Entrevistado: Deivison Faustino
Por: Joselicio Junior
Para este dossiê, o editor da Revista Socialismo e Liberdade, Joselicio Junior, entrevistou Deivison Faustino, professor do Departamento de Saúde e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP. Faustino é graduado em Ciências Sociais, mestre em Ciências da Saúde e doutor em Sociologia. É autor dos livros Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro (2018); Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade (2022); O colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana (2023); e Balanço Afiado: estética e política em Jorge Ben (2023).
Joselicio Junior (JJ): A gente está vendo robôs inteligentes, câmeras em casa, aplicativos e aparelhos que conectam tudo, gente falando em inteligência viva, além da inteligência artificial, produção de neurônios… As máquinas estão nos dominando?
Deivison Faustino (DF): Essa é uma boa pergunta que esconde uma pegadinha antiga. Se a gente pensar a história do capitalismo, tem mais de duzentos anos a ideia de que a máquina ganhou vida e agora nos ameaça. De certa forma há um risco real, por exemplo, de se construir processos automatizados que em algum momento saiam do controle. Pensemos numa inteligência artificial, de propósito geral, que seja dotada de mecanismos de automação tão complexos que a gente não consiga mais calibrar ou direcionar o seu funcionamento e que saia do controle e represente uma ameaça para a humanidade. É plausível pensar nisso. No entanto, há o risco de se esconder as relações sociais que estão por trás da máquina. Então, quando a gente pensa a máquina como algo consciente, como nos filmes de ficção científica, pelo menos nos que são produzidos nos Estados Unidos, você tem uma máquina que é criada por um ser humano, ela toma consciência e depois ela vira uma ameaça para a humanidade. É o mito do Frankenstein. O que está por trás desse mito é a alienação do trabalho, o que a gente tem chamado de fetiche tecnológico. A máquina, ainda que ela seja muito automatizada-a máquina a vapor lá da revolução industrial, ou inteligência artificial generativa), é o resultado de uma lógica causal automatizada, em que eu tenho algoritmos de processamento de dados, eu tenho uma máquina que consegue produzir aquilo, uma imagem com os Black Panthers ao fundo, por exemplo, porque eu peço e ela sistematiza, ela varre grandes bancos de dados, identifica imagens de acordo com os rótulos que dou para ela, mistura e me devolve uma síntese dessa busca. Mas ela não está criando como se fosse um artista a quem pedi para fazer uma charge. O artista tem sentimentos, tem história, consciência, mas tem sobretudo criatividade, que vem do nosso caráter humano incompleto, frágil, mas também criativo, subjetivo. A máquina não tem isso, ela é outra coisa. Não menos importante, porque hoje os computadores conseguem produzir cálculos que a mente humana demoraria bilhões de anos para fazer, então você tem uma capacidade computacional. Mas ela não é consciente e nem sujeito de si, ela ainda é o reflexo causal de uma programação prévia, ainda que essa programação permita um grande grau de liberdade a ponto de ser redirecionada a cada prompt que eu dou. Então, eu vou ao Chat GPT, vou ao Dall – e, seja lá o programa que for, e consigo que ele produza uma imagem de um pessoa negra de punho cerrado com os Black Panthers de fundo e aquele programa gera a imagem, por mais que aquilo ali seja automático.
JJ: Na verdade é uma grande calculadora…
DF: É uma grande calculadora. Muito mais complexa, mas ainda uma calculadora. Se eu apresento o problema como se fosse uma máquina dominando o ser humano, perco de vista quem domina a máquina, porque ela é produzida por alguém, por seres humanos, numa dada relação social capitalista, que é sob a qual vivemos. Vejamos o caso do mercado financeiro: se vou ao banco pedir dinheiro emprestado hoje, não é mais o gerente que vai olhar na minha cara, olhar o meu histórico ali na numa ficha que ele guarda numa gaveta e decidir se me dá o crédito ou não. Hoje cada passo que eu dou no mercado é registrado, passei na farmácia e dei meu CPF, isso vai para um banco de dados, comprei um cartão para usar o ônibus, comprei uma passagem de avião, ou fiz uma prestação da minha televisão, ou do meu carro. Tudo que eu faço no mercado financeiro gera um score e esse score é sistematizado e utilizado por uma máquina, para decidir se eu vou ter o crédito ou não, qual vai ser o tamanho da taxa de juros, a depender do interesse do banco em mim. Temos a automatização de um processo que antes era feito pelo gerente, então, parece que a máquina está substituindo o ser humano. No entanto, se por acaso essa máquina faz um cálculo que não permite o banco lucrar comigo, imediatamente a máquina vai ser reprogramada. Então será que a máquina é tão autônoma assim? A gente pode fazer a mesma pergunta para os algoritmos de timeline do Instagram, do Facebook, da Netflix…
JJ: Ou seja, os algoritmos têm uma lógica lucrativa…
DF: Têm uma lógica lucrativa que não é a lógica de um robô autoconsciente, é a lógica do capital. Pensar a máquina como sujeito autônomo neste momento da história da humanidade é desviar o foco da atenção para o verdadeiro sujeito por detrás das escolhas algorítmicas que desenham as máquinas.
JJ: Não à toa isso é até de alguma maneira intencional.
DF: Exato. O fetiche joga a favor das relações sociais dominantes, das classes dominantes. Parece que o dilema é, nossa, será que eu vou usar ou não vou usar o Instagram? Será que eu saio ou não saio das redes? Eu posso sair das redes, mas eu não posso deixar de dar meu CPF na farmácia, se eu sou aposentado, e ganhar, às vezes, 70% de desconto no remédio. Então é necessário entender como funciona, assim como o Marx estudou a Overlock, a Singer, para entender a revolução industrial, talvez a grande tarefa hoje seja estudar inteligência artificial, estudar semicondutores, estudar engenharia genômica e como que estão sendo empregadas no desenho tecnológico, porque de fato elas estão alterando as relações sociais e alterando a arena da luta de classes, as formas de opressão, de exploração, mas ainda não é uma luta ser humano contra o máquina, ainda é a velha luta ser humano contra ser humano, que tem na máquina e na automação a mediação poderosíssima que tem ampliado a exploração para níveis jamais vistos na história da humanidade sob o capitalismo.
JJ: Ainda sobre a relação homem-máquina, a gente tem um mundo na nossa mão, no celular, com uma velocidade inimaginável ao olho nu. Às vezes parece que os softwares, os aplicativos, não têm uma base material. Você pode falar um pouco dessas bases materiais, dessa relação software-hardware?
DF: O debate sobre as tecnologias digitais é muitas vezes atravessado pelas ideologias capitalistas. Uma delas é tratar as tecnologias digitais como se fossem imateriais, como se elas fossem imaginadas, ou como se não tivessem implicações concretas no mundo físico, material. Isso não é verdade. Você não tem um celular sem lítio, que sai da Bolívia ou da Amazônia, sem o coltan, de onde você extrai columbita e tantalita, usadas no touchscreen e no processamento de bateria. Não há celular sem o ouro que sai ilegal das terras dos ianomami, vai lá pra Itália e depois volta legalmente pelas fábricas da Apple, da Samsung. Não há software sem hardware, esse é o primeiro ponto que a gente não pode perder de vista, porque é em torno do hardware que hoje os grandes embates capitalistas se dão. O maior embate hoje não está nas blusinhas da Shopee, taxadas no Brasil. O maior embate capitalista hoje tem a ver com os semicondutores, que permitem produzir aparatos tecnológicos, do carro ao telefone, ao computador. A grande fábrica de chips de processadores está em Taiwan. Há todo um debate geopolítico sobre a relação da China com Taiwan, mas essa fabricante tem capital belga e estadunidense. O que os Estados Unidos fazem, desde antes de Trump, é impedir que a China acesse esses semicondutores mais sofisticados para que ela não ultrapasse os Estados Unidos na competição tecnológica. Temos, então, uma guerra protecionista em torno do hardware. Outra linha fundamental de hardware que define a geopolítica mundial são os cabos de fibra óptica. Se observarmos o mapa dos cabos de fibra óptica, ele lembra muito o mapa do telégrafo do século XIX, da época que a Inglaterra dominava o mundo. Temos uma corrida tecnológica também no campo espacial (do espaço sideral). O objetivo da Space X, de Musk, não é só mandar milionários para passear no espaço. É sobretudo desenvolver tecnologia de comunicação via satélite. Não há software sem hardware. E o próprio software é também um dado material. O software, um programa, só é possível porque você tem processa dores que computam a informação, computam frações de eletricidade, então apagado é 0, acesso ou ligado é 1, é em função de zero zero um zero um zero zero um zero um zero um, que você vai criando combinações e formando caracteres “a”, “b”, “c”,“d”, você cria combinações de desenhos, de frequências de áudio, de frequências de luz, tudo é código zero, um, zero e um. Isso vai mudar com a computação quântica, mas a princípio é isso. Se o software é uma combinação algorítmica de códigos, o código só é possível mediante uma certa organização de energia, num certo espaço. Vamos pensar em quem está assistindo pelo YouTube essa entrevista. É a eletricidade que nos permite gravar este vídeo, captar imagens e sons, processar tudo, enviar o conteúdo codificado por fibra óptica, chegar quem sabe a um satélite, para depois chegar no dispositivo da pessoa, ser decodificado e aparecer no dispositivo como imagem. Quer dizer, o software ou os programas só funcionam por meio de processamento de energia e a energia não pode romper as leis da física, sob o risco de deixar de atuar como tal.
JJ: A energia é finita, né?
DF: Ela é finita. Aliás, se a energia não fosse finita, a gente não precisava recarregar o celular, a gente não precisava descarregar conteúdo do celular de vez em quando para baixar um novo aplicativo. O espaço de armazenamento também é finito. Quem, da classe trabalhadora, não passou pela experiência de ter que baixar um aplicativo por causa do trabalho, da universidade e aí não cabe no celular? O espaço que ele comporta para processar a informação é do tamanho do HD, que eu preciso inclusive limpar de vez em quando, porque ocupa um espaço no tempo e implica uma certa organização de eletricidade. A ideia do software como algo quase como um significado é um pouco empobrecedora. O software é intangível, porque não dá para eu pegar um programa, e essa é a grande diferença. Se eu produzo um sapato, que é o exemplo clássico nas formações marxistas, a fábrica de sapato produz uma quantidade X de sapato. Quando vendo esses sapatos ou uso um par, eles se desgastam e eu tenho que produzir mais. Diferentemente, se eu produzo um software, essa linha de código que eu usei no software pode ser copiada por outro dispositivo.
JJ: Mas ele fica obsoleto também em um dado momento.
DF: Ele fica, mas ele em si pode ser replicado infinitamente, então essa natureza é que diferencia o software do sapato. Isso traz grandes questões para a gente pensar em mais valia, para a gente pensar na exploração do trabalho. Talvez a exploração do programador não seja exatamente igual à exploração do sapateiro nesse aspecto. O ponto é que mesmo o software implica uma certa organização da matéria, ou da energia, para operar. Ele não é imaterial nesse sentido, então há uma redução aqui muito problemática quando a gente trata o software ou o intangível como se fosse algo só do mundo do imaginário. Porque, se fosse, bastava eu imaginar outra coisa que as coisas mudariam. Mas não, hoje a gente quase não pega mais em dinheiro para comprar as coisas e, ainda assim, se você não trabalhar, não vender a sua força de trabalho e não tiver uma certa quantidade de dinheiro, você morre de fome, não adianta você só imaginar mais dinheiro. A ideia de software imaterial é frágil, diante da materialidade do próprio virtual e da circulação de mercadorias intangíveis nesse grande shopping que virou a internet.
JJ: A partir do momento que você clica num produto, que você consome determinadas coisas, oferecendo seus dados em determinados lugares, de alguma maneira você tá produzindo mais valia para o para o grande capital, não?
DF: Este é um debate bem delicado e complexo para resumir numa entrevista. Mas é importante pensar a teoria do valor, voltar ao Marx em 2025, porque para Marx é só na produção que se produz o mais valor. No entanto, ele nunca disse que é só na fábrica que se pode produzir algo. Esse é o ponto. O que pesquisas mais recentes têm mostrado é que o capitalismo se modificou muito nos últimos quarenta, cinquenta anos, especialmente com a crise do fordismo, com a introdução da robótica e da informática no processo produtivo. Essas alterações permitem agora que a produção não se dê estritamente no espaço da fábrica. Às vezes a produção se dá na circulação ou no consumo, mas o que isso significa? Não significa que é no mercado financeiro que eu valorizo o valor. O mercado financeiro capta, rouba e cria pedágios para a circulação de valor. O banco, o banqueiro, enriquecem capturando valor produzido em algum lugar. Mas é fato que a produção nem sempre se dá dentro da fábrica. Terezinha Ferrari, socióloga do trabalho, muito importante nesse ramo, diz que, com a alteração do processo produtivo, as cidades têm sido disputadas pelo capital e se tornaram grandes esteiras produtivas a céu aberto. Se eu clicar em “comprar um produto” no Mercado Livre até as dez da manhã, em São Paulo, ele pode chegar no mesmo dia lá pelas onze horas. Parece que eu cliquei e o produto apareceu do nada, mas isso é possível porque a própria produção saiu do espaço restrito da fábrica e passou a ser pulverizada em diversas unidades produtivas e, mesmo no momento em que o produto é concluído, ele segue circulando. Para a Teresinha Ferrari, essa realidade indica uma alteração relativa na forma de organização do mercado, da forma que existia antes de produção, circulação e consumo, porque agora aquilo que é produzido, ou aquilo que está em produção, segue nas cidades em circulação de forma que permite uma diminuição do tempo de rotação do capital. Isso tem impacto nas taxas de lucro dos produtores, tem impacto no cálculo do valor. Não é que se produza mais valor na circulação, mas as transformações na circulação permitem que a produção se dê nesse diálogo com a circulação e permitem que o capital ganhe com isso. Voltando à questão tecnológica, as tecnologias digitais permitiram uma certa sincronicidade dos espaços produtivos, mas também da sociedade, para atender essas necessidades produtivas, de tal forma que de fato você ampliou muito as possibilidades de exploração da vida, você não precisa ser um trabalhador assalariado para ser explorado, há momentos em que eu baixo um aplicativo e vou calibrar esse aplicativo colocando informações pessoais, e altero a qualidade daquele aplicativo, logo eu estou trabalhando, sem receber; é trabalho não pago. Estou contribuindo para o mais valor extraído por aquela empresa numa esfera que não é esfera produtiva, nem sou programador, mas estou alterando a qualidade daquele produto, então isso é um traço desse momento do capitalismo e ele coloca novas questões para a gente pensar a exploração do trabalho.
JJ: Vocês falam, no livro Colonialismo Digital, em “acumulação primitiva de dados”. A gente está o tempo todo produzindo dados que geram valor. Fala um pouco sobre esse conceito.
DF: Essa expressão “acumulação primitiva de dados” é uma referência a Marx, que fala da acumulação primitiva de capitais, no volume I de O capital (capítulo 23). Na verdade ele fala da “assim chamada acumulação primitiva”. Ele faz um sarcasmo, porque ele está tratando das expropriações de bens que permitiram o deslanchar inicial do sistema capitalista. É a partir da análise daquelas expropriações originárias que Marx vai se referir ao colonialismo ou, como ele chamava, o sistema colonial. Para que o capitalismo chegasse à configuração de um sistema de burgueses e proletários, em que o trabalhador troca sua força de trabalho por um salário, foi necessário antes um processo violento de expropriação dos recursos naturais, das terras camponesas nos países centrais que eram feudais, das terras indígenas nas colônias, para convertê-las nas sesmarias coloniais. Essas expropriações produziram, além do capital inicial, uma massa de trabalhadores que já não tinham mais como sobreviver e que são levados a se empregar como assalariados dos burgueses. Então, a chamada acumulação primitiva é um processo violentíssimo de conversão dos meios de vida em capital. O que a gente observa, no atual momento da história do capitalismo e da tecnologia, é que o capitalismo nunca parou de expropriar formas de vida ou meios de subsistência, mas com a tecnologia digital surge um novo insumo que antes não era a capital e passa a ser, que são os dados, porque tudo na internet produz dados. Se eu entro num site pornô, por exemplo, isso deixa um rastro e esse rastro está lá pra quem souber localizar. Se eu faço uma ligação, deixo um rastro. Para chegar até aqui nesta entrevista, eu usei o Waze, utilizei dados já existentes de todos os motoristas que estão conectados. O Waze faz uma estimativa, pela velocidade média, de quanto tempo eu vou levar para chegar. A gente está produzindo dados o tempo inteiro, deixando rastros. A grande novidade tecnológica da década passada foi a capacidade de capturar esses dados, sistematizá-los, construir perfis de pessoas para direcionar propaganda. A Google foi a grande produtora dessa inovação. Se eu entro num site pornô, mas depois num site de igreja, ah, então, esse é conservador. Se eu entro num site pornô e depois num grupo contra a monogamia, então esse é um liberal de esquerda. Então, ela vai criando perfis que permitem depois sistematizar os dados e revender esses perfis como pacotes de atenção para quem precisar anunciar. Então, se você está vendendo um livro conservador, você não vai perder tempo com um perfil de esquerda. O Google sabe tudo que a gente faz. Uma pessoa de 30 anos hoje tem pelo menos 15 anos de vida registrada na internet. Isso permite ao Google criar um perfil muito sofisticado, com cardápios, para revender esses dados para direcionamento de propaganda. Isso explica a riqueza da Google. Essa empresa é um caso emblemático porque, quando começou, havia vários mecanismos de busca, depois ela vira um monopólio. Hoje a gente pensa em buscar qualquer coisa, e diz “vou dar um Google”. Esse monopólio permitiu ao Google sistematizar os dados de bilhões de pessoas. A revenda de perfis impulsionou o mercado e criou um novo modelo de negócio. Num segundo momento, percebeu-se que os dados são úteis não só para direcionar propaganda mas também para treinar modelos de inteligência artificial. As pesquisas sobre inteligência artificial têm décadas, são das décadas de 1960 e 1970. Mas a IA vive um boom agora, nos últimos dez anos, porque conta com dois fatores novos. O primeiro é o autodesenvolvimento de capacidade de processamento e armazenamento, o hardware. Hoje, a capacidade de arquivar e processar esses dados é infinitamente maior do que há algumas décadas, arquivam-se dados de muito mais gente e dados de todo tipo. A segunda inovação é a captura de dados via smartphone. Com o barateamento do smartphone, todo mundo passa a estar conectado e a oferecer dados. A combinação das duas novidades cria as condições perfeitas para treinamento de modelos algorítmicos. Para treinar a IA, é preciso uma quantidade absurda de dados. Eu não posso fazer um Chat GPT usando três ou quatro artigos, eu preciso colocar ali bilhões de artigos, alimentar com dados de perfis de respostas, sistematizar como as pessoas constroem textos. Então eu preciso ter acesso a dados e metadados de todas as naturezas. Quanto mais dados eu tiver, mais potente será meu programa. A grande novidade é que, se o dado é fundamental para essa tecnologia, superfaturada, especulada, cobiçada, ele vira um insumo, um ativo econômico. O dado é agora uma matéria fundamental, sem a qual eu não consigo fazer nenhum Chat GPT. Agora a coisa mudou, se antes eu precisava de grandes HDs, para arquivar dados das pessoas e levá-las a consumir o meu produto, agora o dado passa a ser o arquivo central. Então há uma busca desesperada por dados. O Google conseguiu, ao sistematizar e perfilar os dados, direcionar o comportamento das pessoas para fazê-las comprar coisas que não queriam antes. Aí ele vira o grande modelo de negócio de todas as plataformas, todas elas passam a ser redesenhadas em função dessa captura de dados. É por isso que a gente fala numa acumulação primitiva. Porque, se o dado agora é o novo insumo, vale tudo pra ter dado, vale redesenhar todo o template, toda a interface das redes para as pessoas ficarem cada vez mais tempo nelas. Ainda que isso produza adoecimento psíquico, burnout e todo tipo de questões, as plataformas precisam cada vez mais de dados das pessoas. Quanto mais dados têm, maior é o controle sobre o consumo. A busca por dados começa a influenciar a forma como as pessoas se relacionam, porque vivemos uma época em que cada vez mais gente se relaciona pelas redes sociais, por processos mediados por algoritmos. O cardápio da Netflix, o do Tinder, as postagens que aparecem para mim no X, no Instagram, no TikTok, até as recomendações de produtos financeiros no banco, tudo é cada vez mais mobilizado por dados que eu mesmo ofereço durante minha permanência nas redes. Então, nós estamos sendo de certa forma explorados, esfolados por um processo que nos vigia para obter dados. Esse processo de captura de dados para fins de lucro é violento, porque reorganiza, bagunça as relações sociais, prejudica a saúde mental, tem efeito sobre as formas de organização política, sobre as formas de afeto. E ainda assim as empresas de tecnologia insistem nessa captura porque dados dão lucro. Isso é a acumulação primitiva de dados. Depois que o Trump voltou ao poder, a Meta revogou a cláusula de direitos humanos de sua política de tratamento dos dados. Agora você entra no Facebook, por exemplo, escreve o nome de alguém que quer localizar, e aparece pornografia. Antes não aparecia porque havia uma barreira ética. Mas agora, para o público masculino de determinada idade, a pornografia vai fazê-lo ficar mais tempo. Isso é acumulação primitiva de dados.
JJ: E o que vocês chamam de Colonialismo Digital?
DF: O colonialismo digital é um conceito criado pelo sociólogo sul-africano Michael Kwet, para tentar explicar a alta concentração de poder das Big Techs do Vale do Silício. Para Kwet, essa concentração de poder econômico, de capitais, dessas empresas é ainda maior do que aquela dos monopólios estudados por Lênin no início do século XX. As Big Techs têm mais faturamento do que o PIB da maioria dos países do mundo. O valor de mercado das seis maiores empresas de tecnologia – Alphabet (do Google), Amazon, Apple, Meta, Microsoft e Nvidia – é muito superior ao PIB da Alemanha, o país mais rico da Europa (4,5 trilhões de dólares em 2024). Mas o poder que elas têm não é só um poder econômico, é um poder geopolítico que permite influenciar na organização dos países periféricos para a finalidade de exploração. Kwet dá o exemplo dos cabos de fibra óptica, que reproduzem o mapa dos cabos do telégrafo de antigamente, que elas controlam. O benefício desse processo não é distribuído igualitariamente, aliás, ele é garantido pela superexploração de territórios fora dos centros de produção. Veja o caso do coltan, do qual se tira os metais nióbio e o tântalo. O coltan é extraído na República Democrática do Congo com trabalho semiescravo. O capitalismo superexplora com trabalho semiescravo para garantir uma tecnologia, a IA, que faz poesia no lugar de seres humanos. É a combinação de high tech (alta tecnologia) com low life (vida ruim), entre o que há de mais sofisticado com o que há de mais atrasado. Para se ter Uber autônomo, sem motorista, em países centrais, dá-se golpe na Bolívia, se incentiva guerra civil na RDC, garimpo ilegal nas terras dos ianomâmis. Os países da periferia são meros compradores e consumidores de alta tecnologia enquanto exportam ferro, ouro, lítio, coltan. É o velho imperialismo, que impõe uma divisão mundial do trabalho injusta. O colonialismo digital teve implicações concretas durante a pandemia. O sistema de ensino brasileiro só se sustentou porque a gente utilizou tecnologia da Google e da Microsoft para funcionar, ou o Meets, o Teams, das universidades até o ensino básico. Hoje num país como o Brasil o ápice do ápice da pesquisa está nas universidades públicas e essas pesquisas estão na mão da Google, uma vez que todos os nossos arquivos hoje funcionam via Google Drive.
JJ: Agora você entrou num debate sobre a relação das plataformas com os Estados-nação, uma discussão sobre soberania. O atrelamento dos dados que produzimos a essas grandes empresas coloca em risco a soberania dos Estados?
DF: O que a gente chama colonialismo digital é uma ameaça real à soberania nacional de todos os países do globo terrestres, da Europa até a América Latina, a África, a Ásia. Alguns países perceberam isso. A China, o Japão e a Rússia têm buscado alternativas ao Vale do Silício, mas isso implica grandes investimentos estatais em desenvolvimento tecnológico próprio, porque de fato, se o país tem conhecimento de todos os dados de educação, saúde, previdência de um outro país, o país que oferece os dados fica nas mãos do dono da tecnologia. O problema da acumulação primitiva de dados – e por isso que a gente trata isso como colonialismo – é o poder de barganha diante da capacidade de acesso a informações sigilosas e preciosas inimagináveis para quem detém a tecnologia. Não é à toa que os Estados Unidos recusam usar tecnologia chinesa, até onde é possível, porque quem domina a tecnologia pode usá-la a seu favor. Então a tecnologia entra como um elemento geopolítico imprescindível e os países que não conseguem, ou não tentam desenvolver tecnologia própria, ficam nas mãos de quem tem essa tecnologia para oferecer. O colonialismo digital tem como base uma divisão internacional do trabalho desigual que se reflete no desenvolvimento tecnológico desigual e essa desigualdade é explorada como nicho de mercado. Os Estados Unidos oferecem o Google drive e um conjunto de tecnologias que permitem processar dados para treinar ferramentas. Falei da Nvidia, da Google, mas podemos falar da Intel, da Siemens, do conjunto de empresas que têm sido contratadas por governos brasileiros (federal, estaduais e municipais), que vão das câmeras de reconhecimento facial, aos servidores que rodam os dados da saúde, do DataSUS, todos os programas são estadunidense. Isso oferece para os Estados Unidos uma vantagem e uma capacidade de minerar esses dados para os fins mais diversos, desde treinar programa de inteligência artificial até utilizar esse dado geopoliticamente contra o país, ou mesmo direcioná-los para propaganda, revendendo esses dados para empresas naquilo que a gente chama de economia da atenção. Então nos preocupa, quando a gente fala de câmera de reconhecimento facial, não só a dimensão de vigilância, eugenista, que há por trás dessa saída para segurança pública, mas nos preocupa também quem gere esses dados. Em geral são empresas estadunidense ou israelenses, sem nenhum debate mais profundo sobre responsabilidade e proteção de dados dos usuários. Nos preocupam os processos de digitalização da saúde, que apostam no uso de equipamentos vestíveis, que aposta na internet das coisas, na possibilidade de você utilizar dados para saúde sem uma discussão sobre quem controla esses dados, porque quem controla esses dados passa a ter poder sobre o indivíduo. Imagina se você foi à farmácia, forneceu seu CPF, então tudo que você compra ali está registrado, do tamanho do preservativo até o remédio, se é para diabete, pressão alta, ansiedade, e a farmácia revende esses dados para o convênio. E aí, quando você contrata o convênio, e precisa fazer um procedimento caro, o convênio nega, alegando que você tem uma doença pré-existente que você não revelou. Muito se fala do roubo de dados, o roubo de dados é o menor dos problemas diante desse mercado que abre-se para o capital e que desenha cenários assustadores para a vida concreta das pessoas.
JJ: O Brasil tem exemplos de tecnologia com soberania: o PIX e as urnas eletrônicas. Soberania significa ter um controle público sobre essas tecnologias e dados. Pensar em democracia real passa por isso também, não acha?
DF: Perfeito. O Brasil é referência em várias áreas de desenvolvimento tecnológico, mas ele não conta com um projeto político. É óbvio que, com esse Congresso, com a composição política atual, é muito difícil pensar num projeto de sociedade. A saída para o colonialismo digital não é queimar as máquinas. É uma outra sociedade, é um projeto de sociedade em que a vida esteja no centro do desenvolvimento tecnológico, e não o capital. Mas isso implica uma disputa que está para além da tecnologia, implica uma disputa política de projeto. Um projeto que não inclua tecnologia como elemento central está fadado ao fracasso, porque as regras do jogo estão sendo alteradas pela interação algoritmizada, a favor da extrema direita. Outro ponto é que o Brasil tem as universidades a seu favor, com centros de desenvolvimento tecnológico muito preciosos, só que elas não contam com investimentos necessários para produzir tecnologia e colocar essa tecnologia a serviço das necessidades locais. Tem um plano que surgiu no governo Lula que é louvável, que é o plano nacional para inteligência artificial no Brasil. Uma das disputas em jogo é ter um financiamento governamental para o desenvolvimento tecnológico e sobretudo que desenvolvimento é esse. Porque também a gente não quer copiar os EstadosUnidos. Se não se investe nas universidades para produzir tecnologia que dê conta das necessidades sociais também não adianta. Então, a questão é como colocar diferentes populações como participantes desse desenvolvimento tecnológico, não só como consumidores que avaliam. As desigualdades geradas pela tecnologia não são só resultado do problema do acesso, mas também resultantes do design tecnológico. Na maioria das vezes, o design não é pensado para o bem estar social, ele é pensado para o capital e o resultado é ampliação de barreiras de acesso. Tem exemplos lindos como o PIX, mas tem exemplos catastróficos, como a terceirização do acesso à assistência social pelo “sou gov”, programa para uma população idosa ou com analfabetismo funcional que, mesmo tendo um celular, às vezes não consegue acessar um benefício. Então, a tecnologia também pode ampliar barreiras. Assim, se o debate sobre tecnologia digital não envolver as pessoas que serão as mais afetadas, corre o risco de ser o suquinho de Brasil: grandes passos feito sem a periferia, sem a favela, sem os quilombos, sem a população ribeirinha, sem as populações indígenas.
JJ: Você está dizendo que a esquerda tem a tarefa de se apropriar dessa discussão e lutar pela educação tecnológica. Quais são os desafios e caminhos que a esquerda deve trilhar no próximo período para se apropriar de fato e interferir nesse debate da tecnologia?
DF: O primeiro passo é se apropriar do debate, entender o curso das coisas para também poder separar o que é transformação concreta e o que é propaganda do vendedor da geladeira. Nem tudo que aparece como promessa se concretiza de fato. Para poder diferenciar uma coisa da outra, é preciso fazer o que o Marx fez lá no capítulo 13 do O capital que foi entender a maquinaria, para entender como funciona a indústria. Então temos a tarefa de entender as máquinas. Tem dois intelectuais, dois filósofos da tecnologia do século XX. Um influencia muito o debate, o outro, menos. Esse que influencia menos é o de quem gosto mais. Um é o Heidegger, que diz que a técnica é uma forma de dominação, então a técnica é política. Mas a saída do Heidegger, que infelizmente parece a que a esquerda mais gosta, porque é mais fácil, é quebrar a máquina ou demonizar a máquina e propor um retorno no tempo. Heidegger era um playboyzão nazista que criticava a modernidade para depois ir jogar golfe ou respirar nos Alpes suíços. Essa saída não serve pra classe trabalhadora. Outro pensador muito mais interessante e infelizmente menos conhecido é o Simondon. Este dizia que, para acabar com a alienação tecnológica, era preciso se apropriar da máquina. Em aulas e grupos de pesquisa sobre filosofia da técnica, ele desmontava satélite, levava o computador e desmontava para mostrar como funcionava. Este foi um desafio que foi encampado pelo movimento hacker ativista no começo dos anos 2000, ignorado pela esquerda. Eram os caras chatos que aconselhavam a não usar o Windows, a usar o Linux. Eles traziam algo importante, que é encarar a tecnologia como um elemento numa guerra, na guerra de classes. Elemento ou arma do qual, se a gente não lançar mão, a gente já entra perdendo. Veja o exemplo da guerra tecnológica na Palestina, na Síria e no Líbano. Num determinado momento, Israel utilizou uma tecnologia de vigilância sobre a dinâmica dos militantes nas redes sociais, para criar uma geolocalização de onde moravam e decidir qual prédio seria bombardeado. A escolha do prédio a bombardear tinha a ver com o rastreamento de atividade no Facebook, com a Meta dando esses dados para Israel. Ao saber disso, o Hezbollah voltou a usar o bip, o antigo pager. Ao perceber isso, Israel intercepta a produção de pagers e instala programas-bombas para explodir os pagers. A guerra passou também pela tecnologia. Dou um exemplo extremo para destacar que querer ser subversivo hoje, sem olhar para a dimensão tecnológica, sem pensar uma comunicação segura, sem pensar alternativas de interação e mobilização nas redes sociais, é pecar por inocência ou ineficácia. Essa é uma tarefa fundamental que a gente tem.
Confira a entrevista na íntegra no canal do Youtube da Fundação.