Daniel Aarão Reis
O presente artigo tem dois objetivos: mostrar que existiram várias guerras civis na Rússia após a insurreição de outubro de 1917 e sustentar que, durante estes conflitos, houve uma revolução na revolução, de onde surgiu um modelo imprevisto de socialismo o socialismo autoritário.
A revolução de fevereiro de 1917, derrubando a autocracia czarista, suscitou o aparecimento de múltiplos poderes, exercidos por organizações populares dispostas em rede, e que não aceitavam hierarquias de qualquer natureza: sovietes (conselhos) de operários e soldados, comitês agrários e de soldados, comitês de fábricas e de bairros, milícias armadas (guardas vermelhas), sindicatos, assembleias e associações de várias origem, numa efervescência política singular, que fez da Rússia “o país mais livre do mundo”.
Esta rede de organizações expressou interesses populares resumidos em cinco reivindicações: fim da guerra; revolução agrária; controle operário das indústrias; abastecimento das cidades e dos campos; independência para os povos não russos.
Como a queda do czar não levou ao atendimento de tais demandas, os movimentos sociais radicalizaram-se, beneficiando os partidos que propunham a transferência de todo o poder aos sovietes: os bolcheviques, os socialistas revolucionários de esquerda e outros grupos menores.
A insurreição de outubro resultou deste contexto. É verdade que ela foi premeditada pelos bolcheviques, evidenciando uma orientação golpista, pois não foi previamente aprovada pelo congresso dos sovietes. Entretanto, obteve maciço apoio, pois os decretos revolucionários atenderam incondicionalmente às pressões das maiorias. Formou-se uma grande aliança social, dando amplo respaldo à revolução e é isto que explica seu caráter fulminante “Mais fácil do que levantar uma pluma” (Lenin) e também os acontecimentos de outubro a fevereiro de 1918, quando a autoridade do governo revolucionário se estendeu ao conjunto do ex-império russo, excetuadas as regiões ocidentais ocupadas pelos alemães.
Entretanto, a revolução suscitou inimigos irredutíveis: as classes proprietárias, as elites sociais e as potências capitalistas. Estes cedo se organizariam em torno da bandeira branca da contrarrevolução, uma primeira guerra civil, de brancos versus vermelhos.
Os exércitos alemães foram o primeiro ponto de apoio da contra revolução, sobretudo depois da paz de Brest-Litowski, de 3 de março de 1918. Eles tomaram as províncias ocidentais da Rússia e a Ucrânia, apoiando movimentos contra o go – verno soviético, como as rebeliões dos cossacos no Sul do país. Um exército de 40 mil homens chegou a cerca de 240km de Moscou, antes de ser derrotado. Outro “exército de voluntários”, em torno de ex-generais, no Sudeste da Rússia, também recebeu proteção dos alemães, constituindo uma tropa de 35 mil homens.
Enquanto isto, no Norte e no Extremo-Oriente, no Pacífico, desembarcaram tropas estrangeiras de diferentes nacionalidades: estadunidenses, inglesas e japonesas.
Ainda no ano de 1918, forças socialistas promoveriam uma segunda guerra civil: vermelhos versus vermelhos. Desde Outubro, socialistas revolucionários de direita, mencheviques e outros grupos denunciaram o “golpe” da insurreição, retirando-se do II Congresso dos Sovietes. Conversações por um governo socialista plural não prosperaram, gerando ressentimentos. O fechamento da Assembleia Constituinte (em 6 de janeiro de 1918), onde esses setores tinham maioria, radicalizaram sua oposição.
Críticas de esquerda à criação de uma nova polícia política, a um exército vermelho hierarquiza – do e à subordinação dos sovietes urbanos e dos comitês agrários ao Estado denunciavam a “ditadura bolchevique”. Após a paz de Brest-Litowski, os socialistas-revolucionários de esquerda saíram do governo. Pouco depois, em virtude de uma nova política agrária, adotada em maio e junho de 1918, autorizando requisições violentas de cereais, eles passaram a conclamar a derrubada violenta do governo revolucionário.
Em junho, os socialistas revolucionários tomaram a cidade de Samara, no Volga, de onde se estenderiam para o Norte. Formaram um governo alternativo, o Komuch, invocando a legitimidade da Assembleia Constituinte.
Em julho tentaram um golpe de estado em Moscou, derrotado. Em fins de agosto, uma militante socialista-revolucionária quase matou Lenin, deixando-o ferido. Iniciou-se, então, o terror vermelho, o que facilitou amálgamas entre oposicionistas moderados e radicais.
Para vencer os SRs, o Exército Vermelho desencadeou uma campanha militar no Volga. A muito custo, até novembro, retomou as cidades do grande rio. Foi convocada, então, uma conferência de Estado, em setembro, que formou um governo, em Omsk, na Sibria Ocidental, reunindo direitas e esquerdas. Teve vida curta, tendo sido detonado por um golpe militar sob a liderança do almirante Koltchak, apoiado pelos ingleses.
Numa outra frente, uma terceira guerra civil oporia os vermelhos às nações não-russas. É que os bolcheviques não reconheceram na prática o direito à secessão, a menos que fosse exercido por sovietes operários. Ora, estes só existiam nas cidades. E na maioria das nações não russas grande parte da população urbana era de origem russa, não desejando separar-se da “mãe-pátria”. Assim, na primavera de 1918, antes mesmo do acordo de Brest-Litowski, os bolcheviques invadiram a Ucrânia, pondo fim à República Popular existente naquele país, formada por políticos de esquerda. Cedo os alemães os expulsariam, mas o episódio revelou que os bolcheviques não reconheceriam, quando e onde pudessem, o direito à independência dos povos não-russos.
Assim, em 1918 desenharam-se três guerras civis: vermelhos versus brancos; vermelhos versus vermelhos; e vermelhos versus nações não-russas.
Em fins deste ano, porém, o encerramento da Primeira Guerra Mundial ensejou uma reviravolta. A revolução social na Alemanha reabriu a esperança de uma revolução internacional. Além disso, a retirada do exército germânico retirou o apoio às tropas brancas e aos nacionalistas de direita. Mas se criaram também condições para uma ampliação da intervenção dos vencedores da guerra: a Inglaterra, os Estados Unidos e França.
O ano de 1919 seria o mais difícil para o governo revolucionário.
As expectativas de uma revolução europeia não se realizaram. Na Alemanha prevaleceu o reformismo, escorado na Constituição de Weimar, uma das mais progressistas do mundo de então. A extrema-esquerda, organizada no Partido Comunista Alemão, foi quase aniquilada. Na Hungria, a revolução social sustentou-se apenas entre março e agosto. Houve movimentos radicais em várias partes da Europa, mas não novas revoluções.
Os prognósticos otimistas da Internacional Comunista, fundada em março de 1919, não vingaram. A Rússia revolucionária estava isolada.
No Sul e na Sibéria, formaram-se dois exércitos brancos, apoiados logisticamente (armas e tanques) pela Inglaterra, retomando a guerra entre vermelhos e brancos.
Tais ofensivas, contudo, embora em certo momento ameaçassem Moscou, foram derrotadas pelo Exército Vermelho, que se transformara num poderoso e organizado instrumento militar.
No Ocidente, outro exército branco, apoiado por franceses e ingleses, chegou a 30km de Petrogrado em outubro de 1919, mas foi vencido por uma contraofensiva dos vermelhos.
Entre abril e outubro de 1920, houve uma campanha militar suplementar. O governo polonês, incentivado pelos franceses, invadiu a Ucrânia com o objetivo de refundar uma “grande Polônia”. Mas o Exército Vermelho, numa contraofensiva fulminante, chegou a ameaçar Varsóvia. Os movimentos revolucionários europeus seriam reativados? A hipótese não se confirmou e a paz de Riga, em 1921, selou o fim das guerras civis.
Em 1919 e 1920, a polarização entre vermelhos e vermelhos perdeu relevância, mas houve ainda alguns episódios importantes, como a ação do exército negro, de orientação anarquista, liderado por N. Makhno, esmagado pelos vermelhos na Ucrânia. Houve também insurreições camponesas, de caráter local ou regional, incentivadas por socialistas revolucionários, mas sem maiores consequências. As alternativas socialistas não bolcheviques, imprensadas entre vermelhos e brancos, não se consolidaram em parte alguma.
Já a questão nacional permaneceu acesa. Em começos de 1919, aproveitando-se da retirada alemã, os bolcheviques tentaram, onde puderam retomar posições. Na Finlândia e na Polônia não foi possível reverter a independência conquistada. Organizou-se, porém, uma república soviética na Letônia, mas que durou pouco. Na Ucrânia, na primavera de 1919, os soviéticos voltaram a derrubar um governo nacionalista de esquerda, recém constituído em Kiev. A situação, entretanto, ficou instável e só seria normalizada em meados do ano. No Cáucaso, na Ásia Central e na Sibéria, os bolcheviques retomaram o controle político e militar, mas aplicando políticas mais flexíveis, reconhecendo alguns direitos nacionais, excluída a hipótese da secessão.
Em 1921, o governo revolucionário assumira, contra todos os prognósticos, o controle da maior parte do território do ex-império russo.
Como explicar e interpretar o fenômeno?
Os bolcheviques tiveram vantagens geográficas, demográficas, econômicas e militares. Nos momentos mais críticos, mantiveram o controle das zonas mais desenvolvidas economicamente, com arsenais e fábricas de armas e rede de estradas de ferro e de rodagem. Combateram sempre em linhas interiores, ou seja, locomoviam tropas e materiais de um front para o outro com rapidez. O tamanho da população foi outro importante aspecto: os bolcheviques governavam cerca de 60 milhões de pessoas, o que lhes proporcionou massa crítica para recrutamento e organização de com – batentes para a guerra: em 1919, o Exército Vermelho dispunha de cerca de 700 mil homens em armas.
O aspecto político tampouco pode ser negligenciado.
Se se considerar a eleição para a Assembleia Constituinte, em 12 de novembro de 1917, cerca de 70% dos votos foram dados aos dois maiores partidos socialistas, socialistas-revolucionários (40%) e bolcheviques (27%). Assim, quase 80% dos eleitores escolheram partidos identificados com a revolução agrária. Nas regiões em que governavam, os bolcheviques dispunham de muito mais apoio do que os inimigos nas respectivas áreas de atuação. Em Petrogrado e em Moscou, tiveram 45% e 50% dos votos, respectivamente. Todas as oito províncias em que obtiveram mais de 50% dos votos estavam sob seu controle. Entre os cinco milhões de militares que votaram, os bolcheviques e SRs receberam mais votos. Nas guarnições militares de Petrogrado e Moscou, os bolcheviques tiveram 80% dos votos e índices acima de 60% dos votos nos exérci – tos do Norte, do Oeste e na Frota do Mar Báltico. Assim, o crescimento do Exército Vermelho não pode ser analisado apenas do ângulo organizativo. Havia respaldo político e social nas regiões controladas pelos bolcheviques.
Feita a ressalva, não se podem menosprezar os efeitos da política de organização. Os próprios “brancos” reconheceriam, desde fins de 1918, que estavam combatendo um exército temível. A política centralista e o apoio de milhares de oficiais do ex-exército czarista rendiam vitórias, apesar das críticas de muitos bolcheviques. O mesmo se pode dizer da centralização do poder e do partido, fundidos no decorrer das guerras civis. Com a Tcheka, a polícia política, e o terror vermelho, estruturaram uma ditadura política revolucionária que desempenhou papel relevante na construção da vitória.
É certo que políticas agrárias antipopulares fizeram o apoio político periclitar. O mesmo pode ser dito do encaminhamento da questão nacional, mas nas regiões não-russas, salvo nas cidades, os bolcheviques nunca tiveram boa acolhida. Entretanto, vale lembrar que mostraram um nível de flexibilidade bem maior do que seus inimigos. Assim, os decretos anticamponeses de maio e junho de 1918 seriam revogados antes do fim do ano. Também em relação à questão nacional, a partir de meados de 1919 haveria um reconhecimento de graus importantes de autonomia local e regional.
Em contraste, os inimigos dos bolcheviques nunca chegaram perto da unidade, salvo no efêmero episódio do governo de frente sediado em Omsk, golpeado por Koltchak, em novembro de 1918. Mesmo os exércitos brancos nunca se articularam. Para isso, sem dúvida, contribuíram as distâncias imensas e o combate em linhas exteriores. Mas havia igualmente dissenções e rivalidades políticas. Além disso, as propostas dos brancos eram muito impopulares. O programa da Rússia una e indivisível e a orientação “restauradora” não podiam atrair as consciências populares nem a aspiração à independência nacional dos não-russos. Por outro lado, o apoio das potências estrangeiras, embora rendesse armamentos e munições, os faziam aparecer como “títeres” de outros Estados, o que ofendia os sentimentos nacionalistas russos.
Das guerras civis, a Rússia emergiu arrasada.
Houve uma catástrofe humana: cerca de sete milhões de mortos. No inverno de 1921/1922, as epidemias vitimariam ainda quase cinco milhões de pessoas. E ainda cerca de dois milhões emigraram, quase todos vinculados às elites sociais. Fariam falta na organização da sociedade e do Estado.
As cidades se esvaziaram. Moscou perdeu metade dos habitantes. Petrogrado, dois terços da população. A economia, em certos setores, retroagiu a padrões do século XVIII. A produção industrial reduziu-se a 12% dos índices de 1913. A parte comercializada da produção agrícola diminuiu em torno de 90%.
No contexto de uma inaudita “brutalização das relações sociais”, fruto do exercício sem limites do terror vermelho e do terror branco, emergiu um regime de ditadura revolucionária, muito distante da democracia de 1917, que fizera da Rússia o país “mais livre do mundo”. Uma revolução na revolução, a emergência de um socialismo autoritário, imprevisto e não desejado pelos socialistas de todo o mundo, inclusive por muitas lideranças bolcheviques.
Uma outra Rússia revolucionária. Seus padrões desenhariam a fisionomia do socialismo do século XX.