Gilmar Mauro
Para entender a questão agrária hoje e os desafios que estão colocados não apenas para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas para o conjunto da classe trabalhadora e a sociedade, é necessário resgatar o fato de que no Brasil, como em parte da América Latina, o processo de desenvolvimento sobre a base da brutal destruição de populações e de recursos naturais impacta a economia, mas também a conformação social, cultural, artística e de identidade. O fio histórico-político que aprisiona uma das dez maiores economias do mundo à condição de exportadora de matérias primas e a uma industrialização em aliança com os sistemas oligárquicos tem impactos profundos do ponto de vista da formação de nossa sociedade.
A luta pela terra, que se colocou desde a resistência indígena, o Quilombo dos Palmares, Canudos e Contestado, deu um salto com as Ligas Camponesas. Mas este processo foi interrompido com o golpe militar.
O projeto de desenvolvimento da agricultura brasileira da ditadura deveria cumprir quatro funções:
1) Continuar produzindo para exportação;
2) Produzir matérias primas para o mercado;
3) Produzir alimentos;
4) Liberar mão de obra do campo para a cidade.
É o tempo da revolução verde das décadas de 1960 e 1970, quando a expressiva produção de maquinaria e agroquímicos possibilitou o desenvolvimento agrícola sem a necessidade da reforma agrária.
O tema só voltará à pauta nacional de forma relevante com o surgimento do MST, em 1984, e até o início dos anos 2000, quando o governo Fernando Henrique decreta a moratória técnica da dívida brasileira. Mas retoma o processo de investimentos na agricultura com vários programas, na tentativa de equilibrar a balança comercial brasileira. Só que isso se dá sob a base de uma nova reorganização da agricultura, que passa novamente a cumprir o papel de exportadora de matérias primas.
O governo Lula dá continuidade a esse modelo, em um cenário internacional de elevação dos preços das commodities, priorizando investimentos na modernização da agricultura para exportação.
Nesse processo, a agricultura deixou de ser o espaço do fazendeiro, do produtor agrícola ou do latifúndio só, e se transformou em mais um espaço de valorização do capital como qualquer outro. Sobrando dinheiro no mercado internacional, que tinha excesso de liquidez, o capital internacional passa a comprar terras e investir na agricultura, que hoje é controlada por grandes grupos oligárquicos do capital financeiro internacional não só em toda a cadeia produtiva, como também na comercialização.
Há um crescimento econômico sustentado em três aspectos fundamentais: um aumento da demanda externa por commodities e a consequente elevação dos preços; o investimento público; e a criação de um mercado de massas. O Estado passa a investir na economia financiando empréstimos, de grupos empresariais a habitações populares. Grandes fusões, como a Sadia/Perdigão, se dão nesse período. E mesmo com muito endividamento, o mercado de massas estimulou o crescimento econômico e uma situação de pleno emprego, muitas vezes precarizado, mas com elevação dos salários inclusive.
Esse elemento em particular diminuiu a demanda da luta pela reforma agrária. Muitas pessoas que viam as ocupações dos sem-terra como alternativa passaram a trabalhar na cidade, principalmente na construção civil.
Compreender esse processo é importante para entender por que o debate político do MST sobre a questão agrária se altera a partir do novo milênio, passando da defesa de uma reforma agrária mais ou menos ao estilo distributivo-produtivista clássico para a luta por um modelo de desenvolvimento agroecológico.
Apesar de todas as dificuldades, o MST vai continuar ocupando terras, como forma de luta e de pressão. Porém, cada vez mais, terá que conjugar a luta econômica com a luta política. Até porque se os movimentos sindicais e sociais se restringem a uma condição de luta economicista, os partidos políticos distantes da realidade social caem em um processo de burocratização. E estamos assistindo a isso: partidos extremamente burocráticos, sem referência para discutir a problemática social, e movimentos sociais extremamente economicistas, caindo num reformismo ideológico e negociando absolutamente tudo em troca de pequenas coisas.
Com o desenvolvimento do capitalismo na agricultura plenamente consolidado, é necessário lidar com o fato de que a reforma agrária passa a ser não só uma questão dos sem-terra e dos movimentos camponeses, mas precisa ser discutida com toda a sociedade. Isso significa discutir o modelo agrícola, o modelo de sociedade, a economia, o modo de produção, a lógica e ordem do capital. Não à toa a criminalização da luta volta a se acirrar, como temos visto nos ataques aos povos indígenas em todo o país, e na chacina que tirou as vidas de dez trabalhadores em Pau d’Arco no Pará, quando se completam 21 anos do massacre de Eldorado dos Carajás sem que os responsáveis tenham sido devidamente punidos.
Para fazer esse debate com a sociedade, precisamos pautar pelo menos três questões fundamentais. A primeira delas é debater que tipo de uso nós queremos dar ao solo, à água, aos recursos naturais e à biodiversidade? Se é o uso que estamos dando hoje, não precisamos mais de reforma agrária. O capitalismo resolve esse problema. No entanto, precisamos ter a clareza de que esse uso expulsa o campesinato, concentra riqueza e terras e é extremamente degradador do meio ambiente e de todos os recursos naturais. O aquecimento global e a falta de água em São Paulo e em outros estados são processos que têm se intensificado em grande medida pela ação da indústria automotiva e petrolífera, mas também do agronegócio. Ao exportar soja e carne, na verdade estamos exportando a água e luminosidade, coisas que não se tem como recuperar. E à medida que a nossa economia se torna mais dependente disso, num processo estrutural que vem desde a nossa colonização, o impacto ambiental está sendo sentido já hoje, além do envenenamento e daquilo tudo que a gente conhece, toma dimensões catastróficas.
A segunda questão fundamental é o tipo de comida que queremos consumir? No modelo atual até mesmo a pequena agricultura está submetida à lógica e à ordem do capital. O pequeno agricultor tem a impressão de ter autonomia, mas produz o que o mercado quer, submetido à lógica da grande produção. É como se fosse um produtor assalariado, só que muitas vezes com mais precariedade do que um assalariado direto. E a padronização do tipo de alimentação consumida restringe cada vez mais a variedade.
Se na Idade Média a sociedade consumia mais de mil tipos de produtos diferentes, hoje 80% da alimentação mundial se resume a quatro ou cinco produtos (arroz, carne, soja, milho e trigo). Esse é o padrão mundial de comida, e isso a ordem do capital consegue resolver sem necessidade de reforma agrária. Agora, se é isso, temos que ter clareza que o processo de contaminação pelos agrotóxicos não é só um processo de contaminação para aquele que produz, mas também do solo, da água, de todos os recursos naturais. É um processo de contaminação para o ser humano. Além do câncer, há estudos efetivos que apontam para o fato de que a dislexia e o autismo, entre outros problemas de saúde a insumos agroecológicos e tecnologia que garantam produtividade sem impactar tão gravemente o meio ambiente isso implica a necessária mudança não só do modelo agrícola, mas do modelo econômico.
Não vai haver reforma agrária se não houver uma alteração na estrutura de poder, e para alterar a estrutura de poder é preciso reconstruir alianças com o conjunto da classe trabalhadora.
Assim, a reforma agrária não vai ser mais resolvida só com a ocupação, vai ter que ganhar outro espaço de debate político com os demais setores da classe trabalhadora e na sociedade.