do PSOL em meio a tudo isso? Criado há 15 anos como ferramenta de resistência, mas também com grandes ambições estratégicas, ele parece, hoje, deixar-se levar pelas ondas de uma grande tempestade. Tocar uma política rotineira, mesmo com as justificativas mais sensatas, é, numa situação muito extraordinária, uma insensatez.
Decadência, crise nacional e mal-estar
Grande parte das esquerdas críticas no Brasil compartilham de um diagnóstico: Bolsonaro e o bolsonarismo expressam determinações mais profundas dos processos em curso, nacionais e internacionais. O ex-capitão chegou ao Palácio do Planalto como catalisador de uma vasta coalizão de interesses, prometendo uma rota de fuga ultraliberal para uma crise nacional. Fez isso como parte de um projeto global uma resposta nacionalista de setores burgueses de muitas partes à nova era de estagnação da acumulação produtiva e reorganização geopolítica do mercado mundial, cujo centro de gravidade se deslocou, depois de 2008, para o Pacífico. Essa crítica “antissistema” da extrema direita ao globalismo cosmopolita neoliberal esteve, desde o início, animada por Trump, prosperou na sua esteira depois de 2016 e, agora, enfraquece-se com a derrota frente a Biden. Foi a incapacidade de responder à pandemia que rapidamente golpeou a popularidade de Trump e acentuou as fragilidades e contradições do projeto e do bloco que o sustentava.
Todavia, o Brasil, à diferença dos EUA, vive uma crise muito mais profunda e aguda, que se tornou patente para todos, pelo menos, desde 2013. Então, a percepção do longo processo de decadência de suas estruturas produtivas, desarticulação da capacidade de ação do Estado, escalada da precariedade e insegurança sociais, falta de sentido para a participação em projetos coletivos e crise ambiental, manifestou-se como mal-estar de amplos setores frente à ausência de perspectivas e projetos de todas as forças políticas em cena.
O marco constitutivo dessa crise nacional é extenso. O Brasil foi capaz de transformar-se, na segunda metade do século XX, em um país urbano-industrial, com a produção manufatureira (excluindo mineração e construção civil) atingindo, em 1985, 21,6% do PIB. A indústria brasileira era então uma das mais modernas do mundo.
Quinto país com maior território e população do mundo, o Brasil parecia estar destinado a se transformar em um grande polo capitalista e reestruturou suas esquerdas a partir das lutas da classe operária fordista. Mas o país avançou na globalização neoliberal, depois de 1990, com a abertura da economia por Fernando Collor de Mello, mantendo uma forte dominação oligárquica. Desprovidas de um projeto nacional, essas camadas priorizaram suas raízes fundiárias, extrativistas, predadoras, primário-exportadoras e autoritárias, representadas pelo Centrão e defendidas em políticas executadas tanto pelos governos do PSDB quanto do PT.
Dessa maneira, a inserção do país na ponta da divisão internacional do trabalho refluiu e a economia se reprimarizou: em 2004 a participação da indústria era de 17,9% do PIB; e em 2015 havia caído para apenas 9% um ônus colossal da aposta dos governos petistas no boom das commodities. O Brasil passou de sétima para a 12ª economia do mundo e voltou a ser um país agroexportador, com poucas ilhas de excelência industrial e tecnológica. Dos anos 1990 em diante, o país entregou passivamente os setores digital e farmacêutico para mencionar só dois para as corporações norte-americanas, em um momento em que todas as “potências intermediárias” procuravam dominar essas tecnologias. O agronegócio, a mineração e a extração petroleira se tornaram bem mais capital-intensivos, mas em uma sociedade que 85% da população é urbana e o setor de serviços somente se sofistica associado à inovação tecno-científica. Em paralelo e em decorrência dessa decadência, a estrutura social voltou a se simplificar e os horizontes de mobilidade social se fecharam.
Essas mudanças regressivas não são somente reflexo da reorganização global do capitalismo ou da dominação imperialista (embora também o sejam), mas resultado de escolhas feitas pelos atores políticos. Elas advieram internamente, de um lado, do “presidencialismo de coalizão”, consagrado com a Constituição de 1988 e uma nova “política de governadores”.
Do outro lado, da política econômica neoliberal, mantida intacta nos oito anos de governo do PSDB sob FHC e nos quase 14 anos de governos do PT, sob Lula e Dilma: a manutenção do tripé macroeconômico neoliberal de taxa de câmbio flutuante, metas de inflação e austeridade fiscal.
Celso Furtado falava, em 1992, da construção interrompida do Brasil. Isso não era uma fórmula retórica, mas um diagnóstico arguto do que se passava; essa construção jamais foi retomada, porque isso exigiria uma política “re-industrializante”. E todos esses governos compartilharam também do extrativismo e da predação do meio ambiente, que derivam do lugar do país na nova divisão internacional do trabalho que hoje coloca o Brasil no epicentro da crise climática.
O resultado da transformação da população brasileira em consumidora sem cidadania ativa foi a neoliberalização da sociedade como um todo, a “destruição das estruturas coletivas capazes de barrar a lógica do mercado puro” (a definição de Bourdieu do neoliberalismo).
Evidentemente, os governos Temer e Bolsonaro levaram as tendências regressivas a um ponto suicidário o que não é desprezível, mas elas já vinham sendo ativamente construídas por FHC, Lula e Dilma com a “inserção pelo consumo”. O mal-estar incontido, crescendo há duas décadas, manifestou-se em 2013, sob Dilma, quando ficou evidente que o Brasil estava “perdendo o bonde da história”. O Brasil aparece para o povo como um país sem futuro nas correntes da História que vem se impondo no século XXI.
Essa regressão e falta de perspectiva criada pelas políticas neoliberais atingem todo o tecido social. A precarização da vida nas últimas décadas não está ligada apenas às heranças do passado (do escravismo, do autoritarismo…), nem somente às idas e vindas da formalização das relações trabalhistas que avançou sob os governos do PT, para depois retroceder. Elas se vinculam principalmente à natureza das atividades exercidas após o esgotamento da industrialização fordista, quando a geração de empregos urbanos passou a se dar em um crescente, amorfo e pauperizado setor terciário.
Foi a mercantilização generalizada da vida que resultou numa sociedade em desagregação, de indivíduos desamparados, “empreendedores” jogados no mercado sem freios, que se tornou neopentecostal (na sequência da destruição da Teologia da Libertação por João Paulo II), acolheu Bolsonaro e elogia o darwinismo social, porque ele expressa suas condições de vida. Bolsonaro, como outros dirigentes neofascistas, não discute políticas sociais, defende contra o liberalismo cosmopolita uma concepção de mundo orgânica a essa nova realidade do capitalismo ultraliberal. Nenhuma outra esteve à altura de se contrapor a ela.
A economia brasileira percorreu, nos últimos trinta anos, um caminho inverso ao que tinha seguido entre 1930 a 1990, e também ao de muitos países do Leste Asiático. A tessitura da sociedade brasileira é, hoje, quase irreconhecível em comparação a dos anos 1980, que formou a última grande geração política da esquerda no país está que não conseguiu apresentar uma saída do Brasil do neoliberalismo e terminou criando as condições nas quais viceja uma extrema direita reciclada. Essa é a raiz, para qualquer análise estrutural e materialista, do profundo mal-estar que acomete todas as classes populares no Brasil, que as colocam contra o que, de conjunto, percebem como sendo o “sistema” e a política nele institucionalizada. É para essa crise que a esquerda ainda precisa apresentar, ao menos, um horizonte de saída.
Bolsonaro aprofunda a crise de perspectivas
O governo Bolsonaro, prometendo uma saída para a crise nacional, a agudizou, acelerando o desmanche e o isolamento do país. A combinação de ultraliberalismo com neofascismo não atingiu apenas as camadas populares, mas contribuiu também para deteriorar o ambiente de negócios para o grande capital nas condições do capitalismo global. O que viceja, sob seu império, é uma lumpen-burguesia incapaz de estabelecer sua hegemonia no seio da classe dominante, mas cujos dirigentes ambicionam acaudilhar uma mobilização permanente da revolta popular.
Na coalizão instalada no Planalto em janeiro de 2019, todo mundo vigiava todo mundo. Com a saída de Sérgio Moro do governo, em abril de 2020, foi Rodrigo Maia que passou, desde a presidência da Câmara, a cumprir o papel de limitar os danos que o presidente e seu círculo promoviam aos negócios da grande burguesia globalizada. Porém, buscando se livrar da tutela de Maia, Bolsonaro se aliou e teve que entregar grande parte do seu governo ao Centrão vitorioso nas eleições deste ano para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Um mês depois, em março de 2021, o ex-presidente Lula teve as condenações contra ele retiradas pelo ministro Edson Fachin, até então um dos ativos defensores da lawfare encabeçada por Moro. A volta de Lula à cena foi uma admissão de derrota do centro neoliberal, de sua incapacidade de lidar sozinho com a extrema direita. A habilitação dos direitos políticos do ex-presidente pelo STF o mesmo que chancelou sua condenação em 2018 redefiniu o quadro político, que vem se tornando crítico para a grande burguesia. Essa iniciativa busca canalizar as energias da oposição a Bolsonaro para o processo eleitoral de 2022. O que move o andar de cima não é uma identidade com Lula, mas uma tentativa de constranger Bolsonaro, embaralhar o jogo e tentar cavar um espaço que viabilize uma candidatura da direita tradicional. É uma iniciativa para organizar o jogo político, focando também as aspirações populares para a institucionalidade eleitoral.
A disputa de 2022
Agora, toda a política institucional está se posicionando para a disputa eleitoral de 2022, trabalhando para “sangrar Bolsonaro”. Os cálculos pragmáticos começam a imperar entre as lideranças que se consideram com densidade eleitoral. Na esquerda, tudo parece girar ao redor da candidatura presidencial de Lula, que emerge fortalecida do reconhecimento da parcialidade de sua condenação. Mas a instabilidade vai se agudizar e não arrefecer, como já percebemos com a dinâmica da CPI no Senado sobre a Covid e o agravamento da pandemia. A própria presença de Bolsonaro na presidência é, depois da tentativa de golpe de Trump nos EUA, um convite à aventura. Dar o processo institucional por garantido é uma temeridade.
A pergunta chave para decifrar o atual emaranhado político é: o Brasil poderá continuar mais 18 meses nesta situação? Em todo o continente, com os mesmos problemas da pandemia que o Brasil, a resposta está sendo a impaciência das massas que saem às ruas.