Ronaldo M. Gomes
De que SUS estamos falando?
Em artigo no número 16 desta revista, Lígia Bahia mostrou que existem diferentes versões do SUS (Sistema Único de Saúde), desde os que defendem a versão de um SUS focalizado, o “SUS para os pobres”, como é hoje, até os que se batem por seu projeto original, inscrito na Constituição de 1988 (nacional, estatal, público, integral, integrado, gratuito, universal, equânime e de qualidade).
Para esses últimos, segundo ela, a questão central é: “O que se precisa fazer para o SUS dar certo?” Mas a resposta a esta questão não é fácil, porque “a distância que separa o projeto original da Reforma Sanitária e do SUS [na Constituição Federal de 1988], do que existe na prática, é imensa”.
Por essa razão aquela autora, em depoimento no importante artigo-reportagem “Cai a ficha da reforma sanitária”, nos diz que o que restou do “SUS Constitucional” é quase “um saco vazio”.
E por que “saco vazio”? Porque o SUS e sua “Rede Nacional” de Atenção à Saúde estão, há longos anos, amplamente privatizados e submetidos de modo permanente à política partidária e eleitoral na União, estados e municípios.
Isto significa que, para os 150 milhões de cidadãos que dependem exclusivamente do SUS, os mais desfavorecidos, os que não têm poder aquisitivo para fugir para os planos de saúde privados, há longos anos os serviços oferecidos por este importantíssimo sistema público de saúde estão se degradando, o que resulta em sofrimento e mortes.
Por isso é urgente que enfrentemos a necessidade de responder à questão colocada por Lígia Bahia: “O que se precisa fazer para o SUS dar certo?”
Saúde, crise e contrarreformas: o que fazer neste momento?
É certo que ao longo do processo de impedimento de Dilma Rousseff (2/12/2015 a 31/8/2016), a direita mais corrupta e fascista empolgou o poder, e vem promovendo contrarreformas que retiram direitos políticos, sociais e humanos, e impõem os objetivos do capital financeiro rentista internacional e de seus aliados nacionais. Este processo impôs uma imensa derrota à esquerda e ao centro progressista, bem como ampliou sua fragmentação.
Por isto, quando se propõe o enfrentamento de questões setoriais, como o tema deste artigo, muitos se perguntam se, ao contrário, se não é o caso de juntarmos forças na luta mais ampla contra o avanço da direita, em busca de uma democracia realmente participativa e que privilegie as políticas sociais. Entretanto, esta é uma falsa dicotomia, pois o processo político mais amplo é, dialeticamente, causa e resultado do que ocorre nas lutas políticas setoriais.
Nesta perspectiva, é possível sugerir que no período após a Constituinte de 1987/88 o avanço da direita e do neoliberalismo, no quadro nacional, foi estimulado pela política de conciliação de classes explicitamente assumida pelo PT e seus aliados, no plano mais geral da política nacional, visando à conquista do poder nos municípios, nos estados e, principalmente, na Presidência da República, o que ocorreu em 2002.
Não à toa, o líder principal da direita mais corrupta e fascista que empolgou o poder no impedimento de Dilma era seu vice-presidente.
Em consequência, aquela política nacional de conciliação de classes, calcada em políticas sociais estritamente focalizadas e localizadas, cujo exemplo maior é o Bolsa-Família, permeou as políticas setoriais, em particular as políticas sociais e, em todas estas, provocou um recuo das forças de esquerda e do centro progressista, e foi realimentada por este recuo.
Por essas razões, cabe enfrentarmos as lutas setoriais juntamente com as lutas políticas mais amplas, não apenas para reforçarmos estas últimas, mas também para que, no caso de sucesso parcial, digamos com a conquista da Presidência, estejamos mais preparados para as etapas seguintes, respondendo às responsabilidades daí decorrentes em cada setor da gestão do Estado, em particular nas políticas sociais.
Por isso, no caso do SUS, é fundamental enfrentarmos a necessidade de responder à questão colocada por Lígia Bahia: “O que se precisa fazer para o SUS dar certo?”
Antes, porém, é preciso entender como chegamos à atual situação do SUS.
Política e saúde pública: uma dinâmica complexa
O processo que nos trouxe à grave situação atual do SUS e do que deveria ser sua Rede Nacional de Atenção à Saúde é de caráter sociopolítico, complexo, e não cabe aqui detalhá-lo. Por isso, entre os vários aspectos possivelmente determinantes desse quadro, registro apenas alguns, e de modo simplificado:
I. Em primeiríssimo lugar, temos a organização atual do que deveria ser a Rede Nacional de Atenção à Saúde do SUS, que seria o conjunto integral e articulado, em todo o território nacional, das unidades operacionais de atendimento a seus usuários. Essa rede englobaria desde os postos de saúde da atenção primária, as clínicas e hospitais para atendimentos de média complexidade, até os hospitais para cirurgias e tratamentos de alta complexidade, em todos os ramos da medicina.
Essa rede nacional não existe como rede articulada, pois a responsabilidade pela construção, manutenção e expansão de suas unidades operacionais está distribuída entre União, estados e municípios, os entes federados.
Considerando que o federalismo brasileiro, único no mundo, inclui a União, 26 estados, um Distrito Federal e cerca de 5.565 municípios, é fácil perceber porque a organização atual do SUS e de sua rede nacional é estruturalmente fragmentadora e desintegradora, e porque foi totalmente dominada pela política partidário-eleitoral. Por isso, ela é cada vez mais a grosseira colagem de milhares de «sistemas únicos” independentes, profundamente privatizados de vários modos, de “propriedade” de cada ente federado, inclusive a União e seus milhares de mutantes gestores políticos (dos entes federados) e “técnicos” das unidades operacionais (todos em cargos de confiança dos gestores políticos), totalmente submetida, essa organização atual, à política partidária e eleitoral. Esta situação produziu, ao longo dos anos, as mais diferentes tentativas de “soluções” para o SUS, em sua maioria completamente desintegradas umas das outras, e geralmente por obra do governo federal de plantão.
A mais recente e notória dessas iniciativas autônomas foi o programa Mais Médicos, que pretendia suprir os imensos vazios assistenciais nas periferias das grandes metrópoles e no interior do país, mas infelizmente se mostrou insustentável e limitada por diversas razões, entre estas pelo fato de que não basta apenas colocar médicos na atenção básica nesses vazios. É fundamental mantê-los por lá e fornecer os recursos de saúde necessários para dar continuidade ao atendimento daquelas populações.
É mais um curativo no SUS que agoniza!!!
II. Como pano de fundo, desde o fim da ditadura civil-militar tivemos a permanente hegemonia, sob diversas formas, dos setores mais conservadores, condicionando os complexos contextos políticos que sempre marcaram o tortuoso processo de construção do SUS e sua rede nacional.
III. Nessa dinâmica, a adesão de boa parte da esquerda, liderada pelo PT, ao que denomino “neoliberalismo-social” teve papel importantíssimo, pois uma vez no poder privilegiou políticas sociais focalizadas e privatizantes, em detrimento das políticas públicas, estatais, universais e gratuitas.
IV. Em consequência, ao longo dos anos, a adesão aos planos e seguros privados de saúde incluiu todos os acadêmicos que analisam e debatem o SUS e sua rede nacional; todos os gestores públicos dessa rede em todos os níveis e todos os seus funcionários; bem como o conjunto dos gestores e funcionários públicos em todos os níveis da federação. Além desses, temos também os funcionários de grandes e médias empresas, estatais e privadas, beneficiados com planos de saúde empresariais, incluindo boa parte da classe trabalhadora dos setores modernos da economia.
Ou seja, os formadores de opinião, os que têm maior acesso aos meios de comunicação e debate, e os que decidem, em todas as instâncias federativas e poderes da República, “não necessitam” do SUS, não apenas no sentido de que não o têm como primeira opção de plano de saúde, mas também, e muito mais simbólico, no sentido de que dele, como usuários em potencial, querem se livrar a todo custo.
Tudo isto resultou num quadro em que, grosso modo, existem hoje dois tipos de militantes pelo SUS, ambos muito heterogêneos: (1) com raras exceções, os acadêmicos, incluindo aqueles originários do Movimento da Reforma Sanitária, que aderiram ao lulismo e que defendem o SUS teoricamente; (2) a nova geração pós Constituição de 88, que milita e protesta intensamente contra a miríade de problemas do SUS e os ataques a este.
Sempre com as exceções de praxe, nenhum dos dois grupos tem visão estratégica e tática do contexto da luta e de seus objetivos principais e secundários; nenhum percebe ou quer perceber a importância fundamental do combate ao principal problema: a organização atual do SUS, federativa e municipalista, fonte maior de todas as outras questões.
O que fazer contra isso?
Essa é uma questão essencialmente política!
Por isto, na perspectiva deste escriba, e de autores importantes, só há uma alternativa: reconhecer e superar a razão principal dos graves problemas de carências, fragmentação, desintegração, fragilidade, submissão à política partidário-eleitoral e privatização do SUS e sua rede nacional.
Ou seja, assumir a liderança da proposta de uma Nova Reforma Sanitária, agora radicalizada em seu caráter civilizatório, antiliberal, por um SUS totalmente estatal e nacionalizado, nacionalmente gerido, integral e integrado em todo o território nacional, superando a organização atual de sua rede nacional, hoje estruturada num federalismo alucinado e autárquico, para que o SUS possa ser efetivamente universal, equânime e de qualidade, além de uma arma poderosa contra a politicagem, a medicina privada e os conglomerados financeiros da saúde, que hoje dominam o SUS e sua rede nacional em todos os entes federados.
A partir dessa proposta básica, ao longo dos debates entre os setores progressistas da sociedade, o enunciado e a formulação dessa Nova Reforma Sanitária que se tornarem majoritários vão orientar a luta por um novo SUS.