Helena Martins
Muito mais que instrumento ou técnica, a comunicação é base da organização da sociedade contemporânea. Nossa cultura é impregnada por sentidos e experiências compartilhadas pelas mais variadas mídias. Entre as maiores empresas do mundo, estão companhias do setor de tecnologia da informação, como Amazon, Apple, Alphabet (Google), Meta (Facebook) e Microsoft. As marcas dessa presença também são visíveis na dinâmica política, seja por deslocar o poder dos agentes tradicionais da radiodifusão ou por serem protagonistas de problemas como a desinformação e a vigilância. Um novo governo deverá atuar em relação a essa agenda de forma decisiva, sem repetir os erros do passado. À esquerda anticapitalista caberá também fomentar um projeto político que pense a comunicação para a ruptura, não para a manutenção da hegemonia.
A centralidade da comunicação hoje resulta do processo de reestruturação do sistema nas últimas décadas, que levou à ampliação da integração da tecnologia, da informação e do conhecimento ao capitalismo. As tecnologias da informação e da comunicação tornaram-se a base técnica central da mundialização e da financeirização. Para que a apropriação privada delas se tornasse a lógica dominante, as telecomunicações foram privatizadas, abrindo espaço, como no Brasil, para que corporações privadas se apropriassem das antigas redes e do que daria suporte às novas. Paralelamente, corporações nativas da internet surgiram e, impulsionadas por mecanismos financeiros, desenvolveram novos modelos de negócios, como os baseados em dados, especialmente a partir da crise de 2007-2008. O conjunto desses fatores possibilitou o espraiamento dessas empresas para variados setores, o que tem sido chamado de plataformização.
Há, ainda, uma dinâmica cultural que emerge dessa nova estrutura de mediação social. Embora não ocorra sem resistências, há tendências hegemônicas associadas à constituição de uma esfera pública fragmentada, ao passo que unida em torno de uma vida baseada no consumo, à ampliação de mecanismos de controle social, ao reforço das mais diversas opressões, como o racismo algorítmico evidencia, e à lógica da tecnociência, com impactos em relação ao meio ambiente e às populações e culturas tradicionais. Além disso, a associação da plataformização com o neoliberalismo é evidente também na intensificação e precarização do trabalho, bastante visível em modelos ditos “uberizados” e cada vez mais abrangentes, a exemplo do que ocorre com profissionais submetidos ao trabalho remoto, com impactos na percepção dos trabalhadores, tratados como empreendedores.
O que vemos, de forma geral, é um cenário de crescente concentração da produção social nesses espaços e de centralização de capital no setor, contrariando as teses mais otimistas sobre a nova sociedade que resultaria da internet. Ora, as tecnologias não estão alheias à sociedade, não se desenvolvem de forma autônoma. São resultados de escolhas, agentes, políticas, projetos. Evitar que o poder se torne ainda mais concentrado, pois em torno de agentes transnacionais que influenciam tantas esferas da vida, e rever o lugar do Brasil no cenário mundial é urgente. Isso significa retomar e atualizar as pautas de luta em torno da comunicação, democratizando a mídia, afirmando a comunicação como um direito e avançando na compreensão da comunicação como um bem comum, o que significa desnaturalizar sua mercantilização.
Os governos Lula e Dilma Rousseff foram incapazes de enfrentar essa agenda. Mesmo em um momento de intensificação do debate sobre ela na América Latina, como vimos com a aprovação da Lei de Meios na Argentina, e de mobilização nacional em torno da pauta, especialmente a partir da 1a Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, pouco foi feito no sentido de enfrentar o status quo. O setor de radiodifusão permaneceu protegido, recebendo vultosos recursos publicitários e, apesar de seu caráter intrinsecamente público, permaneceu alheio ao escrutínio público e à atuação das instituições. É fato que iniciativas importantes existiram, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), mas a fragilidade do caráter público da empresa, problema diagnosticado já em seu nascedouro, tornou-a incapaz de resistir às investidas de Michel Temer e Jair Bolsonaro. No mesmo sentido, o apoio a grupos de comunicação progressistas não foi transformado em uma política de Estado. Desatualizada, a legislação do setor seguiu beneficiando grupos como o Globo, os quais mostraram bem sua posição de classe no processo que levou ao impeachment de Dilma.
Passos expressivos foram dados no tema da internet no governo Dilma, com a aprovação do Marco Civil da Internet, resultante de um cenário internacional pautado pelas denúncias de Edward Snowden, que trouxe à tona a importância dessa agenda. Ainda assim, essas iniciativas não foram compreendidas dentro de uma política mais ampla, seja no aspecto específico da comunicação ou, de forma geral, da cultura. Não há projeto de país sem projeto cultural. E não há projeto de cultura – ou culturas, no plural – que não passe pela comunicação. Por tudo isso, a luta contra o monopólio e o oligopólio no setor, seja em relação aos velhos ou aos novos agentes, marcará o século XXI.
Enfrentamento à concentração de veículos é desafio do próximo governo. Lei das Mídias deverá ser pautada.
Para desenharmos outro futuro, precisamos enfrentar esses temas. Nesse sentido, um novo programa para as comunicações – o plural, aqui, busca explicitar tratar do conjunto do macrossetor, da radiodifusão às telecomunicações, passando pela internet – é necessário. Ele está já sendo esboçado na proposição de novos direitos, como à proteção de dados pessoais, na mobilização de trabalhadores explorados pelas plataformas, na manutenção resistente dos meios comunitários e alternativos. Não obstante, faltam ainda convergências de agendas e sujeitos envolvidos nessas lutas. Certamente, tal amálgama será forjado nesses processos, mas cabe a nós, aqui, evidenciar questões candentes.
A primeira delas é a necessidade de enfrentamento à concentração, conforme já tratado. Há muitas proposições nesse sentido para o campo da radiodifusão – a exemplo das apresentadas pela sociedade civil a partir do Projeto de Lei da Mídia Democrática. Em relação às plataformas digitais, uma agenda antitruste tem sido debatida nos Estados Unidos e na União Europeia, especialmente, e deve ganhar força na América Latina no próximo período. Nessa formulação, há que se considerar as desigualdades entre os países, bem como a arquitetura internacional da internet entre os desafios a serem enfrentados, com vistas à afirmação da nossa soberania.
No plano nacional, não podemos continuar convivendo com a exclusão dos mais pobres, das comunidades tradicionais e das populações periféricas do acesso à internet. Acessar ou não a rede é, neste século, um elemento de aprofundamento da desigualdade social. Como tal, deve ser combatido com políticas robustas. Outras medidas como imposição de transparência algorítmica e controle social podem ser desenvolvidas desde já. Estas devem combinar, ademais, a formação da população para que seja produtora e não apenas consumidora de tecnologias, ainda mais neste momento de crescimento das chamadas inteligências artificiais. Não podemos permanecer neste lugar de celeiro do mundo, de país dependente do agronegócio, que tanto maltrata a natureza e o povo. Outra economia pode ser desenvolvida com as tecnologias, que também podem se tornar elementos importantes de processos de ampliação da participação e de planejamento democrático, se pensadas e desenvolvidas nesse sentido.
Por certo, um possível governo Lula, de conciliação de classes e em um cenário econômico crítico, será pressionado para atender as frações do capital que atuam no setor. Daí a importância de processos participativos multissetoriais que ampliem o debate sobre essas políticas e possam transformá-las em pautas de reivindicações populares. Uma disputa que passa também pela internet como espaço de fruição de conteúdo. Hoje, a direita opera na rede com um ecossistema complexo, que vai das campanhas de desinformação em mensageiros à proposição de conteúdos portadores de ideologias para jovens no TikTok. Sua força segue sendo demonstrada no cotidiano e, sobretudo, nas eleições em diversos países, como vimos no Chile, na Colômbia e aqui no Brasil. A batalha da comunicação também se dá na produção de conteúdo, inclusive no âmbito da radiodifusão.
A junção entre produção cultural contra-hegemônica, imposição de limites à concentração de riqueza e poder e formulação de alternativas estruturais é necessária para outro projeto de comunicação e de sociedade. Resta-nos movimentar a imaginação política a serviço do desenvolvimento de novas técnicas, como parte de processos que objetivem a superação de elementos fundantes da sociedade capitalista, como a divisão do trabalho e a alienação em relação à coordenação da sociedade. Um novo programa para as comunicações também deve postular a liberação do tempo, o que vai de encontro à lógica da economia da atenção, da conexão permanente, que, é imperativo atentar, contribui para o aprofundamento da crise climática, a exploração de bens naturais em países do sul global e o desenvolvimento de formas de trabalho extremamente precarizadas. Em um tempo em que a comunicação serve à conformação de um sistema tão perverso, sejamos exigentes.
_________
Helena Martins é ativista e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC, coordenadora do Telas – Laboratório de Pesquisa em Economia,Tecnologia e Políticas da Comunicação e integrante da Insurgência.