A Reforma Previdenciária realizada em novembro de 2019 afetou substancialmente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras do país que passados pouco mais de três anos ainda se perguntam: “eu deveria ter me aposentado antes da Reforma”?; “e se eu falecer, qual proteção o sistema pode dar aos que dependem de mim?”; “se eu adoecer, terei meu sustento garantido pelo seguro social (INSS)?”.
Em 2023 o Brasil celebrou um século de existência da Previdência Social, criada em 24 de janeiro de 1923, quando foi sancionado o Decreto 4.682. O sistema foi criado para proteger exclusivamente os trabalhadores de 27 estradas de ferro. Após 100 anos de alguns avanços e muitas reformas, a Previdência virou um gigante de abrangência nacional: é responsável pelo pagamento de 22,4 milhões de aposentadorias apenas no Regime Geral (que inclui trabalhadores da iniciativa privada e servidores não filiados a regimes próprios), com um desembolso anual superior a 478,7 bilhões de reais.
Desde a Constituição de 1988, a Previdência Social enfrentou pelo menos sete reformas. A principal justificativa para cada uma delas ao longo dos tempos tem sido superar dois desafios: o envelhecimento da população e o chamado déficit do sistema previdenciário.
Cumpre registrar que em 1945 o Brasil tinha apenas 200 mil aposentados. Segundo o último Boletim Estatístico da Previdência Social, o número de benefícios pagos em novembro de 2022 — incluindo aposentadorias, auxílios e pensões — superou os 37,5 milhões.
A explicação para esse crescimento exponencial está no envelhecimento dos brasileiros e brasileiras. Em 1923, quando a Previdência foi criada, as pessoas com mais de 60 anos eram apenas 4% do total da população. Hoje representam 15%. Há um século, o país tinha 13 pessoas em idade ativa para cada idoso. Em 2023, essa proporção é de 4 para 1.
O aumento do número de segurados tem um custo. De acordo com o Boletim Estatístico da Previdência Social, o INSS desembolsou, em dezembro de 2006, 12,6 bilhões de reais em benefícios. Em dezembro de 2021, último dado disponível, a cifra saltou para 48,7 bilhões de reais.
As últimas mudanças no sistema previdenciário extinguiram por completo a histórica modalidade “Aposentadoria por Tempo de Contribuição”. Na Exposição de Motivos, de fevereiro de 2019, o então ministro da Economia, Paulo Guedes,declarou que “a adoção das medidas é imprescindível para evitar custos excessivos para as futuras gerações e comprometimento do pagamento de benefícios de aposentadorias e pensões”.
O documento ainda afirma que: “a Previdência já consome mais da metade do orçamento da União, sobrando pouco espaço para a educação, a saúde, a infraestrutura e provocando uma expansão insustentável de nossa dívida e seus juros”. Haveria, assim, a necessidade de um “novo pacto” para poder executar os próprios objetivos traçados na Constituição.
O que houve efetivamente na reforma de 2019 foi uma tentativa de levar a cabo uma transformação que apontasse para uma ruptura, de modo que a nova previdência não guardasse mais uma relação com o modelo anterior. Essa repactuação, porém, foi proposta e aprovada e a conta está sendo paga mais uma vez pela classe trabalhadora que teve redução substancial do valor da renda mensal de benefícios, especialmente para a pensão por morte.
Estimativas sugerem que a última reforma pode gerar em longo prazo uma economia de até 156,1 bilhões de reais nas contas da previdência. O valor é 78,8% maior do que os 87,3 bilhões esperados para o período quando a proposta de emenda à Constituição que instituiu as mudanças (PEC 133/2019) foi aprovada pelo Congresso.
A referida reforma trouxe um grande impacto na vida do trabalhador, que além dos efeitos da precarização das relações trabalhistas já existentes, e do aumento de desemprego, tem que enfrentar a realidade de um sistema de seguridade social que o deixou desprotegido diante da morte e do adoecimento (impossibilidade de trabalhar) e prorrogou seu tão sonhado descanso, postergando a aposentadoria.
A precarização dos postos de trabalho, que tem avançado velozmente após a pandemia de covid-19. Fenômenos como a chamada “uberização”, presente em diversas categorias, tem provocado uma “exclusão previdenciária” no mundo do trabalho. Sem as garantias da previdência, cria-se um desequilíbrio na Seguridade Social (cujo tripé, definido pela Constituição Federal, é formado por saúde, previdência e assistência social), jogando, assim, para assistência social muitos trabalhadores informais que não conseguem se manter segurados pela previdência.
As Regras Transitórias no art. 19 da EC 103/2019 estabelece dois requisitos para aposentadoria: 62 anos de idade (mulheres), 65 (homem), com 15 anos de tempo de contribuição (mulheres), e 20 anos de tempo de contribuição (homem).
O tempo mínimo de contribuição foi estabelecido de forma transitória, ou seja, permite alterações posteriores por meio de lei complementar. Tal transitoriedade gera a necessidade de constante estado de alerta para que novas regras não venham a ser estabelecidas em detrimento dos trabalhadores.
A fórmula de cálculo da média salarial, prevista na EC 103/2019, é um dos pontos de maior impacto da reforma da Previdência, tanto para os segurados do RGPS quanto do RPPS. No curso dos debates da então PEC 06/2019, foram muitas as tentativas de manutenção do regramento anterior, porém a nova sistemática de cálculo sobreviveu no Congresso.
A sistemática de cálculo introduzida como regra transitória entrou em vigor não somente para os benefícios concedidos por essa regra, mas com aplicabilidade imediata também para as regras de transição e cálculo da aposentadoria por invalidez.
O argumento vencedor para a substancial alteração na regra de cálculo foi a “economia”. O novo mecanismo proporcionaria uma economia para os cofres públicos estimada em quase 190 bilhões em uma década – quase um quinto do impacto total da nova legislação previdenciária. Para os futuros aposentados, por outro lado, causou uma perda de renda que pode passar de 10% em relação ao cálculo anterior, e para as aposentadorias por invalidez esse impacto foi ainda maior, causando uma redução de 40% dos rendimentos do trabalhador.
Pela nova regra, a conta da média salarial será feita com base em todos os salários de contribuição desde julho de 1994. O que deixará a média mais baixa do que se fosse calculada pelas regras anteriores, além de não computar as contribuições anteriores a 1994.
A fórmula de cálculo da média salarial implementada pela reforma da Previdência, na prática, reduz o valor do benefício dos trabalhadores que fizeram contribuições para o sistema e se programaram para aposentar, confiando na “percepção individual” de que as pessoas devem ter uma segurança mínima garantida pelo Estado que deve proteger sua legítima expectativa de planejar sua vida conforme o ordenamento vigente.
Nesse ponto convergem inúmeras críticas às regras dessa reforma. Sabe-se que o Estado goza da confiança de seus governados, o que significa dizer que compete a ele, idealmente, assegurar minimamente a estabilização das regras de modo a garantir a pacificação social.
Não se pretende dizer que o Estado não possa propor mudanças nas normas jurídicas, em nome da estabilidade, mas sim que este, ao buscar adequar as normas às novas demandas da sociedade, proteja igualmente aqueles que, confiando na estabilidade das normas, não venha a ser prejudicado em decorrência das tais reformas. Ora, a excessiva flexibilidade das decisões estatais podem desestruturar a sociedade e o Estado.
Concluímos que a EC 103/2019 não trouxe regra de transição para o cálculo do valor do benefício, limitando-se a determinar a aplicação da regra geral, no caso a regra transitória prevista no art. 26. Com a aplicação dessa regra não vislumbramos a proteção da confiança de quem tem muitos anos de contribuição e pouca idade, prejudicando aquele que ingressou jovem no mercado de trabalho e contribui há mais de 25 ou 30 anos e que planejou sua vida previdenciária.
Algumas dessas pessoas estavam a cinco ou dez anos da aposentadoria e mereciam respeito à confiança que depositaram, contemplando suas fundadas expectativas, mas tiveram seus planos adiados em 10 ou 15 anos.
No mínimo, em situações de transição, a EC 103/19 deveria ter proposto regras mais brandas para o cálculo do valor mensal dos benefícios para os segurados que já filiados ao sistema de previdência social na data de publicação da Emenda.
Portanto, sem a adoção de parâmetros de proporcionalidade claros, temos que a regra de transição adotada pela Emenda Constitucional 103/2019 (Reforma da Previdência) é injusta e viola o princípio da proteção da confiança, um dos elementos da segurança jurídica, essencial no Estado Democrático de Direito, que possui dimensão tanto institucional como individual, constituindo-se direito e garantia fundamental (art. 60, § 4º, IV da Constituição). desa
Por Ana Izabel Jordão, advogada, graduada pela Universidade Católica do Salvador – (UCSal), especialista em Direito Previdenciário (2010), integrante da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/BA, professora da Pós-Graduação em Direito Previdenciário da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora Estadual do IBDP na Bahia.