Luciana Boiteux
Escrevo este texto no final de fevereiro, pouco depois de treze pessoas serem mortas por policiais militares em operação na comunidade Fallet-Fogueteiro, no centro do Rio de Janeiro. As fotos da casa onde foram executados os supostos criminosos são chocantes: mostram uma parede de ladrilhos brancos cobertos de sangue. Enquanto os moradores denunciaram o caso como chacina, afirmando que a polícia chegou atirando pelas costas, a PM alegava troca de tiros e confronto, ou seja, que teriam atirado em legítima defesa.
Não se sabe ainda como será registrada a ocorrência. Pela repercussão pública, pode haver uma investigação mais profunda. Tradicionalmente, no Rio de Janeiro, esse tipo de ação policial é catalogado como “auto de resistência”, algo denominado nos registros oficiais como “homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial”. Trata-se de um eufemismo que define uma ação policial legitimada de antemão. Provavelmente, o destino será o arquivamento vivemos em um país extremamente violento, que tem um dos maiores índices de homicídios do mundo, sendo ainda mais destacados os números de São Paulo e Rio de Janeiro. Este último foi recentemente objeto de intervenção militar na segurança, decretado pelo Governo Temer. Segundo o Observatório da Intervenção, durante o período no qual as Forças Armadas ficaram à frente da segurança, entre fevereiro e dezembro de 2018, ocorreram 1.375 mortes por ação de agentes do Estado, números 33,6% maiores do que os contabilizados em 2017 no mesmo período.
Atirar “na cabecinha”
Eleito governador do estado do Rio de Janeiro de forma surpreendente, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC), baseou a campanha eleitoral em propostas de aumento do poder da polícia, prometendo “abater” pessoas armadas com fuzis nas favelas com tiros na “cabecinha”. O aliado de Jair Bolsonaro tem se deixado fotografar em visitas ao quartel do Batalhão de Operações Policiais da PM (BOPE) fazendo flexões e corridas matinais ao lado de policiais militares. Tal posição leniente com a violência policial já rendeu um aumento da série histórica de mortes violentas no Estado: só no primeiro mês do novo governo, aliados de Jair Bolsonaro, agentes do Estado já mataram 160 pessoas, um crescimento de 82% em relação ao mês anterior, dezembro de 2018. É o segundo maior número de mortes para o primeiro mês do ano desde que se iniciou a série histórica em 1998. Tais números ainda nem incluem as mortes ocorridas em fevereiro no Fallet, já mencionadas.
A pergunta a ser feita diante dessa realidade é: como o sistema legal trata essas ocorrências e qual é a base para conceder, sem limites, esse poder de matar à polícia, ao legitimar execuções extrajudiciais? A concessão de maior imunidade ao policial, como pretende o atual Ministro Sérgio Moro, no projeto “anticrime”, tem condições de transformar a realidade violenta e garantir a segurança pública?
Formalmente, pela lei, em caso de morte violenta por causas não naturais, instaura-se um inquérito para investigação de crime de homicídio e apuração de autoria e circunstâncias. A política de garantir imunidade ao policial quando este executa quem considera “bandido” rompe com a lógica da lei e da Constituição de tutela da vida e do controle da violência. Instaura-se a legalização da barbárie, pois permite a chancela estatal de uma execução extrajudicial como estratégia de segurança pública.
Tal lógica repressiva e autoritária se reflete, na prática, em casos que envolvem mortes causadas por policiais em serviço, quando o registro de ocorrência adota uma denominação diferenciada de “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Isso já determina um procedimento alternativo, capaz de impedir investigação e levar ao arquivamento o mais rápido possível.
Papel do Ministério Público
Cabe aqui destacar o papel do Ministério Público, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. Segundo a Constituição (Art. 129, parágrafo. 4º) este é o titular da ação penal, que tem a autoridade para denunciar crimes e responsabilizar policiais por abusos e atuações fora da lei. Por outro lado, cabe aos juízes, nesse momento processual, acatar ou não o pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público, ou receber a denúncia oferecida por este, caso tenha sido constatada a ocorrência de crime.
Bruno Manso e Renato Sérgio Lima, autores de Narrativas em Disputa: segurança pública, polícia e violência no Brasil, comentam que “a ideologia do ‘bandido bom é bandido morto’, muitas vezes [é] reforçada pelo Ministério Público e Judiciário quando estes não condenam os padrões policiais de uso da força no Brasil como anômalos e inaceitáveis”. Se temos o Ministério Público, o Judiciário e o governador incentivando esse tipo de iniciativa, a tendência será aumentar ainda mais a prática, já naturalizada.
Licença para matar
Infelizmente, o que temos hoje no sistema penal é a chancela oficial pela completa imunidade concedida, mesmo sem base legal ou constitucional, a policiais que executam “bandidos”, sem dar-lhes direito a um julgamento justo. O método é atirar, é a lógica da guerra sem limites humanitários, o objetivo não é prender suspeitos, mas executar “inimigos”.
Em caso ocorrido há alguns anos, quando se investigava a morte de um conhecido traficante de nome Matemático, chamou a atenção o despacho do juiz acatando a opinião ministerial, louvando a eficácia mortífera dos heróis da polícia no confronto com “bandidos” e arquivando o caso reconhecendo a legítima defesa (a pedido do Ministério Público), diante de elementos fortemente armados que teriam resistido à ação policial. Depois se descobriu que o suspeito procurado fugia de carro e foi alvejado por meio de tiros de fuzil dados do alto de um helicóptero da polícia civil do Rio de Janeiro. A legítima defesa, nesse caso, não se sustentava em evidências, mas na afirmação dos policiais.
Apesar de vendida como uma solução para a violência e a criminalidade, a lógica do enfrentamento e das execuções de suspeitos em favelas e periferias não logrou atingir os resultados esperados. Ainda segundo Manso e Lima, “as mortes decorrentes de intervenções policiais já são a segunda causa de assassinatos em todo o Brasil, ultrapassando os feminicídios (946) e os latrocínios (2.447).”
Não obstante, o senso comum tende a considerar que a melhor estratégia de combate à violência é a repressão policial e o enfrentamento armado em territórios periféricos e pobres, sendo essa reação legitimada por uma maioria da população que, movida pelo medo, falta de informação e alguma manipulação, apoia o mote “bandido bom é bandido morto”.
Defesa da violência
Nesse cenário, chama a atenção, nas eleições de 2018, não somente a ascensão de Jair Bolsonaro, cuja trajetória política é vinculada às corporações militares e às milícias formadas por policiais, que sempre teve posições de defesa de ações violentas praticadas por agentes da lei, mas também a quantidade de militares, policiais e delegados eleitos para a Câmara Federal. De 19 na legislatura anterior, há agora 28 deputados. Os pronunciamentos do presidente eleito e de boa parte do Congresso Nacional vão na linha de defesa da criação de mecanismos de “proteção” de policiais “que impeçam a punição ou responsabilização”.
Sem dúvida, essa formulação de políticas ditas de segurança pública, deve ser situada na lógica de manutenção e reforço da dominação e controle das classes sub-alternas, baseadas não mais somente na criminalização da pobreza, que sempre se deu pelo investimento em encarceramento de corpos descartáveis em penitenciárias. A isso, agrega-se a adoção de políticas classistas e racistas de extermínio autorizado pelo sistema.
A ascensão do chamado Estado Penal nos países centrais por meio de uma onda punitiva, apontada por Loic Wacquant como uma resposta ao crescimento da insegurança social e não à insegurança criminal, reverbera na América Latina e países periféricos. Aqui, nota-se uma intensidade ainda maior, que envolve a autorização para matar como método.
Tudo isso para dizer que o “pacote anti -crime” do ministro Sérgio Moro, que traz diversas propostas de alteração da lei penal com o objetivo de dar-lhe maior rigor, em especial nos casos de crimes de corrupção, segue a linha contrária em relação à responsabilização de agentes da lei por crimes violentos praticados no cumprimento da função. Esse, aliás, é o foco do ex-juiz, responsável pela condenação de Lula, que lhe valeu a indicação ao cargo de ministro da Justiça do maior adversário do ex-presidente. Enquanto, por um lado, o projeto enviado ao Congresso reduz as hipóteses de prescrição e o acesso a recursos defensivos, propõe a criminalização do caixa dois, ampliando o Estado punitivo. Há uma clara ampliação legal dos limites do uso da violência por particulares e agentes públicos, limitando a atuação formal do sistema penal para estes.
Defesa em casos de feminicídio
Aqui nos referimos à mudança no texto do Código Penal que trata das excludentes de ilicitude. Isso abrange estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e no exercício regular de direito (Art. 23), por meio da redução e até mesmo isenção de penas nas hipóteses de abusos no direito de reagir, quando este for desproporcional, em face de perigo atual, de excesso de cumprimento do dever legal e na atuação em legítima defesa, quando a ação do agente decorrer de “escusável medo, surpresa e violenta emoção”, dando tratamento me – nos repressivos aos casos de excesso.
Essa inovação se aplica a qualquer pessoa e poderá ser usada como defesa em casos de feminicídios, até mesmo para levar a absolvição de maridos e companheiros ciumentos, assim como a brigas de trânsito ou de torcidas e a reações desproporcionais de proprietários de terras em casos de “invasão”, que dificilmente serão punidos.
Para isso, foi proposta a alteração da redação do § 2º. do Art. 23 que autoriza o juiz a “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso ocorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Especificamente, para proteger os agentes de segurança em geral e garantir-lhes ainda maior imunidade do que têm hoje, foi prevista a inclusão de dois dispositivos específicos às hipóteses de legítima defesa. A alteração se dá pela inclusão de um parágrafo ao Art. 25 do Código Penal, passando-se a considerar outras hipóteses de legítima defesa somente para agentes policiais: “Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”.
O resultado da aplicação prática de tais dispositivos, caso esse projeto de lei venha a ser aprovado no Congresso, será a oficialização da imunidade já garantida aos policiais que executam pessoas em favelas e periferias, o que poderá levar ao aumento das mortes.
É a lógica do medo e da sensação de insegurança que levam a população a legitimar tais execuções, incentivadas por manipulações midiáticas. Contudo, apesar de as pessoas em geral terem medo de morrer vítima de “bandidos”, é mais provável, no Brasil, uma pessoa ser vítima de um tiro da polícia do que ser morto por um assaltante.
Imunidade seletiva
Trata-se da previsão legal de um tipo de “legítima defesa presumida”, que já constava anteriormente do Art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890, usada à época para beneficiar o proprietário que matava o ladrão noturno (mais classista impossível).
Tal proposta é inconstitucional por criar uma categoria de pessoas às quais se garante imunidade por crimes de homicídio apenas por serem agentes da lei. Tal visão viola a lógica e a racionalidade, pois espera-se de policiais e agentes de segurança que sejam melhor treinados e preparados no uso de armas de fogo em situações de confronto. Nessa perspectiva, esses funcionários públicos deveriam estar sujeitos a regras mais rígidas, pois são pagos e treinados pelo Estado para proteger vidas e não para executar pessoas.
O dispositivo que Moro pretende aprovar, além de inconstitucional, fere ainda normas internacionais de direitos humanos, como o Código das Nações Unidas de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei, adotado pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, que no Art. 3º. determina que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever”.
Nunca é demais lembrar também que uma política governamental de execuções policiais sumárias foi considerada caso grave de violação de direitos humanos pela Corte Interamericana que condenou o Brasil, em 2017, a adotar medidas de redução da violência policial e de lesões corporais e homicídios dela decorrentes. Examinava-se o caso das chacinas da Favela Nova Brasília, ocorridas em 1994-95. Expressamente, constou da sentença que o conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deve ser abolido (cf. parágrafos 333 a 335 da sentença). Ou seja, o contrário do que se propõe agora.
Institucionalização do genocídio
A prática institucional de legitimar execuções policiais que Sérgio Moro quer legalizar no projeto não constitui mero equívoco ou uma ilegalidade menor. Trata-se de tentativa de institucionalização de uma política genocida dirigida ao extermínio de pessoas negras e pobres de favelas e periferias, que hoje já ocorre de forma cotidiana (ainda que fora da lei). Agora se pretende transformá-la em política de Estado.
Essa proposição concomitante à apresentação de uma reforma da Previdência não se dá por acaso e evidencia exatamente a lógica denunciada por Wacquant: do casamento de uma política social (por meio da lógica neoliberal de redução de benefícios sociais que levará ao aumento da pobreza e a piora das condições de vida de grande parte da população) com uma política penal de encarceramento e de extermínio justamente da população pobre, precarizada e que já teve reduzidos direitos trabalhistas. Agora ela poderá se tornar alvo legalizado de políticas oficiais de extermínio, o que não pode ser tolerado ou naturalizado mais do que já se verifica hoje na prática das instituições penais e policiais aqui já ilustradas.