Por Helena Martins
Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC, pós-doutoranda no projeto “A governança econômica das redes digitais” (UFS), financiado pela Fapesp, editora da Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação da Comunicação e da Cultura e integrante do Direito à Comunicação e Democracia.
A história registrou poucas vezes o nível de poder econômico e político hoje concentrado em torno das grandes corporações de plataformas, conhecidas por Big Tech. Com orçamentos superiores a muitos países, grupos como Google, Meta, Amazon, Microsoft e X (ex-Twitter) controlam boa parte do desenvolvimento tecnológico e da circulação de conteúdos em âmbito mundial, associando economia e cultura a favor de um projeto de dominação. A natureza exploradora e ideologicamente dominadora desse projeto, antes ocultado pela apresentação de tais empresas como facilitadoras da participação política, fomentadoras da diversidade e de novas relações de trabalho, ficou nítida no último ano, mas em particular com a campanha e a vitória de Trump nos Estados Unidos. As Big Tech são aliadas de Donald Trump e outros governos e políticos de extrema-direita pelo mundo afora, mobilizando suas estruturas em seu favor. Diante desse cenário, no Brasil, organizações da sociedade civil e movimentos buscam juntar forças em torno da campanha Internet Legal, que objetiva promover a defesa da regulação de plataformas e de políticas que promovam a soberania popular.
A conformação das grandes corporações de plataformas está intrinsecamente associada à reestruturação capitalista neoliberal. Desde fins dos anos 1970, tecnologias da informação e da comunicação (TIC) tornaram-se a nova base de sustentação e expansão do sistema. Elas facilitam o processo de subsunção do trabalho intelectual, uma fronteira que o modelo anterior enfrentava, com impactos diversos para a subjetividade e a organização das e dos trabalhadores. Modificam a produção, tornando-a mais flexível e segmentada, o que demanda que a cultura também o seja. Esse processo nefasto se perpetua e se aprofunda por meio de descobrimentos mais recentes, como a datificação e a chamada inteligência artificial.
Essas tecnologias foram essenciais para a mundialização do capital nos últimos 40 anos. Afinal, não haveria a globalização sem (1) as redes de telecomunicações e a produção constante de informações que permitem o controle dos processos de produção e consumo tornados mundiais; e (2) sem a financeirização, que se vale da transformação de ativos diversos em bits e bytes que trafegam a toda velocidade e permitem formas especulativas de apropriação da riqueza.
Como Marx ironizou, no volume I d’O capital, ao retomar a afirmação de John Stuart Mill – que ponderou ser “questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano” – o propósito do desenvolvimento da maquinaria no capitalismo não é de gerar liberdade, mas de baratear mercadorias e produzir mais valor. Daí a importância que o controle da informação adquiriu para a concorrência capitalista. Daí a importância dos dados transformados em informação e de toda sorte de construção artificial de controle da circulação dela, como por meio da fixação de patentes.
É claro que todo esse processo é bastante contraditório, afinal também se evidencia a possibilidade de socialização do conhecimento, o que tem potencial disruptivo. No entanto, o desabrochar desse potencial depende menos do desenvolvimento intrínseco das tecnologias, como equivocadamente pleiteiam os aceleracionistas, mesmo os localizados à esquerda, e mais da capacidade de disputar os rumos da concepção e da introdução delas.
Essa capacidade de disputa foi fragilizada no período neoliberal, que suprimiu as capacidades do Estado de sustentar políticas de desenvolvimento científico e tecnológico soberano. O caso do Brasil é bastante ilustrativo. O país possuía uma empresa pública de telecomunicações importante, a Telebrás, que foi enfraquecida e, depois, privatizada. A privatização das telecomunicações brasileiras deu-se exatamente quando as redes de telecom se mostraram fundamentais para as “autoestradas da informação”. Centros de pesquisa como o CPQD foram desmantelados. Tudo isso tornou o país um consumidor de tecnologias estrangeiras, reduzindo seu papel na nova economia digital ao de fornecedor de mão de obra barata e de matérias primas, o que é visível também em outros países da África e da América Latina, como Congo e Argentina.
Simultaneamente, os Estados Unidos impuseram um padrão de desenvolvimento tecnológico assentado no digital, fomentaram a mercantilização da internet e, depois, impulsionaram a conformação de suas grandes plataformas digitais. Estas agora avançam para o controle das infraestruturas, como cabos submarinos e as chamadas nuvens, criando relações de dependência perigosas.
Resultados de processos como a mundialização do capital, a financeirização e o desenvolvimento das tecnologias digitais nos marcos da reestruturação produtiva, essas empresas cresceram valendo-se do ideário neoliberal, que justificou uma postura não de ausência estatal, mas de uma inflexão programada para facilitar a intervenção privada no setor, postura apresentada como fundamental à promoção da inovação e da concorrência.
Nada mais ilusório. Seguindo a dinâmica capitalista, sempre afeita à concentração e à centralização de capital, o que se viu nas últimas duas décadas foi a ascensão de poucas corporações estadunidenses, que se expandiram para diversos setores, nos quais obtêm não apenas clientes, mas também dados fundamentais à compreensão e mesmo antecipação do funcionamento dos mercados.
Restou, com isso, um cenário concentrado em âmbito transnacional, fragilizando as economias locais e a própria organização social.
Além da desigualdade que esse cenário gera entre os países, a instrumentalização de tal poderio para a manipulação política, por meio de campanhas de desinformação, fez com que o tema da afirmação dos Estados nacionais diante das plataformas ganhasse lastro. Como mostrou o relatório Referências internacionais em regulação de plataformas digitais: bons exemplos e lições para o caso brasileiro[i], da Coalizão Direitos na Rede, mais de cem países adotaram algum tipo de regulação de plataformas. Os passos que o Brasil buscou dar nesse sentido, expressos no Projeto de Lei 2.630, conhecido como PL das Fake News, foram freados pela força do lobby das plataformas. Aprovado pelo Senado em 2020, na Câmara, mesmo após ter sua urgência aprovada, o PL não foi apreciado pelo plenário. O então presidente da Câmara, Arthur Lira, engavetou o texto em junho de 2024. Desde então, apesar dos frequentes problemas, o Congresso se negou a avançar nessa agenda.
Apesar das dificuldades, organizações da sociedade civil seguem defendendo a regulação das plataformas, agenda que ganhou espaço junto ao governo Lula e à sociedade em geral, após as declarações da Meta em janeiro deste ano. Na ocasião, a empresa de Zuckerberg alinhou-se a Trump no ataque às decisões judiciais de países como o Brasil e na facilitação de discursos de ódio, racismo, misoginia e outros discursos violentos no âmbito da rede, ao anunciar mudanças em suas políticas de moderação de conteúdos.
Diante desse cenário, dezenas de organizações do Brasil e da América Latina lançaram uma carta alertando sobre os riscos da mudança. Em março, mais de cem ativistas e grupos lançaram a campanha Internet Legal, reivindicando regulação para reduzir a desigualdade de poder em relação às Big Tech, exigir transparência e formas de combate à concentração econômica, entre outras medidas.
Como nossas respostas não podem se limitar à tentativa de contenção de poder das plataformas, ou a uma melhoria de suas práticas ou simplesmente a uma inserção de empresas nacionais nos mercados digitais, a campanha também busca afirmar a necessidade de políticas que fomentem alternativas tecnológicas e ajudem a construir uma soberania digital popular. Chamada inicialmente pela Coalizão Direitos na Rede, pela Rede Soberania Digital e pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, a campanha já tem agregado outros coletivos, inclusive o Coletivo de Tecnologia e Soberania Digital do PSOL, e deve ser fortalecida pelo campo de esquerda e progressista.
Afinal, não há disputa de hegemonia que não passe, centralmente, pela disputa das comunicações e das tecnologias. Seu uso para a manipulação, a vigilância e mesmo para a guerra, como o genocídio palestino tristemente evidencia, exige que tal agenda seja compreendida e enfrentada em sua complexidade.
A dificuldade que envolve essa batalha, que se dá em um cenário geopolítico que tem como centro a disputa tecnológica em um contexto de alinhamento das corporações digitais à extrema-direita e de fragilização das esquerdas, não deve ser motivo para passos atrás, mas para um comprometimento ainda maior com essa agenda. Propostas para limitar o poder das Big Tech e construir futuros alternativos existem. No âmbito da regulação, elas estão resumidas no PL 2.630, embora seja preciso avançar para conter o poder econômico, inclusive por meio do desmembramento dessas plataformas, que hoje atuam em vários setores, sem limitação. Para uma agenda de políticas públicas, o documento Recuperando a soberania digital [ii], lançado no início deste ano, apresenta contribuições que vão da infraestrutura ao controle de dados públicos, passando pela proposição de uma agenda de pesquisas e de uma articulação estratégica em torno de um internacionalismo ecológico – importante por trazer à tona também os enormes impactos ambientais dessa lógica de conectividade e tratamento de dados permanente. Falta, portanto, agregar essas propostas e desenvolvê-las nos marcos de um projeto de transformação social. É a essa tarefa que o PSOL deve se colocar à disposição e mobilizar sua imaginação política.
Referências:
[ii] https://www.ucl.ac.uk/bartlett/public-purpose/publications/2024/dec/reclaiming-digital-sovereignty