José Luís Fevereiro
O resultado eleitoral mostra uma profunda divisão no Brasil. Mas essa divisão tem muitas nuances. Não temos 60 milhões de ‘lulistas’ nem 58 milhões ‘bolsonaristas’. Na verdade, uma parte substancial dos votos de ambos os candidatos refletem mais a rejeição ao outro. Com isso, se não podemos subestimar a força de Bolsonaro, também não devemos exagerá-la. Bolsonaro levou a maioria dos votos de Simone Tebet e de Ciro Gomes no segundo turno, para além dos que já tinha levado na primeira etapa da eleição – o que diz muito da força do antipetismo, que na verdade é anti-esquerda.
A força dessa rejeição à esquerda precisa ser melhor compreendida. Um presidente que se comportou da forma que Bolsonaro o fez, com total descaso com a saúde do povo durante a pandemia, doses cavalares de preconceito, agressividade, ameaças, crise social, econômica, denúncias de corrupção absolutamente inequívocas, desconstrução permanente durante mais de 2 anos por parte da mídia, chegou ao segundo turno e teve 49% dos votos. Ou seja, 58 milhões de eleitores achavam que a esquerda seria pior que ele.
É preciso buscar essas respostas. Há uma profunda transformação do Brasil nas últimas décadas. A reestruturação produtiva reduzindo o peso do trabalho assalariado, acabando com as concentrações operárias, atomizando e fracionando o trabalho, seja do ponto de vista espacial seja na forma da sua inserção no processo produtivo, reduzem em muito a percepção de interesses coletivos e, portanto, a formação de consciência de classe a partir da lógica do trabalho.
Não é por acaso que novas identidades se forjam à esquerda e à direita. A religião como forma de busca de grupo de identidade, de pertencimento, cresceu muito nas últimas décadas, em particular as igrejas evangélicas. Mas a religiosidade de matriz africana, embora ainda muito minoritária, também vem se recuperando. A primeira hegemonizada pela direita, a segunda pela esquerda.
Evangélicos passaram de 15% do eleitorado para cerca de 30% em 20 anos. A igreja funciona como um espaço de formação de identidade de grupo. Os quase 70% de evangélicos que votaram em Bolsonaro não o fizeram por acreditar que Lula seja satanás ou pelas bobagens em série proferidas pelos pastores extremistas, como, por exemplo, que Lula fecharia as igrejas. Votaram porque essa era a posição padrão do seu grupo social. Da mesma forma, seguidores de religiões de matriz africana votaram maciçamente em Lula.
A vitória de Lula no Nordeste não foi um fenômeno regional isolado. Eleitores nordestinos do Sudeste votaram maciçamente em Lula. Ser nordestino virou uma identidade progressista. Ao mesmo tempo que pequenos empreendedores pelo país afora votaram majoritariamente em Bolsonaro. São trabalhadores, muitos deles na informalidade e precarizados, com renda de média para baixa, mas que forjaram sua identidade de grupo contra o Estado, visto como um ente que regula, controla e cobra impostos, e não como um garantidor de direitos.
Hoje se forja mais identidade de classe a partir dos territórios, moradia, transporte, e acesso à saúde, do que a partir da forma de inserção no processo produtivo. Por isso vêm ganhando protagonismo os movimentos de moradia – e onde estes são fortes a esquerda cresce.
As mudanças aceleradas no tecido social, com o crescente empoderamento feminino, a extensão dos direitos civis á população LGBTQIAPN+, a maior participação de negros e negras nas universidades, e portanto a sua ascensão económica, provocam uma reação conservadora do outro lado, tendo como núcleo os homens brancos inclusive das classes trabalhadoras. Para este trabalhador, explorado como todos os outros, mas que sempre teve o privilégio do gênero, da cor e da orientação sexual, a ameaça de perda deste lugar de privilégio forja identidades reativas.
Compreender estas dinâmicas e atuar sobre elas, sem abrir mão de bandeiras, sem recuos, mas buscando entender e agir sobre grupos sociais hoje hegemonizados pelo conservadorismo, é a tarefa da esquerda para o próximo período. O Bolsonarismo segue vivo na sociedade brasileira. Não pode ser subestimado. No entanto, sem o controle do aparelho de Estado, se torna bem menos perigoso. Impedir que eles retomem esse controle será essencial. E para tal é necessário que a esquerda avance para setores sociais que neste momento lhe são refratários.
Organizar o trabalho precarizado e o trabalho por conta própria, disputar os pequenos empresários e produtores rurais, dar visibilidade às lideranças evangélicas próximas á esquerda, avançar na guerra cultural fortalecendo os direitos civis dos setores historicamente discriminados, mas ao mesmo tempo buscar disputar pela lógica dos direitos sociais a parcela da classe trabalhadora sob hegemonia do conservadorismo, será a única forma de desidratar a extrema direita e lhe retirar a capacidade de disputar poder.
Estas ações estão na contramão do oportunismo eleitoral que afetou parte da esquerda que optou por arriar bandeiras tentando se confundir com o inimigo para ver se passava despercebida. Se há uma lição a aprender com Bolsonaro, é que só se cresce na disputa pela afirmação incisiva de suas posições, e não pela sua relativização ou negação.
A nova composição do Congresso Nacional é a expressão disso. Cresceu a extrema direita às custas da direita liberal, mas pela esquerda cresceu a esquerda que não teme dizer seu nome nem afirmar suas bandeiras. A eleição de Guilherme Boulos como o deputado mais votado de São Paulo, a eleição de mulheres trans como Erika Hilton e Duda Salabert, a eleição de mulheres indígenas como Sônia Guajajara e Célia Xakriabá, mostram uma nova geografia do poder. No essencial, a correlação de forças entre esquerda, direita e centrão não se alterou muito. As mudanças estão dentro das representações da direita e da esquerda com o crescimento da extrema direita sobre a direita liberal e o fortalecimento da esquerda mais consequente. Isso vai mudar as características das disputas no parlamento com maior explicitação dos conflitos.
Por fim, a constatação de que o Brasil não representa um caso isolado no mundo. Os mesmos fenômenos que ocorrem aqui vêm ocorrendo em muitos países. A extrema direita, um século depois da ascensão do fascismo na Itália, voltou a ter base de massa. A esquerda vem mostrando, em particular na América Latina, que tem capacidade real de disputa. Mas precisa fazê-la sem meias tintas.
Nós somos a igualdade, a universalização de direitos, a solidariedade, o direito ao trabalho para todos, o respeito à diversidade. O outro lado é a barbárie.
Venceremos.
José Luís Fevereiro é economista formado pela UFRJ. Foi coordenador geral do DCE da UFRJ de 1982 a 1983 e representante dos estudantes no Conselho Universitário da UFRJ de 1983 a 1985. Secretário Geral do PT do Município do Rio de 1987 a 1988 e presidente do PT do Município do Rio de 1988 a 1989. Secretário Geral do PT estadual de 1989 a 1993 , membro da direção nacional do PT de 1990 a 1995 e da sua executiva nacional de 1993 a 1995. Foi membro da Direção Nacional do PSOL desde 2007 até 2021.