Milton Temer
Capitalismo é crise. Capitalismo é corrupção. Não são acidentes de percurso. São partes inerentes ao regime.
Inevitável a crise, pela superprodução de mercadorias e superacumulação de capital. Pelo subconsumo por conta da exploração cada vez necessariamente mais intensa da mais valia do trabalhador. Pela diminuição da taxa de lucro consequente da concorrência entre as corporações, na disputa predatória de mercados consumidores.
De uma forma ou de outra, ou por todas simultaneamente, a crise existirá enquanto existir o capitalismo.
Inevitável também a corrupção. É produto “natural” da busca crescente de aumento de “competitividade” no vale-tudo do confronto intraclasse, quando todos se igualam na superexploração da mais-valia ou do trabalho escravo. A saída é pela sonegação de tributos, no drible da lei um dado a mais no estabelecimento de diferenças que se dará na maior ou menor competência dos seus “departamentos financeiros”.
Mas crise no capitalismo é também o momento em que se define uma de duas opções.
Ou bem um freio de arrumação ou bem um salto qualitativo progressista na organização social.
Freio de arrumação entre os membros e instituições da classe dominante, por meio de fusões de corporações, ou pela utilização do Tesouro nacional para manter de pé e mais forte ainda o sistema financeiro privado.
Salto qualitativo progressista, quando os de baixo se dão conta de que os de cima não têm mais condições de se manter hegemônicos apenas com pequenas concessões. Quando os de baixo se dão conta de que podem impor reformas profundas, estruturais, que abram caminho para uma sociedade qualitativamente mais justa e democrática, através da desconstrução e superação do regime vigente.
Mas por que a segunda hipótese não é a que se afirmar de forma mais constante? Por que são os agentes responsáveis pela crise que terminam, com algumas exceções, por fazer prevalecer sua hegemonia?
Uma explicação está certamente na diferença de dinâmicas na luta de classes. O desenvolvimento das forças produtivas se dá de forma muito mais acelerada do que a formação da consciência das classes trabalhadoras quanto a seu papel de agente contestador e transformador da realidade.
Na disputa do excedente da produção econômica a luta de classes leva vantagem, no momento da bola dividida, aquele que já está há mais tempo no controle do jogo. Tarefa facilitada à burguesia pelo controle dos aparelhos administrativo e repressivos do Estado. Ela joga de beque parado na defesa do status quo.
Já as classes trabalhadoras têm que romper uma muralha, faina bem mais difícil, antes de tudo pelo que necessitam organizar no que antes era fragmentado. A sociedade civil, nos momentos de chapa quente, em grande parte sabe o que não quer. Mas se divide sobre alvos diferentes no momento de definir o que pretende construir no lugar da sociedade que quer superar.
Interesses localizados, pautas sindicais ou identitárias, aceitas pelos de cima, terminam por operar como amortecedores, ao invés de propulsores do movimento.
Quando é que tal lógica se rompe? No passado e mesmo no presente, exemplos se afirmam.
Ou bem de forma completa, em processos revolucionários Rússia bolchevique de Lenin, China de Mao, Cuba de Fidel Castro ou bem em processos institucionais em andamento no contexto mais presente Podemos, de Iglesias, na Espanha; esquerda socialista nos Democratas americanos, de Bernie Sanders; Labour inglês, onde o socialista Jeremy Corbyn derrotou as correntes neoliberais herdeiras de Tony Blair; Jean Luc Mélenchon, com o France Insoumisse. (França Insubmissa), unindo o Partido Comunista Francês, o Parti de Gauche e os Independentes do campo de Esquerda, no país da primeira grande revolução popular vitorios.
Em ambos os casos processos insurrecionais ou disputas institucionais o fato marcante é a existência de uma liderança clara, representativa, até carismática. Individual ou partidária. Uma liderança capaz de formular propostas que não se mantêm na fronteira do palatável ao senso comum do conjunto de segmentos sociais alienados, sobre os quais a burguesia exerce sua opressão nas diversas dicações nos limites setoriais isoladamente, que o mundo do trabalho vai impedir que a crise promovida pelos capitalistas termine sob controle desses mesmos capitalistas. Ao preço de concessões, é verdade, desde que não lhes abalem as estruturas.
É radicalizando, indo à raiz do problema, o que não tem nada a ver com sectarismo doutrinário, didaticamente, com exemplos práticos.
Tomado particularmente, o exemplo de Bernie Sanders, por mais inesperado, vale atenção especial. Porque quem se debruça sobre a história dos Estados Unidos depois que seu combativo movimento sindical do início do século XX foi cooptado ideologicamente, sabe que falar em socialismo se tornou autoflagelação. Suicídio político e eleitoral.
Mas a partir de 2008, com a quase derrocada dos grandes bancos, por conta de suas criminosas operações especulativas na globalização financeira, o rei ficou nu, as vísceras do regime ficaram expostas, abrindo espaço para a viabilidade crescente de Sanders.
Ele correu o país com o discurso de combate à Wall Street como símbolo de um regime capitalista apodrecido. Falando em socialismo. Não foi ao segundo turno, onde teria tudo para bater Trump, mas afirmou um espaço político que não deixará de se ampliar ao se considerarem os termos em que o autocrático e destemperado governo atual labuta.
É nesse contexto que devemos recorrer à reflexão pioneira de Lênin que, diante de condições adversas, se empenha numa proposta partidária com claro cunho vanguardista em termos de formulação e de organização.
Introduz algo que a vida comprovou ser universal, e que era um passo adiante da concepção que Marx e Engels tinham da formação do partido operário.
Lênin reconhecia que a consciência da transformação de “classe em si” para o de “classe para si”, que o próprio proletariado em sua vocação tradeunionista não era capaz de concretizar, tinha que vir de fora. Tinha que vir de uma intelectualidade conquistada ideologicamente para o embate revolucionário.
Mas é principalmente nas suas Teses de Abril que ele comprova o papel de uma liderança com clareza do movimento tático necessário no momento histórico dado. Compreendeu que os poucos avanços do governo Kerensky, apoiado pelos mencheviques, apenas adiava o processo de restauração da dominação burguesa na sucessão do czarismo. E, mesmo com enormes resistências da direção bolchevique, insistiu e provou na prática a correção de sua formulação teórica. Suas teses se comprovaram na Revolução de Outubro.
Apologia do “cesarismo”, do líder carismático iluminado, que Gramsci vem a considerar nos seus Cadernos? Pode ser. Mas sem esquecer que o mesmo revolucionário sardo trabalhava sobre dois aspectos desse conceito “cesarismo positivo” e “cesarismo negativo”.
O primeiro, marcando avanços, saltos de qualidade na organização social. Que ele exemplifica no próprio César, da Roma Antiga, e em Napoleão I, na decomposição dos regimes feudais pelo continente, após a Revolução Francesa.
Poderíamos ter tido sua aplicação no Brasil contemporâneo com a eleição de Luís Inácio em 2002. Desde, é claro, que ele tivesse seguido a história programática do PT, e não tivesse se submetido à aplicação do pacto conservador de alta intensidade onde se viu seu governo pretensamente popular-democrático submetido à tríade maldita do grande capital bancos, empreiteiras e agronegócio.
Quanto ao negativo, está aí o que vivemos no Brasil, com o governo Michel Miguel, e com a parceria criminosa pmdb/psdb, tentando impor seu pacote de contrarreformas.
Distintamente de Lula e Dilma, de quem era vice, Michel explicitou um governo de classe. O do grande capital. Um governo de restauração de um retrocesso político-social mais acelerado até do que o imposto pelos tanques de 64.
É nesse cenário que a Esquerda Combativa, a que não se vendeu nem se rendeu, tem que fazer suas opções. Ruptura insurrecional, por massas nas ruas conquistando o aparelho de Estado, não é perceptível num país de complexidade e dimensões continentais, de várias “nações” regionais como o nosso. Onde o extrativista da Amazônia nada encontra em comum com o gaúcho do Pampa, nem com o trabalhador dos centros urbanos do Sudeste brasileiro.
É, portanto, pelo mesmo roteiro que levou Lula ao Planalto, entendo eu, que a esquerda deve encontrar o momento de confronto real. Numa campanha presidencial. Porque é nesse momento que o país se concentra na discussão de modelo de sociedade. De regime.
Se chegamos com Lula e fomos frustrados, podemos chegar com alguém que não tenha medo de definir uma alternativa radical, anticapitalista, não sectária nem isolacionista. Uma alternativa construída conjuntamente, com apoio dos segmentos progressistas da sociedade civil mobilizados, para mostrar que outro Brasil é possível.
Um Brasil soberano, socialista e sob permanente processo de democratização participativa.