Leandro Recife
A imagem do Brasil em nível internacional só tem piorado após o processo do impeachment e os assassinatos de Marielle e Anderson. Embora toda tradição de eficiência do corpo diplomático brasileiro, a política externa desmoralizou-se após Jair Bolsonaro nomear Ernesto Araújo, o pupilo do astrólogo Olavo de Carvalho, para o cargo de chanceler.
Por solicitação do Itamaraty, a diplomacia brasileira exigiu que toda e qualquer menção de gênero fosse retirada do texto no meio de uma discussão realizada em junho deste ano em Genebra, sobre o fim da discriminação de mulheres e meninas. Além das novas orientações antagônicas à tradição diplomática brasileira, Ernesto Araújo defende coisas inconcebíveis do ponto de vista das ciências, como “nazismo é de esquerda”, “terra plana” e “não existe aquecimento Global”.
Diante do pior Chanceler da história do Brasil, como um acordo com a União Europeia, que se arrasta há vinte anos, pode ser aceito sem o devido respaldo da população ou sem a devida transparência das tratativas? Tal acordo realmente será positivo para o Brasil?
Momento de crise
Apesar da euforia do governo Bolsonaro, o acordo entre Mercosul e União Europeia deve ser analisado com muitas ressalvas. Ele foi celebrado num momento em que Brasil e Argentina, além dos demais países membros e associados, passam por dificuldades econômicas e fragilidades que levam os governos a toparem qualquer tratado para dizer que conseguiram alguma coisa. E quando analisamos o panorama histórico, do período de tentativas que consolidaram o fechamento do acordo foram duas décadas de negociação. As conversas foram lançadas em junho de 1999. Uma troca de ofertas chegou a ser feita em 2004, mas não agradou aos dois blocos e as discussões foram pausadas. Entretanto, em 2010, houve uma nova abertura para negociações.
Apesar das idas e vindas, somente em 2016 os dois blocos voltaram a trocar propostas e neste ano, de forma nebulosa, até agora sem a devida transparência dos termos, o acordo foi celebrado.
Isso que nos faz crer que esse acordo não equivale às sete maravilhas propagadas pelos bolsonaristas, sendo fechado nesse contexto de crise na Argentina, ocasionada pela política neoliberal do governo Maurício Macri. Já o Brasil sofre com a crise econômica e social, além do desgoverno do clã Bolsonaro. Com os dois principais países do Mercosul fragilizados, o entendimento serviu potencialmente aos interesses dos respectivos governantes, não trazendo benefícios aos trabalhadores dos dois países. Além do mais, o acordo tem fortes características de seguir a antiga lógica colonialista, na qual Brasil e demais países da América Latina exportam produtos agrícolas e importam produtos industrializados dos países europeus.
Assimetria nas negociações
Pelo que se sabe, o acordo é caracteriza – do da seguinte forma: A UE abre o mercado agrícola e o Brasil abre o mercado industrial de serviço e financeiro escalonando a redução de tarifas aduaneiras, ao longo de um determinado período, até zero.
Existem algumas coisas que precisam ser ponderadas. O capitalismo até à década de 1990, por meio das grandes corporações, tinha como uma das características buscar novos mercados para diminuir os custos da produção. Em outras palavras, os países capitalistas desenvolvidos exportavam capitais, instalavam empresas e produziam em países não desenvolvidos. No Brasil, um bom exemplo é a indústria automobilística que recebeu todas as concessões, benesses e benefícios fiscais do Estado brasileiro. Representa bem essa fase do sistema capitalista.
Voltando ao acordo do Mercosul com a EU, pelas características, pela conjuntura e pelo notório despreparo do chanceler Ernesto Araújo, esse pacto pode impulsionar o processo de desindustrialização brasileira. Vale ressaltar que o país hoje já sofre muito com o avanço do rentismo e da ganância das elites, sob o argumento de diminuir o custo no Brasil e reduzir o déficit público, sem mexer no pagamento dos juros da dívida pública. O país congelou por 20 anos os investimentos na educação, saúde e assistência social, além de implantar uma reforma trabalhista que diminuiu a renda, precarizou os empregos e reduziu o número de postos de trabalho. O acordo com a União Europeia poderá alargar diferenças entre o capitalismo dos países desenvolvidos e a América Latina.
Desenvolvimento superior
A economia da Europa tem um grau de desenvolvimento muito superior à do Brasil. Em outras palavras, o Brasil ainda produz majoritariamente produtos primários e a UE produtos com grande valor agregado. O acordo ainda precisa passar pela aprovação do Congresso Nacional brasileiro e de todos os países efetivos do Mercosul e da União Europeia. Mas, mesmo assim, não podemos deixar de levar em consideração alguns pontos extremamente preocupantes. Toda política do governo Bolsonaro, em especial do senhor Paulo Guedes, visa a destruição do Estado brasileiro. Ou seja, estão implementando o que existe de mais atrasado na relação Estado e mercado. Uma verdadeira selvageria, com o Brasil cedendo espaço aos produtos industrializados da UE e sem o Estado brasileiro ser indutor do desenvolvimento econômico e social.
A política bolsonarista segue privatizando, destruindo a educação e aumentando a desigualdade social. Diante disso: como a indústria brasileira vai ter competitividade diante da europeia? Com os cortes na educação, que mão de obra qualificada a indústria brasileira vai produzir? Com o desmonte das Universidades brasileiras e Institutos Federais, que pesquisas serão desenvolvidas para solucionar, criar, diminuir custos e tornar o Brasil desenvolvido economicamente e socialmente?
Compras governamentais
O acordo tem potencial de aprofundar diferenças internamente e na relação do Brasil com outras economias. Um dos itens do entendimento versa sobre o mercado de compras governamentais. O Brasil, nos últimos 4 anos, teve a indústria da construção civil reduzida, enquanto na Europa existe incentivo, proteção e subsídios para empresas de engenharia voltadas ao mercado da América Latina.
Imaginemos que se abra uma licitação no Brasil para construção de uma estrada. Empresas europeias de engenharia, diante da situação atual das empresas brasileiras, terão ampla vantagem na disputa. O nexo colonialista predomina, pelo que se sabe, na essência do acordo. Historicamente, todos os países que se desenvolveram partiram da lógica de comprar produtos primários e vender produtos com valor agregado. E o acordo conduzido pelo senhor Ernesto Araújo parece negar isso, sob a falsa premissa de querer forçar a qualidade da indústria brasileira, quando, na verdade, tira a proteção e facilita a entrada de produtos industrializados da UE. Além do mais, o acordo, apesar do “princípio de precaução” que pode colocar barreiras para compra de produtos considerados suspeitos por uso de agrotóxicos proibidos ou criados em áreas de desmatamento, estimula exatamente o contrário e coloca em risco políticas ambientais, povos indígenas e aniquila ações governamentais voltadas à agricultura familiar e reforma agrária.
O papel do agronegócio
O agronegócio brasileiro, potencializado sem a devida regulação e controle estatal, como sempre se caracterizou, atrasará ainda mais o desenvolvimento brasileiro. Exatos 0,91% das propriedades rurais concentram 45% de toda área agrícola do Brasil, que utiliza imensas extensões de terra para o monocultivo de soja, milho, eucalipto e algodão, com sementes transgênicas que recebem altas doses de agrotóxicos levados por quilômetros contaminando solo, pessoas e rios.
O agronegócio brasileiro é responsável por 25% do PIB, sem praticamente pagar impostos, carrega assassinatos de indígenas, quilombolas, assentados, além do trabalho análogo à escravidão. Trata-se de um setor com peso na economia, mas que não gera muitos empregos, amplia a concentração de renda e desigualdades. É um dos principais responsáveis pelo atraso do Brasil. Enquanto países desenvolvidos, como a Alemanha, já estão implementando a 4ª Revolução Industrial.
Qualquer acordo comercial, seja com a UE ou com os EUA que não coloque o Brasil competitivo industrialmente para o mundo, que não gere empregos qualificados, não combata a desigualdade social e nem invista no desenvolvimento acadêmico, profissional e científico, além de não acabar com a dependência econômica da monocultura agrícola; não resolverá os problemas do Brasil. Países desenvolvidos estão discutindo e implementando a 4ª Revolução Industrial que tem como características sistemas ciber-físicos, internet das coisas, BigData, impressão 3d, inteligência artificial, além de robótica avançada, energias alternativas, redes inteligentes, realidade aumentada, nanotecnologia, biotecnologia etc. A 4ª revolução industrial devolverá competitividade aos países ricos, mas com graves sequelas para o mundo. Segundo a McKinsey, empresa de consultoria empresarial americana, 60% das profissões deverão desaparecer até 2025. Até 2022, um quarto dos shoppings centers americanos fecharão em decorrências das plataformas de vendas online. Diante de tudo isso, como o Brasil que firma um acordo com a UE que pode dilacerar a indústria poderá se desenvolver economicamente?
O desenvolvimento prejudicado
Enquanto o Brasil permanece potencializando o agronegócio em detrimento do desenvolvimento nacional, como um todo, a Alemanha conceitua e cria a indústria 4.0. Trata-se de uma iniciativa estratégica, lançada pelo governo alemão em parceira com a academia, sindicatos e indústria para o país assumir um papel pioneiro na produção e utilização de tecnologia de informação, gerando novos empregos e se colocando de forma competitiva para o mundo. Enquanto o Brasil corta 25% do orçamento da educação, ataca professores e tenta flexibilizar leis para a volta do trabalho análogo à escravidão, a Alemanha, somente em 2019, libera 160 bilhões de euros para universidades. O Brasil vive na “sojocracia”, a Alemanha na indústria 4.0. É preciso não esquecer que a Alemanha pretende assumir, até 2020, a posição de liderança na provisão de sistemas ciber-físicos. E o Brasil? aumenta o desmatamento? Acaba com reservas indígenas e aumenta a desigualdade. Os impactos dessas mudanças vão muito além da produção industrial.
Em grande medida, esses desenvolvimentos afetam toda a economia e a sociedade e colocam em discussão elementos fundamentais do mundo do trabalho e da produção. O Brasil sem investimentos na educação, com Universidades sucateadas, sem empregos e sem governo com visão estratégica, terá competitividade para enfrentar os novos desafios que o mundo capitalista nos impõe sem sacrificar ainda mais o nosso povo?
Impacto social
O acordo com a União Europeia pode ter um grande impacto social na América Latina, em especial Brasil e Argentina. Em nosso caso, uma das áreas afetadas poderá ser o programa dos medicamentos genéricos. Esse risco está relacionado à insistência da União Europeia em exigir que os países do Mercosul não quebrem patentes para a fabricação de medicamentos por um período de cinco anos após o registro. Outro pedido previsto no tratado é para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) conceda registro a remédios já aceitos no bloco europeu. Ambas as medidas retardariam a produção das versões de genéricos e prejudicariam o acesso da população aos medicamentos.
A implementação do acordo pode durar até um ano e meio. Alguns pontos se tornaram públicos, mas outros não. Infelizmente, sob a condução de Bolsonaro e Ernesto Araújo é impossível nutrir uma expectativa positiva, mas nos resta espaço para exigir que nenhum acordo comercial atente contra a soberania e o bem-estar do povo. É preciso ficar atento e pressionar o Congresso Nacional para não aprovar nenhuma medida com a União Europeia que aumente ainda mais a desigualdade.
O Brasil precisa investir na educação, nas Universidades, na indústria, gerar empregos e se tornar competitivo enquanto nação. O país não pode ser teleguiado pela imprensa, que não representa a opinião do povo brasileiro. Acordo comercial bom é aquele que nos faz crescer e não o que amplia nossas diferenças e desigualdades. Qualquer acordo comercial com qualquer bloco econômico ou país que não seja para o benefício pleno de nação serve apenas para alimentar a ganância das nossas elites e empobrecer a maioria do povo, a classe trabalhadora.