Frederico Henriques
Desde meados da década de 1970, Antônio Gramsci tem sido citado nas mais diversas teorias e nos discursos políticos no país. Porém, é na década de 1980, com a queda da ditadura militar e a ascensão de novos movimentos sociais que seu legado é mais reivindicado. A crise econômica gerada pela dívida e os limites da acumulação do momento anterior, bem como a entrada dos movimentos sindical e popular em cena, foram aspectos centrais para o debate sobre a constituição do Estado brasileiro e o papel da sociedade civil.
Nos últimos anos temos visto exatamente a volta das massas às ruas a crise política e econômica tomarem o Brasil num vórtice de incertezas e instabilidade. Nesse contexto, a esquerda tem publicado inúmeros textos conjunturais, mas com poucos conceitos marxistas capazes de explicitar o momento em que vivemos. Resgatar Gramsci para debater as mudanças no processo de acumulação e apontar elementos sobre a crise é fundamental. Ao trazer algumas dessas ideias para o centro do debate, pretendo trazer luz na imprevisibilidade que se tornou a conjuntura nacional.
Ascensão e crise do neoliberalismo
Primeiro há de se compreender que o Brasil passou por uma reestruturação produtiva profunda nos últimos 30 anos, notada a partir da perda de participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto em 1985 o PIB industrial chegou a 21,6% de participação no PIB nacional, em meados de 2016 ela era apenas 11,6%. Para piorar, se formos contar o conteúdo importado dessa indústria, este aumentou de 8% a 10% nos últimos dez anos. Outro elemento marcante é o giro da balança comercial brasileira, que em 2008 passa a ter, depois de décadas, uma composição menor que 50% de produtos manufaturados. Essa profunda transformação vai ter impacto não apenas no trabalho e na vida social do povo, mas também na organização de toda a sociedade.
Tomando esses elementos econômicos em perspectiva, vemos que o processo de liberalização ocorrido na transição para o estabelecimento da Nova República não significou apenas um pacto político e democrático, mas também o avanço de um novo modelo de acumulação capitalista, no qual o setor financeiro passou a ser proeminente em composição com outros setores, como o agronegócio e o mercado de terras/imobiliário. Essa mudança estrutural também teve impacto no sistema político e nos partidos, uma vez que a derrocada do regime anterior fez com que surgisse uma nova polarização em torno do PSDB e do PT, na qual o PMDB se mantinha como fiel da balança, organizando o Centrão e representando o interesse direto de elites locais.
Por óbvio, existem diferenças entre os setores dirigentes dos dois partidos que culminaram em alguns resultados distintos em cada um dos governos. Ademais, o processo de abertura comercial, a estabilização da moeda e a privatização de empresas estatais culminaram, num primeiro momento, em um importante ganho de renda não apenas para as classes dirigentes, como também para as subalternas. Porém, a incapacidade de manter os endividamentos e as sucessivas crises internacionais fizeram com que o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso fosse a administração de uma forte estagnação. Apesar de a transformação da estrutura produtiva se manter, a crise nos países emergentes e uma forte alta dos preços das commodities fizeram com que esse período fosse marcado por um social liberalismo. Além disso, o retorno do crescimento econômico viabilizou um relativo aumento dos gastos sociais, especialmente, um avanço no crédito e no consumo das famílias, ao passo que grandes obras e programas como Minha Casa, Minha Vida financiavam as empreiteiras e o setor imobiliário, além das gigantes nos setores de commodities, que recebiam financiamento para expandir e oligopolizar os seus respectivos negócios.
Nesse cenário, os processos profundos de transformação da estrutura e a superestrutura no Brasil durante esses 20 anos podem ser caracterizados como uma revolução passiva. Esse conceito gramsciano foi utilizado para tratar de processos de transformações profundas nas sociedades em que as classes subalternas são incorporadas de forma passiva, em contraposição a processos como o da Revolução Francesa. A manutenção das elites políticas e econômicas nessa grande mudança, assim como a incorporação das classes subalternas de forma restrita, pela via do crédito do consumo, sempre de forma passiva, durante os governos do PT e do PSDB, são elementos que apontam para esse conceito.
Porém, com a crise de 2007/2008 e, especialmente, com a queda do preço das commodities no mercado internacional, o processo de acumulação do último período entrou em xeque. Nesse sentido, por mais que, nos últimos anos de Lula e no primeiro de Dilma, o governo tenha mantido o processo de crescimento e de acumulação, a partir de isenções fiscais e do endividamento do Estado, ele passou a ser insustentável. Com isso, setores da burguesia e do mercado começaram a exigir que o ajuste em cima do povo fosse aplicado para manter os níveis de acumulação.
Junho e a crise de hegemonia
Em junho de 2013 mais de 20 milhões de pessoas saíram às ruas para protestar. O movimento, que havia começado a partir de uma vanguarda ampla ao redor do Movimento do Passe Livre, pela queda do valor das passagens, rompeu barreiras e se tornou uma manifestação multitudinária, na qual as pautas por mais direitos sociais e contra a corrupção e contra os partidos tomaram as ruas. A marca profunda já começou a aparecer no mês seguinte, como apontou pesquisa da Datafolha, mostrando que no dia 1º de julho de 2013, a avaliação da gestão Dilma (PT) tinha caído 27 pontos. Em São Paulo, a queda de Alckmin foi de 14%, enquanto no Rio de Janeiro a aprovação do governo Cabral despencou 30%. O início do fosso entre representantes e representados estava aberto.
Ademais, a aprovação do pacote anticorrupção, que tinha como um dos elementos a regulamentação da delação premiada, ao lado do fortalecimento do Ministério Público a partir da derrota da PEC 37, que inibiria investigações no MP, foram elementos centrais que fortaleceram e viabilizaram a Operação Lava-Jato. Esta começa a todo vapor, centrada inicialmente no partido que dirigia o país há mais de 13 anos, mas que, após três anos de funcionamento, atingiu de maneira contundente todo o sistema político.
Essa crise de representatividade ou da democracia, para Gramsci, é uma crise de hegemonia. “Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais ‘dirigente’, mas unicamente ‘dominante’, detentora de pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais e não acreditam mais no que antes acreditavam etc.”
Um setor da burguesia nacional e políticos tradicionais do Centrão, não conseguindo compreender o momento, enxergam uma crise de direção e avalizam a operação impeachment para dar cabo ao ajuste econômico e estancar a Lava-Jato. Com isso, a crise não apenas se mantém, como também ganha novos contornos. Desse modo, a situação do próprio Temer se tornou insustentável.
A incapacidade de a classe dominante gerar um consenso ocorre para Gramsci “porque grandes massas, anteriormente passivas, entraram em movimento, mas num movimento caótico e desordenado, sem direção, isto é, sem uma precisa vontade coletiva”.
Junho gerou uma grande fissura no regime, interrompendo a modernização conservadora liberal das décadas anteriores, colocando as massas na reivindicação de direitos nas ruas. Apesar de a magnitude não se manter, vimos tanto marchas da direita reivindicando o avanço da luta contra a corrupção, como da esquerda pedindo a garantia dos direitos sociais. A crise de hegemonia também foi expressa com divergentes posições políticas em periódicos como Estadão, Folha e O Globo sobre os rumos do governo Temer. A crise se disseminou para as mais diversas organizações do regime: partidos, sindicatos, corporações. À combinação dessa crise de hegemonia com a crise econômica o autor chamou de Crise Orgânica.
O enigma da Lava-Jato
A falta de legitimidade e de consenso da classe dominante nesse período de crise faz com que ela tenha de usar de outros meios: a coerção, a fraude e a corrupção, a partir do aparato repressivo estatal; a liberação de mais recursos, para conseguir a compra de apoios; e manobras políticas que isolem a vontade do conjunto da população. É por isso que nos momentos de crise de hegemonia se fortalecem líderes carismáticos, bonapartistas, que se conectam por fora ao conjunto da população.
Esse interregno gerado por esse momento abre espaço para que burocracias que normalmente têm um controle direto da política passem a agir autonomamente. Os casos do Ministério Público, da Polícia Federal e dos setores do Judiciário são emblemáticos. Não necessariamente têm os mesmos interesses, tampouco os diversos níveis de atuação trazem características comuns, mas a fratura estabelecida entre a estrutura e a superestrutura enfraquece a classe dominante como dirigente e, por consequência, a capacidade de ela comandar o Estado como um todo.
Tomamos o exemplo das operações da Polícia Federal. Não é a primeira vez que o Ministério Público e a PF atuam de maneira coordenada contra setores políticos e empresariais. Talvez os casos mais emblemáticos recentemente tenham sido as operações Satiagraha e Castelo de Areia. Nos dois casos houve, de forma articulada, a intervenção do Executivo, seja pelo próprio Lula, seja pelo ex-ministro Márcio Thomas Bastos, seja pelos setores da grande mídia, por meio de um acordo com o Judiciário via Supremo, com Gilmar Mendes sempre como protagonista, para enterrar as denúncias. É exatamente no caso da crise que a Lava-Jato encontra um terreno propício para prosperar, e a população buscar os seus líderes carismáticos nessas operações.
Caminhos
“A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados.”
A aprovação pela força, pela coerção, pela corrupção e pela fraude de reformas como a trabalhista, assim como a terceirização, os ajustes, o fortalecimento de figuras como Bolsonaro, são elementos patológicos existentes neste momento. A confusão da dinâmica da conjuntura e o questionamento de antigas direções fazem com que haja um rearranjo geral das forças com a necessidade do estabelecimento de uma nova hegemonia.
Não é tarefa simples propor e estabelecer isso a partir de uma nova confluência. No período de redemocratização, foram mais de dez anos. Entretanto, temos de saber que o estabelecimento de uma nova alternativa não poderá ser feito com o velho. Ou seja, ele passa pela negação e pela superação da direção do antigo regime que tinha PT (especialmente com o lulismo), PSDB e PMDB como centro. É momento de a esquerda ousar e se posicionar de forma autônoma, radical e não ter medo de negar o regime da Nova República, já que a direita não perde tempo e também está buscando estabelecer esse novo consenso em outros marcos.