Julianna Malerba
Guilherme Carvalho
Mineração e questão agrária
A mineração tem crescido a taxas expressivas tanto no Brasil, como em todo o continente sul-americano. Entre 2000 e 2010 o setor teve um crescimento de 500% no país e as operações minerais, que, em 2004 eram na ordem de R$ 20 bilhões, em 2011 ultrapassaram R$ 85 bilhões. Nos principais estados mineradores Minas Gerais e Pará foram abertas novas minas de bauxita, cobre, manganês, níquel e tem se ampliado expressivamente a extração de minério de ferro, cuja produção estima-se que triplique até 2030 e atinja o patamar de um bilhão de toneladas/ano. A fronteira mineral tem se expandido também para outras regiões. Em 2014, dos 15 maiores investimentos em exploração geológica para fins minerais (que juntos somavam aproximadamente 116 milhões de reais), três estavam em Goiás, quatro na Bahia e um no Amapá e no Amazonas, embora Minas Gerais seguisse concentrando quase 60% desses investimentos (MINÉRIOS e MINERAIS, 2015, p. 38).
Ao longo da última década, aprofundou-se a dependência econômica do país com relação ao setor mineiro-exportador. Entre 2000 e 2010, a exportação mineral brasileira praticamente dobrou, passando de 163 milhões de toneladas para 321 milhões de toneladas. Segundo Milanez, “em termos econômicos, essa variação representou um aumento de US$ 3,2 bilhões (5,9% das exportações) para US$ 30,8 bilhões (15,3% das exportações)”. Ao contribuir expressivamente com a geração de saldos comerciais2 , a mineração tornou-se um setor estratégico para o governo Embora 70% das 3.370 minas que existem no Brasil (dados de 2009) sejam de pequeno porte (em geral, ligadas à extração de areia, saibro, cascalho e brita), a concentração dos investimentos e da produção do setor voltados para a exportação está nas mãos de corporações que controlam grandes minas, cujo processo extrativo exige redes de infraestrutura (ferrovias, estradas, minerodutos, plantas de beneficiamento, hidrelétricas) e montantes elevados de capital. Segundo o Anuário Mineral Brasileiro (DNPM, 2010), as 15 maiores empresas de mineração no país foram responsáveis por mais de dois terços da produção mineral brasileira. Somente a Vale detinha, em 2011, 72% do mercado nacional de minérios (Ayres, Apud BUSTAMANTE, 2013).
É justamente a grande mineração, sob controle de corporações de capital nacional e transnacional que atuam, em geral, de forma associada, que deverá seguir ampliando sua produção e seu peso na economia nacional, sobretudo neste momento de retração no preço das commodities minerais, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Com a crise de 2008 e a desaceleração, a partir de 2013, da demanda global (sobretudo chinesa) por minérios, o preço nominal da tonelada de minério de ferro, o principal item da pauta exportadora mineral do país, passou de US$ 179, em janeiro de 2011, para US$ 68, em janeiro de 2015. Esse cenário tem levado à concentração do mercado mineral, uma vez que pequenas e médias empresas não conseguem competir com as grandes, que passam a apostar na criação e ampliação de economias de escala (o que implica a reorganização do processo produtivo de modo a maximizar a produção, diminuir os custos e incrementar a oferta de bens e serviços), a fim de manter a rentabilidade de seus investimentos diante da queda do preço do minério no mercado. Na prática, isso tem levado as empresas a ampliar seu nível de endividamento, aumentando a centralidade da dimensão financeira em suas operações e o peso do compromisso com retornos de rentabilidade a seus acionistas. Ao mesmo tempo, intensifica-se a extração, aumentando os riscos para os trabalhadores e o meio ambiente (PoEMAS, 2015).
O rompimento da barragem de rejeitos da Samarco/Vale/BHP, em novembro de 2015, é um resultado trágico e concreto dessa tendência. Segundo estudo produzido pelo Grupo de Pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade, da UFJF e da UFRJ, o endividamento da Samarco vem crescendo progressivamente desde 2009, tendo sido ampliado em 29% entre 2013 e 2014, vis a vis a diminuição de sua lucratividade. Em 2014, a dívida bruta da empresa era três vezes maior que os recursos obtidos em suas atividades operacionais (idem, p. 9 e 10). O estudo demonstra que a relação entre seu endividamento e sua receita operacional tornou-se um fator determinante para elevação da produtividade como forma de garantir a remuneração dos acionistas. Isso significou uma ampliação expressiva nas taxas de extração, com aumento, consequentemente, do uso de recursos naturais (especialmente água) e de produção de rejeitos. Também resultou na adoção de “uma ampla política de terceirização (…) acompanhada pela deterioração das condições de trabalho” (idem, p.6).
É importante destacar que os processos de beneficiamento mineral são intensivos no uso de água e energia. A Albrás, a segunda maior fábrica de alumínio do Brasil, instalada em Barcarena (PA), consome a mesma quantidade de energia elétrica de Belém e Manaus, respondendo sozinha a 1,5% do consumo de energia elétrica do país, com seus 200 milhões de habitantes (PINTO, 2009). A construção de novas hidrelétricas de grande e médio porte na Amazônia tem, portanto, forte relação com o processo em curso de expansão da mineração no Brasil.
Além de usar muita água no processo de beneficiamento do minério, a ampliação das infraestruturas de escoamento, em especial dos minerodutos (que transportam os minérios sob pressão da água), também deverá aumentar a pressão sobre o uso da água: em Minas Gerais operam três minerodutos e pretende-se instalar outros quatro. Juntos, os sete minerodutos consumirão 8.170 milhões de metros cúbicos por mês, quase metade de toda a água consumida mensalmente por Belo Horizonte, que corresponde a 18.403 metros cúbicos (IBASE, 2012). O Relatório de Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil Informe 2012 já apontava a mineração como a segunda principal fonte de requisições de usos de água e indicava a forte tendência de crescimento das outorgas relacionadas à mineração entre os anos 2000 e 2012 (BITTENCOURT, 2013). O levantamento mais recente dos conflitos agrários no Brasil realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) informa que das 135 ocorrências registradas em 2015 no Relatório Conflitos pela Água, 76 envolvem mineração (Comissão Pastoral da Terra, 2015).
Seja pela pressão que exerce sobre os recursos naturais, seja pela reorganização espacial decorrente da estrutura logística necessária para extração, beneficiamento e escoamento, esse caráter intensivo no uso dos recursos naturais que marca as atividades minerais de larga escala como as que estão em curso no Brasil, revela conexões existentes entre as questões agrária e mineral, conforme atestam os dados produzidos pela CPT. Também apontam para algumas reconfigurações que a luta pela terra assume no momento em que a disputa pelo subsolo se acirra com o avanço da fronteira minerária.
Direitos territoriais e o embate entre as dimensões mercantil e (re) produtiva da terra
A Constituição estabelece que as propriedades do solo e do subsolo não coincidem, sendo o subsolo e seus recursos propriedade exclusiva da União, que concede, no interesse nacional, o direito de pesquisa e lavra, garantindo ao titular do direito minerário a propriedade do produto extraído e ao proprietário do solo uma participação no resultado da lavra. Entretanto, existe um claro conflito de interesses entre a mineração e outras atividades que também devem ser exercidas em prol do interesse nacional, como a reforma agrária, pelo tratamento constitucional que é dado a ambas.
Ainda que alguns pareceres da Procuradoria Geral da União defendam a prioridade da mineração em áreas declaradas de interesse social para fins de reforma agrária (DNPM, 2004), uma série de políticas de ordenamento territorial e conservação ambiental, conquistadas após a redemocratização, incluem mecanismos que criam, na verdade, restrições à atividade mineral.
De fato, o processo de territorialização da luta pela terra, empreendida nas últimas décadas por diversos grupos sociais denominados ou autodenominados “povos ou comunidades tradicionais”, resultaram em políticas de ordenamento que reconheceram a diversidade fundiária brasileira, garantindo segurança fundiária a comunidades e populações que possuem formas específicas de apropriação dos recursos naturais, o que incluem práticas de uso e acesso à terra diversas daquelas estabelecidas pelo paradigma liberal de propriedade privada. Tais políticas prevêem instrumentos que garantem, através de mecanismos do programa de reforma agrária ou do sistema nacional de unidades de conservação, a titulação coletiva das terras, protegendo-as da alienação. Até o momento, elas resultaram na exclusão de aproximadamente 158 milhões de hectares (que correspondem a terras indígenas e quilombolas, a Reservas Extrativistas, a Reservas de Desenvolvimento Sustentável e aos Assentamentos Diferenciados) do mercado, protegendo a posse da terra em favor de povos e comunidades tradicionais (VIANNA JR, 2013).
A impossibilidade de aquisição das terras cujos subsolos estão sob concessão das mineradoras as obriga a ter de reconhecer e garantir os direitos previstos pela Constituição aos superficiários, o que representa um impacto negativo sobre a sua lucratividade. No Projeto Agroextrativista Juruti Velho (no município de Juruti/PA), onde atualmente a mineradora Alcoa extrai bauxita, foi através da obtenção de um título de domínio coletivo que os comunitários conseguiram obrigar a empresa a compensar os danos causados pelas suas atividades e a reconhecê-los como superficiários, assegurando-lhes a participação no resultado da lavra, prevista no atual Código Mineral (NAHUM & CASTRO, 2012).
Além disso, em algumas unidades de conservação de uso sustentável que abrigam populações extrativistas, como é o caso das Reservas Extrativistas (Resex) e das Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), a mineração não é permitida, por “comprometer a integridade dos atributos que justificam a proteção dessas áreas” (art 225, CF).
Não por acaso, tais mecanismos estão na mira dos setores conservadores que hegemonizam o Congresso Nacional e que, nesse momento (março de 2016), discutem um novo Código Mineral para o país. A primeira comissão parlamentar responsável pela análise da proposta composta na sua maioria por deputados financiados por empresas mineradoras incluiu em algumas das versões do substitutivo ao projeto de lei artigos que ampliavam as garantias de acesso à água às mineradoras e que também visavam neutralizar os efeitos dessas políticas que, ao garantir direito à terra, limitam a atividade mineral.
Não é coincidência que, em um Congresso hegemonizado por interesses ligados ao capital agrário-financeiro-mineral, o novo código seja atravessado por questões relacionadas à política fundiária e ambiental. Ele se inscreve em um processo mais amplo de reordenamento normativo atualmente em curso no país, que visa desconstruir direitos conquistados por setores historicamente subalternizados, direitos que representam avanços diante da histórica concentração fundiária brasileira, pois fazem prevalecer a dimensão (re) produtiva sobre a dimensão mercantil da terra.
De fato, atualmente há no Supremo Tribunal Federal (STF) mais de 150 ações (CAPIBERIBE e BONILLA, 2015) contestando demarcações de terras indígenas. No Legislativo e no Executivo, dezenas de decretos, portarias, projetos de lei e emendas constitucionais em debate ou em tramitação visam impor limites às garantias constitucionais à terra a populações tradicionais (MALERBA, 2015).
A importância dessas terras para o setor mineral se expressa nos dados levantados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre conflitos envolvendo mineração e água, a que nos referimos anteriormente: 63 dos 76 conflitos envolviam populações tradicionais (pescadores, geraizeiros, camponeses de fundo de pasto, quilombolas, ribeirinhos, indígenas) que sofrem com a poluição ou a destruição de mananciais ou têm o acesso à água obstruído por atividades minerais (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2015, p. 118). É provável que isso se dê em razão de as terras comunitárias representarem, em algumas regiões, as áreas mais extensas de biodiversidade (CAPIBERIBE & BONILLA, 2015) e, consequentemente, em oferta de água, insumo essencial à produção mineral, mas igualmente fundamental à produção de alimentos.
Mas os conflitos agrários envolvendo a mineração não se limitam às terras comunitárias. Entre as ocorrências de conflitos por terra, em 2015, 67 estão relacionados à atividade minerária (Comissão Pastoral da Terra, 2015). Esses conflitos envolveram, além das populações tradicionais, assentados, sem-terra, posseiros e pequenos proprietários que têm sido vítimas de ações de violência decorrentes da atuação de mineradoras em seus territórios. Invasões de terras, ameaças de expulsão e despejo, destruição de moradias e pertences são as principais denúncias quanto à ação das empresas.
Isso revela que a disputa em curso não se limita à arena legislativa e normativa, mas segue se dando no nível territorial, reatualizando a forma historicamente truculenta como os setores econômicos se relacionam com grupos sociais subalternizados, quando estes representam “entraves” aos seus interesses. Quando estratégias mais sofisticadas de construção de legitimação social em torno dos empreendimentos (através, por exemplo, da antecipação de riscos e gestão de conflitos por meio da realização de diagnósticos participativos e de políticas de responsabilidade social, ou da redução da diversidade econômica e da ampliação da dependência econômica local à mineração) não funcionam, são acionadas as formas tradicionais de coerção, amparadas pela sólida e histórica aliança entre os setores econômicos e o Estado.
Um elemento importante a ser considerado nessas disputas é a articulação dos interesses envolvendo os setores mineral, madeireiro, de agronegócio, de empreiteiras e de energia, que têm atuado cada vez mais de forma combinada no Congresso Nacional, cuja bancada de parlamentares, apoiada financeiramente em suas campanhas eleitorais, age para garantir àqueles as condições de acesso, uso e controle de vastos territórios, em especial na Amazônia. Essa atuação em bloco tem propiciado mudanças substanciais na legislação e garantido toda sorte de benefícios fiscais, tributários e outros; bem como criado obstáculos à demarcação de terras indígenas e quilombolas e à constituição de novas áreas de preservação, favorecendo, dessa maneira, a expansão ampliada do grande capital, cuja capacidade de promover uma profunda reconfiguração socioterritorial é enorme.
A combinação desses interesses é visível nos territórios, como ocorre em Altamira, no Pará, com a construção da hidrelétrica de Belo Monte e a instalação de um grande empreendimento para exploração de ouro pela empresa canadense Belo Sun a cerca de 14 quilômetros da barragem. Daí que os processos de resistência se complexificaram, pois os embates não se dão contra uma ou outra empresa, um ou outro governo, mas contra um bloco de poder com grande capacidade de intervenção desde o plano local até o internacional, reunindo empresas nacionais e transnacionais, setor financeiro, governos, parlamentos, mídias corporativas, Poder Judiciário e mesmo ONGs, entre outros.
A violação de direitos é parte constitutiva desse processo de expansão acelerada do capital, e não algo estranho a ele. Esse é um dos principais motivos pelos quais indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos e outros setores são encarados como inimigos. Isto, aliado à criminalização da ação política levada a cabo pelos segmentos que se opõem ao modelo de desenvolvimento hegemônico e à desconstrução da democracia e de suas instituições, forma o tripé no qual se assentam os desmandos, a violência institucionalizada, a expropriação e a reprodução das desigualdades. A Amazônia que o diga.
Julianna Malerba é assessora nacional da FASE (www.fase.org.br) e doutoranda do IPPUR/UFRJ.
Guilherme Carvalho é coordenador da FASE Programa Amazônia e doutor em Ciência do Desenvolvimento Socioambiental pelo NAEA/UFPA.