Ary Carvalho de Miranda
A transformação da natureza pelo homem é componente básico de sua sociabilidade, sem a qual não seria possível sua sobrevivência e reprodução. Durante milênios, tais transformações, decorrentes de processos produtivos, tiveram consequências localizadas ou com pouca capacidade de propagação. No entanto, fundamentalmente a partir do século XIX e, particularmente, desde a segunda metade do século XX e nos dias atuais, estes processos têm proporcionado alterações socioambientais de intensidade e escala jamais experimentada.
No Brasil, a invasão dos portugueses, em 1500, inaugura o processo de dominação sobre os povos locais, no qual a relação com a natureza foi mediada pelos interesses estritamente comerciais, e tudo passou a ser transformado em mercadorias, destinadas ao consumo europeu. Para tal, o plantation foi o modelo adotado para a organização produtiva. Tratava-se de grandes unidades de área contínua, com prática da monocultura. A força de trabalho escrava era combinada com técnicas de produção avançadas para a época, trazidas pelos europeus, e o monopólio foi a forma definida de propriedade da terra.
Em 1850, em decorrência da pressão inglesa para a substituição da força de trabalho escrava pelo trabalho assalariado, é definido o primeiro marco jurídico de propriedade da terra no país: a Lei 601 que, para impedir o acesso dos escravos livres à terra, institui a propriedade privada do solo, que, como afirma João Pedro Stedile, constitui-se como o batistério do latifúndio, que regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural, que é a base legal, até os dias atuais, para a nossa injusta estrutura fundiária.
Este seria, digamos, o elemento seminal do modelo de desenvolvimento agrário brasileiro, hoje marcado pela inserção do país na ordem econômica internacional como produtor de commodities agrícolas, pecuárias, minerais e petróleo, cujos processos produtivos são responsáveis por enormes impactos socioambientais. A revolução verde foi uma das forças motrizes deste processo, que articula monoculturas, o revolvimento intensivo dos solos, o uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos, a irrigação e a manipulação dos genomas de plantas e animais domésticos. Como destaca Paulo Petersen, é um sistema que promove a desconexão entre a agricultura e os ecossistemas naturais, rompendo as relações de coprodução entre natureza e agricultura, que orientaram o progresso técnico por milênios.
Mas não foi só no Brasil. Nos Estados Unidos, a partir dos anos 1960, o impacto do livro de Raquel Carson, intitulado Primavera Silenciosa, foi de tal ordem que desencadeou uma mobilização nacional, devido à utilização de agrotóxicos, que resultou na proibição do uso doméstico do DDT e, em seguida, na criação da EPA (Agência Proteção Ambiental). Em vários países ampliaram-se e diversificaram-se movimentos ecopolíticos. É o caso, por exemplo, do Environmental Defense Fund (EUA, 1967); da Fédération Française des Sociétés de Protection de La Nature (1968), do Friends of the Earth International (1971); do Greenpeace (Canadá, 1971), do Bureau Européen de Environnement (Bruxelas, 1974), que passaram a colocar em questão a forma de exploração dos ecossistemas e a degradação ambiental.
No Brasil, a partir dos anos 1980, a política agrária acentua significativamente os domínios do agronegócio, marcado pela intensa concentração fundiária por grupos transnacionais. Este fenômeno fez com que, em 2003, 112 mil propriedades concentrassem 215 milhões de hectares de terra e, sete anos depois, mais cem milhões de hectares passassem ao controle de grandes empresas. Deste modo, aprofunda a concentração de terras e acentua a expulsão de trabalhadores para áreas de expansão da fronteira agrícola e para grandes centros urbanos, intensificando conflitos socioambientais.
Ademais, as tecnologias que incorporam o uso intensivo e extensivo de agrotóxicos e fertilizantes químicos utilizados nas monoculturas ganham arranque, fazendo do país o maior mercado de agrotóxicos do mundo, seguido pelos EUA. A partir de 2008, nossa taxa de crescimento de importação de princípios ativos foi de 400% e a de produtos formulados foi de 700%. Este modelo químico integra um conjunto de práticas de trabalho degradante, com significativos impactos nos modos de vida dos trabalhadores do campo. Acidentes e doenças do trabalho, contaminação química das águas, do ar e do solo em toda a cadeia produtiva agrícola geram consequências importantes à vida dos trabalhadores e seus familiares e às espécies da fauna e da flora que lá permanecem.
Importa também destacar o significado das atividades mineradoras. O crime da Samarco, com o rompimento da barragem de minério de ferro, na cidade de Mariana, em Minas Gerais, em novembro de 2015, é apenas a expressão recente deste modelo, que acompanha o chamado mega ciclo das com modities minerais no mundo, a partir dos anos 2000, quando as importações globais de minérios passaram, entre 2003 e 2013, de US$ 38 bilhões para US$ 277 bilhões. Deste total, o Brasil, em 2013, apresenta-se como o segundo maior exportador, respondendo por 14,3 % de toda a exportação mundial de minério.
Em 2014 a Samarco faturou R$ 7,2 bilhões e, ainda assim, pela volúpia do lucro negligenciou a segurança ambiental, o que levou ao rompimento da barragem que matou 20 pessoas, desalojou centenas de suas casas, destruídas pelos rejeitos, e contaminou seriamente a bacia do Rio Doce, uma das mais importantes da Região Sudeste e do país, afetando a vida de milhares de pessoas. Estamos diante da maior catástrofe socioambiental do Brasil, e talvez a maior da mega mineração de ferro no mundo, inclusive com impacto adicional sobre o mar.
Trata-se de processos produtivos espoliadores dos ecossistemas pelo grande capital e que cursam com extrema violência. No decorrer do ano de 2009 foram registradas, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), 528 ocorrências de conflitos de terra, em todo o país. Em 2016, esse número chegou a 1.295, com 61 assassinatos. Houve também 172 conflitos por acesso e uso da água, atingindo 44.471 famílias. Houve ainda 2.639 famílias expulsas de suas terras, o que representa um número 232% maior que em 2015, além de prisões, destruição de casas, torturas e mutilações. Hoje, segundo o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), existem 120 mil famílias acampadas à espera de assentamento.
Todos estes episódios têm um componente comum: a apropriação dos bens naturais pelo grande capital e a resistência das populações atingidas, que incluem indígenas, quilombolas, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, ribeirinhos, faxinais e de fundo de pasto, assim como diversas outras expressões de trabalhadores do campo e das florestas. Todas são formas identitárias de uso comum dos recursos naturais por famílias agroextrativistas.
Tais identidades coletivas fazem surgir um conjunto de movimentos sociais, principalmente a partir dos anos 1980, em defesa da manutenção e da reprodução de seus modos de vida, como: MST, Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Coordenadoria Indígena Brasileira, Coordenação Nacional Quilombola, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento, Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento dos Ribeirinhos do Amazonas, Movimento Nacional dos Pescadores, Central de Fundo de Pastos, além de várias outras organizações. São movimentos que, em algumas de suas faces, também se internacionalizam. A Via Campesina é uma expressão disso. Composta por 164 entidades de 73 países, na África, na Ásia, na Europa e nas Américas, representa em torno de 200 milhões de camponeses.
Estes são componentes significativos do modelo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Enquanto para o capital, as condições de produção (que incluem riquezas naturais, força de trabalho e infraestrutura de comunicação, transporte, educação, saúde e demais capitais sociais) são essenciais para a acumulação de riqueza, para os trabalhadores e a população em geral, elas são essenciais na preservação, não somente de sua subsistência física, mas também de seu patrimônio cultural, expressão da produção e reprodução de seus modos de vida.
Todo este cenário inerente à crise socioambiental, expressa o que está sendo considerada como a “segunda contradição” do capitalismo. As crises tradicionais do capitalismo estiveram historicamente relacionadas às contradições entre forças produtivas e relações de produção e as formas específicas destas contradições repousam na realização do valor e do mais-valor, inerentes à produção e à circulação do capital, sendo a relação capital/trabalho o componente central destas contradições, cujo devir social se expressa na luta de classes. Por outro lado, a crise socioecológica, inerente à “segunda contradição”, expressa a contradição (para além da contradição capital/trabalho) entre o capital e as riquezas naturais, componentes das condições de produção, que devem ser compreendidas também como forças produtivas.
As interações do capital com as condições de produção têm nas riquezas naturais a viabilidade dos ecossistemas; a adequação dos níveis de ozônio na atmosfera; as mudanças climáticas; a estabilidade do litoral e áreas de drenagem; a propriedade e qualidade do solo; a qualidade do ar; o acesso à água e demais riquezas naturais. A força de trabalho é tida pelo grau de socialização do trabalhador e por todo o universo das relações de trabalho. Os meios de consumo coletivo para a realização da vida social, ou seja, o sistema de comunicação, transporte, saúde, educação, cultura etc, são componentes do capital social. Assim, a esfera do ambiente, onde se constrói a vida social, constitui-se não só como força produtiva, mas também como relações de produção, consignando o universo das contradições no interior do capitalismo. Ou seja, as contradições entre as relações de produção capitalista e as condições de produção são também entre produção e realização de valor e mais valor, exigindo que os agentes sociais de transformação no enfrentamento ao capital incluam, na agenda da luta de classes, questões relativas à segurança e à saúde nos locais de trabalho, produção e descarte de lixo tóxico, o uso de recursos naturais, os arranjos dos espaços urbanos, luta pela terra, entre outros.
Com este referencial, e asseverando o homem como parte da natureza, destacamos a crítica que faz Peter Dickens, em A Green Marxism? Labor Processes, Alienation and the Division of Labor, às concepções que não levam em consideração os mecanismos políticos e sociais que determinam a crise socioambiental: o capitalismo subjuga o homem ao capital no processo de trabalho e concebe a natureza como um meio, e não um fim, conferindo- -lhe valores, antes de tudo, monetários. Com isso, a relação de identidade que havia entre as pessoas e a natureza se transforma em relação alienada. Eis um dos desafios a enfrentar na perspectiva da luta política em direção à construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.