Marly de A.G.Vianna
Há exatamente um século eclodiu na Rússia a revolução que derrubou uma dinastia que durava 300 anos, a dos Romanov. É um movimento que merece ser mais estudado e mais conhecido pela importância que tem e que foi eclipsado pelos acontecimentos revolucionários de outubro daquele ano. Tanto do ponto de vista histórico quanto político merece nossa reflexão.
Alguns dados que situem o leitor
A Rússia tzarista entrara na guerra desde seu começo, a 28 de julho de 1914. Os revezes que o Exército russo vinha sofrendo, em especial a partir dede 1915-16, deviam-se às suas tropas mal equipadas e mal preparadas para a guerra que tornaram comuns as deserções. Para que se tenha uma ideia das dimensões da tragédia, contam-se aos milhões as vítimas russas da carnificina cerca de dois milhões de mortos, muito maior número de feridos e mutilados e outros tantos feitos prisioneiros.
Diante da situação calamitosa, no final de 1916 o tzar Nicolau Alecssandrovitch Romanov (1868-1918) resolveu assumir a chefia do Exército, passando o comando do Estado à tzarina Alecssandra Feodoróvna (1894-1918), profundamente influenciada pelo místico charlatão Grigori Rasputin (1869- 1916). A situação da população russa, que já era péssima, piorou muito e a insatisfação ia num crescendo.
Aqui entram em cena as mulheres
O desabastecimento era geral, a carestia terrível, a exploração da força de trabalho aumentara muito, e era principalmente sobre os ombros das mulheres que pesava essa carga, a cada dia mais insuportável. Com a mobilização militar, foi a mão de obra feminina chamada a suprir as fábricas e eram elas as responsavam por alimentar a família. Principalmente, eram seus filhos, maridos, pais e irmãos que estavam sendo massacrados nos inglórios campos de batalha. E foram elas as primeiras a ir às ruas, dando início ao processo revolucionário.
No dia 18 de fevereiro de 1817 entraram em greve os operários da fábrica Putílov, em Petrogrado, na qual as mulheres eram a grande maioria. A greve foi total e outras fábricas começaram a parar, num grande movimento de solidariedade operária. No dia 23 de fevereiro, justamente no Dia Internacional das Mulheres (a Rússia usava o calendário juliano, que tem 13 dias de diferença para o atual e nosso, o calendário gregoriano), comícios e motins de rua se avolumavam. No dia 27, o Palácio Tauride, sede da Duma (o Congresso russo), foi invadido pela multidão, em grande parte composta por mulheres. Impossível não lembrar a tomada do Palácio das Versalhes, na França revolucionária de 1789, quando as mulheres derrubaram os muros do palácio aos gritos do “Ça, ça ira!”.
No dia 28, com a população dominando já a cidade e com medo de que a movimentação popular avançasse, o tzar abdicou, deixando o trono a seu irmão, o grão-duque Miguel Romavov (1878-1918), que não aceitou o cargo. Foi então proclamada a República e estabelecido um governo provisório, tendo como primeiro-ministro o príncipe Georgui Lvov (1861-1925), constitucionalista, e como ministro da Guerra o deputado socialista Alecssander Kerenski (1881-1970).
Em oposição ao governo provisório formou-se outro poder, um soviete (forma de poder popular surgida em São Petersburgo, na Revolução de 1905), o Soviete de Petrogrado. Eram 14 os que o compunham, sendo apenas dois bolcheviques. Foi esse soviete que fundou o jornal Izvéstia (Notícia).
O significado da Revolução de Fevereiro é uma discussão bastante atual, como o foi na época: até onde o movimento popular revolucionário deve e pode avançar? Há quem considere fevereiro de 1917 uma revolução democrático-burguesa e houve mesmo, à época, revolucionários que acreditaram que a República burguesa deveria ser consolidada antes que se avançasse rumo ao socialismo opondo-se, por isso, à Revolução de Outubro.
A meu ver, a revolução de fevereiro, inicialmente antiguerreira e, por consequência, anti-tzarista, tem um caráter original pela atuação popular e pela condução que os bolcheviques deram ao movimento. Estes consideraram a situação objetivamente revolucionária, levaram em conta a dualidade de poderes e se negaram a aceitar que o movimento revolucionário fizesse uma pausa, dirigindo-o, sem etapas, ao socialismo. Fevereiro foi uma revolução popular e democrática que, pela condução política dos bolcheviques, avançou para o socialismo. Não pode ser considerada uma revolução democrático-burguesa, até porque democracia e capitalismo são uma contradição em termos.
A Revolução de Fevereiro tirou centenas de revolucionários da cadeia e levou de volta à Rússia outros tantos, exilados na Síbéria e por toda a Europa. Nesse movimento de volta dos revolucionários, o momento crucial foi a chegada de Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924) a Petrogrado e suas decisivas para a revolução socialista Teses de Abril. Mas é tema que extrapola nosso assunto.
Dos grandes nomes femininos, nota-se que nenhuma das conhecidas militantes revolucionárias da época participou do movimento de fevereiro de 1917: Alecssandra Kolontai, Rosa Luxemburgo, Vera Zazulich, Emma Goldman, Fany Kaplan ou Clara Zétkin, entre elas, estavam ou na cadeia ou exiladas (com exceção de Rosa Luxemburgo, que militava na Alemanha).
Vera Zazulitch (1849-1919) tomou parte nos atentados contra o tzar Alecssander II e contra o governador de São Petersburgo, o coronel Triepov, mas foi absolvida num julgamento que teve grande repercussão. Vera iniciou sua militância em contato com grupos ligados a Mikhail Bakunin (1814-1876) e fez parte do grupo populista Naródnaia Vólia (Vontade do Povo), os naródnik. Aproximou-se depois de Gueorgui Plekánov (1856-1918) e de Pavel Acserold (1850-1928), chegando a ter contatos com Lenin. Com este, Plekanov e Acserold e outros participou da fundação do jornal Iskra (Centelha). Tornou-se menchevique e não apoiou a Revolução de Outubro. É conhecida também por sua correspondência com Karl Marx (1818-1883), a quem se dirigiu indagando da posição que teria a comunidade rural russa (obchina) na revolução.
Emma Goldman (1849-1940) foi militante revolucionária e lutadora pelos direitos da mulher. Não participou de fevereiro de 1917 porque estava presa nos Estados Unidos. De volta à Rússia, depois dos acontecimentos de fevereiro, apoiou ativamente a Revolução de Outubro, afastando-se dos bolcheviques depois do episódio de Kronstadt, em 1921.
Alecssandra Kolontai (1872-1953) foi ativa militante contra a guerra, tornou-se bolchevique e uma das primeiras revolucionárias a tentar organizar as mulheres operárias. Em fevereiro de 1917 estava exilada, retornando à Rússia logo depois do movimento. Militante bolchevique toda a sua vida, participou da direção do partido e teve grande atuação a favor dos direitos da mulher. Em 1918 organizou o I Congresso de Mulheres Trabalhadoras de Toda a Rússia e fundou a revista A Mulher Comunista.
Clara Zétkin (1857-1933) foi outra conhecida revolucionária que não participou da Revolução de Fevereiro por encontrar-se na Alemanha; foi ativa militante pelos direitos da mulher, tendo organizado, ainda em 1907, na Alemanha, o I Congresso de Mulheres Socialistas.
Fany Kaplan (1883-1918), socialista revolucionária (anarquista), também não participou dos acontecimentos de fevereiro por estar presa, sendo solta depois da revolta. Ativa militante, considerou que Lenin havia traído a revolução, principalmente depois do Tratado de Brest-Litóvsk (março de 1918) e acabou por atentar contra a vida do líder bolchevique, tendo sido presa e fuzilada.
Rosa Luxemburgo (1871-1919) havia participado ativamente da Revolução de 1905 e em fevereiro de 1917 estava na Alemanha, onde era uma das principais líderes do movimento revolucionário. Desde 1905 trabalhava ativamente pela organização das mulheres. Presa por paramilitares dos Freikorps, que depois se integrariam aos nazistas, foi por eles assassinada em 15 de janeiro de 1919. Também se destacou por sua discussão com Lenin sobre o papel da democracia e do povo na revolução, questionando o centralismo partidário.
Os nomes citados, com rápidos dados biográficos, são de mulheres lutadoras por seus ideais evolucionários, ainda que com diferentes visões em relação à revolução socialista o que nem sempre permitiu unidade de ação entre elas tem aqui o objetivo de lembrá-las. Foram todas elas combatentes pelos direitos das mulheres, efetivados pela Revolução de Outubro: igualdade salarial entre os sexos, luta contra o machismo, direito de voto, criação de creches e implantação de serviços que facilitassem as tarefas domésticas. É revoltante que, depois de tantas lutas, justamente próximo da data de comemoração do Dia Internacional da Mulher, o governo russo tenha descriminalizado a violência doméstica.
Homenageando as mulheres cujos nomes ficaram na história, por sua militância revolucionária, o principal objetivo aqui é lembrar as milhares de mulheres anônimas que fizeram a Revolução de Fevereiro, que continuaram a luta contra o governo provisório liberal-burguês de Kerenski, que suportaram com heroísmo a guerra civil a e construção do socialismo. Seus nomes estão perdidos na multidão. Mas foi essa multidão que permitiu a construção de uma nova sociedade, que se beneficiou dela e também sofreu (e sofre) por todos os seus fracassos.
“A última classe que luta contra a opressão e que é encarregada, segundo Marx, da ‘obra de libertação’ o proletariado não pode realizar esse papel, segundo Benjamin, se esquecer seus ancestrais martirizados: não há luta pelo futuro sem memória do passado” (Löwy, Michael, Walter Benjamin: aviso de Incêndio. Tradução de Vânia Caldeira Brant, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 109).