João Quartim de Moraes
O último grande ato público de que Ernesto Guevara participou foi o encontro de solidariedade afro-asiática em Argel, no final de fevereiro de 1965. As imagens de sua intervenção veemente contra a “bestialidade imperialista” mostram gravidade e tensão na sua fisionomia, contrastando com o sorriso e o charuto que o celebrizaram em situações menos ásperas. Não era então possível saber que ao evocar, entre os mais duros combates em curso, um então recente massacre cometido no Congo por paraquedistas belgas com apoio da US Air Force, o comandante estava indiretamente anunciando onde iria travar seus novos combates. Pouco tempo depois, à frente de um punhado de voluntários internacionalistas cubanos, ele lançou-se a fundo na luta contra o regime neocolonial lá instaurado após o assassinato do grande revolucionário Patrice Lumumba.
Em 4 de outubro de 1965, Fidel Castro anunciou que o Che renunciara a suas responsabilidades de dirigente da revolução cubana para mergulhar na ação clandestina. Naquele momento, porém, rivalidades internas e indecisões dos guerrilheiros congoleses mobilizados contra o regime neocolonial do títere Mobutu estavam pondo em questão o prosseguimento da luta. No final de novembro de 1965, fisicamente debilitado por graves crises de asma e disenteria, Che Guevara aceitou deixar o Congo. Não deixou, porém, a clandestinidade. Cuidou da saúde num país do bloco socialista, certamente já refletindo sobre a abertura de nova frente de luta contra o imperialismo.
Entrementes reuniu-se em Havana em janeiro de 1966 a I Conferência Tricontinental de Solidariedade Revolucionária, da qual participaram cerca de 500 delegados de organizações da Ásia, da África e da América Latina. Muitos deles estavam à frente dos grandes movimentos de libertação nacional, que nas duas décadas anteriores haviam enfrentado vitoriosamente ou estavam enfrentando de armas na mão as potências colonialistas. Entre outras resoluções, a conferência decidiu criar a Organização de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina (OSPAAAL), com o objetivo de articular numa instância permanente as lutas pela autodeterminação e a defesa da soberania nacional, pelo respeito à diversidade étnico-cultural e por um desenvolvimento econômico que assegurasse existência digna à grande maioria da humanidade, há séculos tratada como gado humano e reduzida à miséria pelas agressões coloniais.
Levando em conta a diversidade das condições em que os movimentos de libertação de cada continente estavam inseridos, a conferência também aprovou a proposta de criar a Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). Enfrentando o colonialismo e o imperialismo com os meios disponíveis em suas respectivas situações concretas, os povos oprimidos lutavam por sua própria libertação nacional, mas convergiam objetivamente no combate contra o inimigo comum. A OSPAAAL e a OLAS assumiram a consciência desta comunidade de objetivos e consequentemente da urgência de organizar a solidariedade entre os movimentos libertadores nos três continentes.
Naquela encruzilhada histórica, ninguém encarnava mais do que Che Guevara a convicção de que era urgente passar à ação. No início de novembro de 1966, ele entrou clandestino na Bolívia para organizar na região de Ñancahuazú um destacamento guerrilheiro decidido a fazer da Cordilheira dos Andes a Sierra Maestra da América do Sul. Ele já estava embrenhado no terreno onde travaria seus últimos combates, quando em 16 de abril de 1967 a revista Tricontinental, órgão político da OSPAAL, publicou sua Mensagem a todos os povos, que se abre com um apelo ao combate que percorreu o mundo: “Criar dois, três, muitos Vietnãs”. Meio século depois, este chamamento à guerra total pode soar extremado, mas o quadro histórico que ele traça das lutas de libertação nacional nos três continentes agredidos pelo imperialismo é rigorosamente objetivo, a começar da Coréia, teatro do primeiro choque armado de grandes proporções entre os dois blocos que se tinham aliado em 1941-1945 para derrotar o Eixo nazifascista.
Durante esta guerra, iniciada em 1950, a máquina bélica estadunidense literalmente calcinou cerca de 80% das cidades e aldeias norte-coreanas, que foram submergidas no que Che Guevara classificou de “a mais terrível devastação que figura nos anais da guerra moderna […]”, ela deixou a população “sem fábricas, escolas ou hospitais; sem nenhum tipo de habitação”. As estatísticas oficiais da US Air Force admitem terem sido lançadas sobre a Coréia do Norte, durante os 37 meses do confronto bélico, 454 mil toneladas de bombas, principalmente de napalm. O cessar fogo deixou o país partilhado entre um Norte independente e um Sul sob a tutela dos invasores estadunidenses. Morreram cerca de 200 mil combatentes sul-coreanos e estadunidenses e cerca de 600 mil norte-coreanos e chineses. O napalm made in USA mostrou-se extremamente eficaz para carbonizar a população civil: fontes sérias falam em quatro ou cinco milhões de mortos.
Mas foi ao martírio do povo vietnamita que o Che consagrou as linhas mais indignadas de sua Mensagem:
“Há uma penosa realidade: Vietnã, essa nação que representa as aspirações, as esperanças de vitória de todo um mundo preterido, está tragicamente solitária […]. A solidariedade do mundo progressista para com o povo do Vietnã assemelha-se à amarga ironia que significava para os gladiadores do circo romano o estímulo da plebe. Não se trata de desejar êxitos ao agredido, mas de partilhar sua sorte, de acompanhá-lo à vitória ou à morte”.
Em agosto, quando a OLAS promoveu em Havana a conferência de solidariedade latino-americana, a expectativa dos revolucionários que lá compareceram estava voltada para a Bolívia. Dois meses depois, em 7 e 8 de outubro de 1967, esta expectativa foi bruscamente desfeita quando se confirmou o aniquilamento da coluna guerrilheira do Che Guevara e sua execução sumária pelos esbirros da CIA.
A imagem do heroico Comandante atravessou íntegra os 50 anos que nos separam deste trágico desfecho. Muitas outras mãos empunharam as armas para continuar seu combate libertário. Entre nossos compatriotas, Carlos Marighella, nomeadamente, compareceu à Conferência da OLAS para manifestar seu empenho em juntar o movimento revolucionário brasileiro aos esforços em vista de seguir o apelo do “comandante Che Guevara: criar um, dois três, muitos Vietnãs”. Marighella, como tantos outros para os quais a alternativa à vitória era a morte, foi também sumariamente executado.
Um balanço objetivo das experiências da luta armada na América Latina não pode deixar de constatar que quase todos os movimentos dos guerrilheiros foram aniquilados. Eles triunfaram somente na Nicarágua. Na Guatemala, em El Salvador e na Colômbia, negociaram acordos políticos. Há muitas lições a tirar de todas e de cada uma destas experiências. Duas delas são gerais: não há métodos de luta infalíveis, mesmo se adequada e corretamente aplicados; o recurso à violência está sempre presente, ao menos virtualmente, na luta de classes. No Chile de Salvador Allende e da Unidade Popular, o método legal e eleitoral da luta pelo socialismo encontrou seu limite na violência reacionária que culminou no golpe militar fascista do general Pinochet.
Em 1974, sete anos após Guevara encontrar a morte combatendo para abrir na América do Sul uma nova frente de luta anti-imperialista, o povo vietnamita alcançou a vitória final na guerra de libertação nacional. Sobre as cidades, campos e florestas de seu país os valentões do Pentágono tinham despejado, durante cerca de uma década, uma horripilante tempestade de fogo, chumbo e aço. Meio século depois, ainda nascem no Vietnã crianças deformadas ou mutiladas pelo contágio do “agente laranja”, o desfolhante ultratóxico que a máquina de guerra do Pentágono despejou sobre as florestas para erradicar o “comunismo totalitário”. Como não compreender a sagrada indignação e o entranhado apelo de Guevara para acompanhar na vitória ou na morte a sorte daquele povo heroicamente martirizado?