Ana Carvalhaes
Ao que parece, a acomodação de interesses diversos e até díspares na consolidação do governo Bolsonaro está muito mais complicada do que parecia logo após a eleição, quando havia forte onda favorável por parte da mídia, do empresariado e de parcelas significativas da classe média e mesmo de setores populares.
O despreparo, ausência de limites, vocação antidemocrática e a pressa em atender reclamos do mercado, marcas dos integrantes da coalizão que veio para “mudar isso daí”, promovem sucessivos focos de incêndio e desastres em penca. Ministros são literalmente achincalhados pelo presidente via twitter, ameaças e chantagens se explicitam a céu aberto e anúncios de verdadeiras cruzadas macarthistas acontecem num cenário de estagnação econômica e descrença acelerada de que medidas ortodoxas possam reverter o mergulho econômico iniciado em 2015. Entender a barafunda em que o Brasil se meteu passa a ser tarefa urgente para a oposição.
Choques sucessivos
Foram choques sucessivos, num mesmo dia, sobre o que restou de opinião civilizatória, na classe média e nas classes trabalhadoras mais bem informadas do Brasil. No dia 1º de fevereiro, a um mês da gestão do governo de ultradireita, em entrevista concedida em visita a Israel, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, tenente-coronel da Aeronáutica e ex-astronauta, Marcos Pontes, voltou a afirmar que a Terra é redonda. Pontes lembrou ter confirmado com os próprios olhos a ideia de Galileu Galilei e que a ideia de Terra plana “não faz parte da Ciência”. (Nota a possíveis tradutores: não se trata de piada de brasileiros nem de fake news; foi fato.)
O posicionamento insolente, acompanhado de promessas de incentivo à inclusão de mulheres na pesquisa científica e nenhuma triagem ideológica para concessão de bolsas, desconcertou o exército de militantes virtuais (e reais) anti-iluministas, adoradores do presidente Messias uma frente única combativa de terraplanistas, racistas mais ou menos enrustidos, antifeministas, homotransfóbicos, anticomunistas, antiestatistas, antipobres em geral e religiosos fundamentalistas, de eficiência comprovada nas mídias sociais. Tampouco terão ficado satisfeitos com Pontes os tios antiglobalistas ou anti “marxistas culturais”, como se apresentam os titulares da Educação e do Itamaraty (este um desabrido partidário da plenitude da Terra).
A folclórica surpresa criada por Pontes veio se somar a outro curto-circuito que está se tornando comum: o vice-presidente Hamilton Mourão, general do Exército que ganhou fama ao se declarar favorável à intervenção militar para resolver a crise política, dizia a O Globo considerar as questões de natalidade questões de saúde pública da mulher e que ele, “como cidadão”, opina que o aborto seria uma “opção da pessoa”. Não demorou nem 24 horas para que figurões da recém-nascida bancada do PSL (partido do presidente) na Câmara dos Deputados, fundamental no novo xadrez do poder, mandassem um recado pela imprensa: “O aborto não será legalizado” e “não deixaremos passar essas pautas da esquerda”. Mais uma vez, Mourão, muito dado a atender à grande imprensa declarada inimiga por seu chefe, teria irritado profundamente não apenas os filhos do presidente, como também aos inúmeros colegas militares em postos decisivos no Planalto.
Menos de uma semana, os maus bofes de presidente e filhos com o general-vice haviam se acirrado num episódio seríssimo. Ao receber, em 24 de janeiro, a notícia da renúncia de Jean Wyllys (PSOL-RJ) ao terceiro mandato de deputado federal, por força de seguidas ameaças recebidas, o presidente tuitou “Grande dia!”. Filhos e partidários nas redes comemoraram sem disfarce. O vice-presidente, em contraste, declarou: “Eu acho que quem ameaça parlamentar está cometendo um crime contra a democracia, porque uma das coisas mais importantes é você ter opinião e liberdade para expressar sua opinião.” Curto-circuito.
Unidos contra o quê?
São apenas três exemplos pinçados dos muitos bate-cabeças e contradições já evidentes no governo de Jair Messias Bolsonaro, eleito por uma coalizão de forças antiesquerda, pró-mercado, anticosmopolista, partidária de costumes pré-Revolução Francesa (a de 1789, não a de 1968) e simultaneamente ultraneoliberal com a permissão do leitor para o neologismo. Ter fissuras e contradições não significa que não tenham pontos programáticos de intensa unidade. E, principalmente, inimigos comuns: “as esquerdas, os direitos humanos, o Estado protetor, a moral secular”, na síntese do antropólogo Ronaldo Almeida. Na visão de todas as partes do todo bolsonariano, precisamos entender que “esquerda” é muita gente. É qualquer coisa que remeta à preocupação pelo social, à constatação da desigualdade alarmante e a políticas para combatê-la; qualquer coisa que apele à solidariedade, à empatia com o outro; qualquer mecanismo que favoreça a defesa da vida e do meio ambiente; qualquer menção à existência e respeito à diversidade social, étnica, cultural e religiosa; qualquer menção ao embate livre de ideias e à possibilidade de respeitar existência e expressão de minorias; qualquer brecha que possibilite o movimento, o acionar de forças sociais capazes de questionar o status quo e brigar pelo seu quinhão na riqueza gerada pelas maiorias para as quais foi devidamente encomendada radical criminalização.
Jair Bolsonaro se elegeu graças à convergência de cinco grandes vetores ou forças político-sociais no tsunâmi conservador que já vinha como uma onda crescente desde 2014. Registro (porque gente “marxista cultural” como os que fazem e colaboram com esta revista não roubam ideia alheia) que o primeiro na imprensa a formular parte essencial dessa composição foi a metralhadora antipetista Reinaldo Azevedo, convertido de última hora à candidatura de Haddad. (Ah, as voltas que o Brasil tem dado!).
Em coluna na Folha de S. Paulo de 30/11/2018, o jornalista sintetizou: o novo governo é constituído por Polícia (Moro e seu entorno), Chicago (em alusão aos Chicago boys, ou mais adequadamente Chicago oldies, de Paulo Guedes e seus subordinados aos centros do capitalismo financeiro internacional) e Caserna, ou seja, as Forças Armadas, ou pelo menos a um setor importante delas.
Faltou ao inventor do termo “petralha” indicar o quarto e o quinto elementos (que também podem ser vistos como um só): a turma ideológica, os seguidores do filósofo Olavo de Carvalho e do marqueteiro de Trump, o guru pop da ultradireita global antiglobalista (haja dialética) Steve Bannon. Essa quarta divisão do exército governante é importante porque nela se localizam os filhos de Bolsonaro, a maior parte da bancada parlamentar do governo (o PSL) e os ministros da contrarrevolução na educação e nos costumes. O quinto e todo-poderoso são as cúpulas das igrejas evangélicas neopentecostais como a Assembleia de Deus e a Universal do Reino de Deus parte das quais esteve na coalizão de Lula e Dilma e cuja virada em direção ao candidato-capitão foi decisiva para o resultado de 2018.
Os Chigaco Oldies e a liquidação do Estado
O curso de economia da Universidade (privada, é claro) de Chicago é centro pelo menos americano (no sentido amplo) de formação de quadros neoliberais desde o tempo em que nem existia o termo neoliberal – porque nem Ronald Reagan nem Margareth Thatcher haviam chegado ao poder nos EUA e no Reino Unido. Foi lá que se formaram os economistas de Augusto Pinochet dos anos 1970-80 cujas reformas do Estado, das relações de trabalho e da Previdência são modelos para Paulo Guedes. Foi de lá que saiu Jeffrey Sachs, o consultor do plano devastador de privatizações e venda de pedaços do território na Bolívia dos anos 1980, promovido pelo ex-presidente meio-gringo Sánchez de Lozada. Esses foram os pilotos do que viriam a fazer Carlos Menem, FHC e outros governos neoliberais na América Latina dos anos 1990.
Paulo Guedes e seus subordinados no superministério da Economia, que aspirou funções das antigas pastas de Desenvolvimento e Comércio Exterior, do Planejamento, da Previdência e do Trabalho, são from Chicago só no sentido político-ideológico. São bem mais vetustos do que eram os “meninos” do ditador Pinochet e não têm os galardões prestigiados da instituição. São quase todos vistos como de segundo escalão pelos Manda-Chuva do mercado financeiro brasileiro, começando pelo próprio superministro, este um operador financeiro de reputação questionada por muitos. As exceções a essa fama de “medianos” são o ex-ministro (de Dilma) Joaquim Levy que vem presidir o BNDES para transformá-lo no seu oposto: o Banco do Subdesenvolvimento e Subordinação às Finanças Internacionais e de Mansueto Almeida, da Secretaria do Tesouro Nacional, experimentado servidor de carreira da área. Afinal, é preciso de alguém que saiba lidar com o cofre “da lojinha”. Mas todos têm passagem por alguma universidade dos EUA, ou pela PUC-Rio ou pela FGV carioca O desenho que Guedes deu a superpasta e as propostas iniciais de Reforma da Previdência, primeiro passo das contrarreformas estruturais que são obsessão do capital para o país, já demonstram o diferencial da equipe econômica atual em relação a neoliberais do passado. Não há espaço para menção a desenvolvimento e soberania econômica nem em dias de festa. O mesmo para política industrial, alívio tributário para os mais pobres, preservação de estatais estratégicas nem pensar. Guedes não esconde que, por ele, venderia todas as estatais, Petrobras incluída. Vai tirar a maioria do capital estatal da estrategíssima Eletrobras.
A equipe vai desprezar o Mercosul, acabando com qualquer negociação comum e praticando abertura comercial do Brasil para todas as quinquilharias do globo, via rebaixamento unilateral de tarifas de importação. (Indústria por aqui para quê, não é?) Em nome dos sacrossantos equilíbrios fiscal e meta inflacionária, ou seja, da manutenção do cassino financeiro global internalizado na gigantesca dívida pública, que é a delícia dos bancos e dos rentistas, vale não só conformar milhões de jovens de que jamais se aposentarão, como também reduzir de um para meio salário mínimo os benefícios de assistência social. Morram os miseráveis de hoje e criem-se os velhos pobres de amanhã.
Isso sem falar que os ultraliberais de Guedes são tão antiestado que nem a regulação, tão ao gosto de liberais do Primeiro Mundo, deve “interferir” no funcionamento do mercado: leis ambientais, antiagrotóxicos, vigilância sanitária sobre alimentos, segurança na aviação, defesa do consumidor seriam todas travas regulatórias! O comentário do insuspeito sociólogo tucano Sergio Fausto é preciso: “À luz do que aconteceu em Mariana e novamente em Brumadinho, nem é necessário insistir muito nos riscos dessa preferência ideológica”.
Tudo isso em perfeita sintonia com uma Casa Civil e um Ministério da Agricultura nas mãos do agronegócio (deputado Onyx Lorenzoni e deputada do DEM Teresa Cristina, a “musa do veneno”). A agricultura, aliás, incorpora a antiga função da Funai de demarcar terras indígenas, evidentemente para não demarcar coisa alguma e ainda fazer retroceder os processos em curso.
Moro, o xerife do Estado policial
Se o ideal de Paulo Guedes é o estado mínimo, a utopia do segundo super ministro de Bolsonaro, o ex-juiz e figura máxima da Operação Lava-Jato, Sérgio Moro, e seus subordinados policiais, procuradores e auditores, é o estado máximo para punir. Nada mais justo que visão como esta esteja bem localizada na hierarquia de fato de um governo cujo símbolo gestual de campanha foi a mão formando uma arma.
Moro tem tamanho destaque no governo porque ele e os amigos procuradores da Lava- Jato foram decisivos no giro à direita da classe média, possibilitado pela campanha anticorrupção, no incentivo às manifestações que sustentaram o impeachment e tudo o que veio depois. Foi ele o impecável o juiz no timing para “vazar” um áudio de Lula e Dilma. Nada mais meritório que um superministério para o “pai” da prisão do ex-presidente.
Mas as razões de ser estratégicas do Superministério da Justiça e Segurança Pública são o aprofundamento do punitivismo penal, do encarceramento em massa e da “licença para matar” concedida às já violentas polícias, em particular, as militares. A pasta reúne o que já foi civil (a Justiça) com Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, o sistema Penitenciário Federal, o velho SNI renovado (convertido em ABIN, mas nunca totalmente desprovido de seu ranço de arapongagem da ditadura) e o Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF) este, agora, motivo geral de insônia no andar de cima.
Se alguma dúvida ainda pairasse sobre o papel que se dispunha a cumprir o ídolo das multidões verde-amarelas no novo governo, Sérgio Moro a desfez com o pacote anticrime apresentado no dia 4 de fevereiro. Com os objetivos declarados de “endurecer os combates à corrupção, ao crime organizado e a crimes violentos”, o projeto modifica 14 leis, principalmente endurecendo as penas e dificultando progressão de regimes de fechado para aberto. Mas há uma modificação que deixa entidades jurídicas, de Direitos Humanos e movimentos sociais de cabelo em pé: a ampliação do conceito de legítima defesa, que facilita amplamente a justificativa policial para execução de suspeitos.
A turma do Olavo
Se a festa já estava estranha, é agora que entra o bloco dos esquisitos. Bolsonaro e o núcleo duro (Onix Lorenzoni e militares) precisavam encaixar no ministério que se prometeu enxuto o vetor mais ideológico. A este pertencem o próprio presidente e a família. A ala foi importantíssima nas batalhas das redes sociais, na conquista dos apoiadores mais militantes entre a juventude de classe média, empresários e mesmo de setores mais empobrecidos. É a turma do Olavo, seguidores do astrólogo, filósofo, ideólogo, na verdade um incansável militante político da ultra direita brasileira, radicado nos Estados Unidos desde 2005, Olavo de Carvalho.
Carvalho está para Bolsonaro e para a ultradireitista do conservadorismo verde-amarelo, como o marqueteiro Steve Bannon está para Trump, o trumpismo e a alt-right, a direita alternativa estadunidense. A relação entre as duas figuras não é só comparativa. Pondo de lado os estudos de astrologia (sério!!!), filosofia e muita sofística que Carvalho coleciona (copyright do professor Ruy Fausto, que considera Olavo um sofista, não filósofo), Olavo copiou de Bannon e do trumpismo quase tudo que ensinou à turma de Bolsonaro. Basta ler (é imprescindível e delicioso ler) “Vociferando contra o iluminismo: a ideologia de Steve Bannon”, uma análise viceral do que pensa o mais pop dos gurus da direita global dos dias de hoje, produzida pelo sociólogo da cultura norte-americano Jeffrey. C. Alexander.
Olavo de Carvalho é o guru do deputado Eduardo Bolsonaro, do chanceler Ernesto Araújo, a quem coube indicar, e de toda a ala que se propõe mais intelectualizada da aliança bolsonarista como os jovens empresários e empreendedores apoiadores do presidente, retratados na reportagem de Consuelo Diéguez no Piauí 148 (janeiro 2019). Parece ter dado aval também à es colha do ministro da Educação, um apagado docente conservador que fez carreira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), hoje estabelecido em Londrina (PR), Ricardo Vélez Rodríguez.
Não por acaso, a dupla Araújo e Rodríguez é aquela que mais sobressaltos têm motivado aos tecnocratas contrarreformistas do “ministério dos negócios” e ao setor militar do governo focados na urgência de fazer a infraestrutura funcionar, arrumar a casa e entender o novo Congresso para realizar a Reforma da Previdência e as privatizações. Na pressa de se somar ao esforço intervencionista de Trump e do Grupo de Lima contra a Venezuela (no que estaria em linha com gregos e troianos do gabinete), o atabalhoado Araújo quase declara guerra ao próprio alto comando militar brasileiro e ao vice-presidente, porque cometeu o desatino de desfazer um tratado de cooperação militar com o país vizinho sem consultar os militares.
Mais uma vez, o que parece cômico, apenas parece. Bolsonaro e Araújo perpetram uma contrarrevolução nas estruturas, papel e tradição histórica da diplomacia brasileira, capazes de na expressão do ex-embaixador Rubens Ricupero, chanceler de FHC, “fazer o Visconde Rio Branco”, fundador da escola diplomática brasileira, dada sempre mais a mediar do que arrumar encrencas, “dar voltas no túmulo”. Vélez é totalmente favorável ao projeto Escola Sem Partido que extermina a liberdade de cátedra e à extirpação completa da discussão sobre educação sexual nas escolas (o que eles chamam de temas de gênero ou “ideologia de gênero”).
Baseados no mesmo Olavo de Carvalho, os irmãos Bolsonaro e outros parlamentares do PSL repetem a torto e a direita que colocarão na ilegalidade partidos de esquerda como PT, o PSOL e o PCdoB, ou seja, “os comunistas”. Sem falar na famigerada ideia de tipificar como terroristas ao máximo possível de movimentos sociais.
A força neopentecostal
Com uma interseção de pautas ideológicas e de costumes muito ampla, ou seja, afinidade com o grupo anterior, o vetor evangélico neopentecostal da aliança bolsonarista terminou ficando reduzido, na Esplanada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a cargo da pastora e ex-assessora parlamentar Damares Alves. A pasta contempla, na concepção dos novos poderosos, assistência a pessoas com deficiência, mulheres, promoção de igualdade racial, crianças e adolescentes e o que vier a ser “Direitos Humanos” nas mãos de fundamentalistas dessa ordem. Damaris já foi pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular e, hoje, prega na Batista da Lagoinha das mais ferozes combatentes contra a laicidade do Estado. Além de ser militante da sinistra e polêmica causa da evangelização (leia-se aculturação) de indígenas.
Damaris se apoia na força dos 21,6 milhões de evangélicos que votaram em Bolsonaro no segundo turno e nos 84 deputados e 7 senadores eleitos da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) eram 75 e 3 da última eleição. Dos 84, quarenta foram reeleitos e 44 são novos entre os quais figuram lideranças de muito maior expressão. A frente se alimenta das bandeiras do combate à união homoafetiva, à ideologia de gênero, à “ideologização da escola”, à possibilidade de descriminalização do aborto, à pesquisa com células tronco no que se vale da frente única com parlamentares católicos carismáticos. Os números parecem indicar que o vetor fundamentalista religioso do bolsonarismo escolheu conscientemente o espaço legislativo como o campo de mando.
O que poucos sabem é que neopentecostais têm também programa econômico e muito bem acabado, totalmente em harmonia com os oldies de Paulo Guedes. Estudo levado adiante pela professora Monica Baumgartem de Bolle, diretora de estudos latino-americanos da Universidade John Hopkins, a FPE é fonte principal de agenda em várias áreas para a coalizão governante. Na seara econômica, ao contrário até mesmo da equipe de Guedes, as propostas da FPE apresentadas ao governo num documento chamado ironicamente “O Brasil para os Brasileiros” têm uma definição clara e precisa de (ultra e neo) liberalismo econômico. Note-se que de Bolle se reivindica liberal e feroz crítica da agenda de Guedes. A ironia se deve ao caráter absolutamente pró-globalização financeira, abertura comercial (Nova Abertura dos Portos às Nações Amigas), em detrimento do Mercosul, rígido equilíbrio fiscal. Ou seja, de neoliberalismo nos moldes atuais.
Todas as fardas do presidente
Finalmente, muito já se falou da presença historicamente inédita, nos governos de 1964 para cá, de tamanho número de oficiais das Forças Armadas nos primeiro, segundo e terceiro escalões do governo federal. Além do presidente e do vice, são militares oito dos 22 ministros. São 46 militares em postos de segundo escalão estratégicos, segundo informado pelo Planalto ao jornal Zero Hora (secretários -executivos de ministérios, assessores ou chefes de estatais). Mais de cem, segundo cálculos que levam em conta cargos técnicos-chave.
De certo ponto de vista, nada a estranhar: o “grupo militar” em torno de Bolsonaro, constituído por altos oficiais da reserva, principalmente do Exército entre os quais os generais Augusto Heleno, Oswaldo Ferreira e Aléssio Ribeiro Souto, além de dois brigadeiros da Aeronáutica, constituíram o sistema nervoso e coluna vertebral da campanha, em momento decisivo. Nada a estranhar também, dada a absoluta falta de quadros político-estratégicos e altos técnicos dos outros setores da coalizão em torno de Bolsonaro.
Do governo ao regime: os riscos de militarização
Há analistas que se esforçam por afastar qualquer temor de militarização do jogo político e risco à democracia. Para eles, a tropa de militares no governo (com o perdão aos senhores oficiais pelo trocadilho que lhes rebaixa a patente) seria oriunda da reserva e estaria, a maioria, cumprindo funções técnicas e civis. “Em 1964, as Forças Armadas assumiram o governo como uma instituição hierárquica e de Estado, e hoje esses (…) que estão no governo são da reserva, não compartilham as mesmas posições ideológicas e estratégicas, e não pertencem mais a uma mesma hierarquia de comando”, afirma o filósofo e cientista político José Luís Fiori, da UFRJ.
Quando diz “posições ideológicas e estratégicas”, Fiori refere-se ao “desenvolvimentismo conservador” da hierarquia militar do regime de 64, que não teria sido substituído por nenhuma outra visão estruturada de mundo. “Hoje, o mundo está em plena reconfiguração geopolítica e econômica”, continua. “Mas os militares brasileiros seguem pensando como no século XX, de forma binária, sem conseguir pensar uma nova estratégia na qual o Brasil não está mais obrigado a considerar como seus adversários aqueles que são apenas concorrentes e inimigos dos EUA”, desfere. Na visão do sociólogo Sérgio Amadeu, a falta do inimigo comunista da Guerra Fria, teria levado os militares brasileiros de volta ao “nacionalismo da ordem” da República Velha.
Com essa crise de modelo entre os quadros da caserna, a grande questão em aberto é que papel pode e está disposto a desempenhar esse vetor da aliança bolsonarista caso os planos do Presidente e o núcleo duro comecem a sofrer revezes ou mesmo algumas dificuldades no Legislativo e no Judiciário embora ambos pareçam muito alinhados ao Executivo.
À procura do coringa
Afinal, o Congresso que saiu das urnas de 2018 mudou completamente o quadro partidário da Nova República, inaugurada em 1985. Destruiu aquele que foi um dos sustentáculos permanentes das coalizões do regime de 1988 o PMDB, ou MDB, a aliança de oligarquias regionais sempre aliada a quem quer que estivesse no poder. O poder de fogo caiu de 65 para 31 deputados e perdeu as presidências de ambas as casas legislativas. O PSDB ficou reduzido a 29 deputados, ele que já foi um dos polos do sonhado (pela elite econômico-social) bipartidarismo tropical. Hoje, são 30 os partidos com representação no Congresso, sendo a do antes inexpressivo PSL (52 deputados) a segunda maior bancada, depois da representação do PT (55). O velho sistema político da Nova República está respirando por aparelhos, o sistema partidário, no mínimo, em “situação de transição” na comedida expressão do cientista político Sérgio Abranches. Quais dos vetores componentes dessa aliança vitoriosa ou parte desses vetores poderá cumprir o papel de coringa que sempre cumpriu o (P)MDB dos oligarcas regionais? Um bloco entre o DEM, o Novo e outras siglas da emergência neopentecostal? As alas mais extremadas do bolsonarismo no Congresso terão jogo de cintura para negociações e concessões próprias da vida parlamentar? Em caso de impasses no Legislativo, continuidade da polarização política e inquietude social, ficarão os militares da ativa disciplinadamente restritos às funções constitucionais? E os da reserva no governo? Qual é o limite da tutela sobre os demais ministérios e aliados de caminhada ao poder? Os próximos capítulos, nas instituições e nas ruas, serão eletrizantes.