Nana Oliveira
O discurso de crise sempre me remete a algo pontual, com uma delimitação estreita no tempo, por isso falar de crise do sistema carcerário brasileiro parece, no mínimo, cínico. Em 2007 quando foi instalada Comissão Parlamentar de Inquérito pela Câmara de Deputados se falava em crise e, em 2017, novamente estamos falando em crise. Compreendo que estamos mais para um quadro crônico do que para um mapa agudo, principalmente se considerarmos a instalação da segunda CPI do Sistema Carcerário, com relatório em 2015, que também teve como justificativa uma “crise” ocasionada pela rebelião no Complexo Prisional de Curado em Recife.
Entretanto o discurso da “crise” é reinaugurado em 1º de janeiro de 2017, com a rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, onde 56 pessoas em privação de liberdade foram mortas, acontecimento amplamente divulgado na mídia. Porém, dessa vez por meio de uma perspectiva mais perversa que as anteriores.
O Brasil é o quarto país em população carcerária no mundo, sendo que em dezembro de 2007 tínhamos uma população carcerária de 422.590 pessoas e dispúnhamos de apenas 275.194 vagas (CPI do Sistema Carcerário, 2009, p. 70). O sistema penitenciário brasileiro contradiz a lei da física que afirma a impossibilidade de dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço. Nessa época já tínhamos um alto número de presos provisórios, 34,43%, em detrimento de uma disponibilidade de vagas para apenas 21,88% (CPI do Sistema Carcerário, 2009, p. 72 e 73).
O Legislativo federal não se fez surdo à superlotação e ao número absurdo de presos provisórios e aprovou, em 2011, a Lei 12.403, que buscava restringir as hipóteses de prisão provisória e criou nove medidas cautelares diversas da prisão, entre elas o monitoramento eletrônico. No entanto, o objetivo dessa medida não se refletiu nas decisões do Judiciário e nos posicionamentos do Ministério Público.
Assim, apesar da inovação legislativa, instalada nova CPI do Sistema Carcerário em 2015 e considerando que apenas 18 estados da Federação responderam aos questionários enviados (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.9 e 10), o percentual de presos provisórios de 2007 para 2015 aumentou para 41% (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.10), o que demonstrou a não absorção das mudanças legislativas pelo Judiciário e pelo Ministério Público.
A taxa de ocupação dos presídios permanece no patamar alarmante de 161%, o que quer dizer que para cada dez vagas há 16 presos (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.10), demonstrando a capacidade milagrosa do sistema prisional brasileiro de multiplicação de vagas sem aumentar o espaço físico.
Retomando a questão da ocupação de vagas e associando essas vagas aos tipos penais (crimes) que mais levam ao encarceramento, contata-se que temos em primeiro lugar o tráfico; em segundo, o roubo; em terceiro, o furto; e em quarto, o homicídio. Este último é o motivo pelo qual 14% dos homens estão presos; entre as mulheres o homicídio é a causa de 7% das prisões. (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.11).
A partir desses dados em relação aos crimes de homicídio, não podemos deixar de recordar afirmativas como “Se tivesse matado sua mãe, você não estaria falando em direitos humanos”, entre outras afirmações do senso comum absurdas. Esse tipo de mentalidade ou de discurso tem servido de justificativa para todos os tipos de barbaridade quando se defende os direitos humanos da população encarcerada. De fato, se decidíssemos prender somente quem cometeu algum crime contra a vida e incluíssemos nisso o latrocínio, que é considerado crime contra o patrimônio, teríamos uma população prisional de 17% entre os homens e 9% entre as mulheres, (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.11), o que mostra uma necessidade profunda de reflexão sobre a democratização do sistema de justiça.
Outro dado a ser considerado é a relação entre o encarceramento de pessoas e o racismo, presente na nossa sociedade e que se tenta negar pelo mito da democracia racial. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2014 mostra que temos um país com uma população de negros (pretos e pardos) de 53,63%, e uma população prisional de 61,67% de negros (pretos e pardos). Por conseguinte, há percentualmente mais pessoas negras presas que em liberdade. Temos também, proporcionalmente, mais jovens entre 18 e 29 anos encarcerados do que em liberdade. Dentre os encarcerados, temos 55,08% de pessoas nessa idade, enquanto dentre as pessoas em liberdade, 18,90% são jovens nessa faixa etária.
Os dados educacionais da população prisional, procedentes do mesmo documento, nos mostram o perfil socioeconômico dos presos: apenas 9,54% concluíram o ensino médio, enquanto na população em geral esse percentual é de 32%.
Ao destacar os tipos penais que mais encarceram, associados a dados sobre o perfil racial e socioeconômico da população prisional, chegamos a uma conclusão: “Temos um sistema penal estruturado para prender pobres”. Isso já era constatado pela CPI do Sistema Carcerário de 2007, que durou oito meses.
Já de 2003 a 2006 foram 3.712 pessoas presas pela Polícia Federal em grandes operações, com um resultado de permanência na prisão em virtude de condenação de 265 pessoas, sendo que o tipo de crime, praticado pela nossa “digna” burguesia causou um prejuízo estimado de R$ 18 bilhões para o país.” (CPI do Sistema Carcerário, 2009, p.48).
Quando examinamos o suposto caráter ressocializador do sistema, vemos uma percepção equivocada pela qual o crime seria uma patologia individual, e não social. Sendo individual, bastaria isolar aquele que a porta, para não haver transmissão, e medicá-lo com restrição a acessos a direitos sociais. Assim, se chegará à cura. Se porventura isso não ocorrer, pode ser aumentada a dose do remédio (tempo de encarceramento). Dentro dessa percepção, o não alcance da cura é questão de ajuste de dose, pois o medicamento está correto.
Supondo que o sistema carcerário tem a capacidade de recuperar ou ressocializar alguém e que os clássicos remédios referendados pelo senso comum são adequados para a cura, temos um problema de coerência grave. Se a recuperação das pessoas que cometem crime passa por trabalhar e estudar, como apenas 16% da população prisional trabalham e apenas 11% estudam (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.12).
Há bastante tempo escutei de um padre da Pastoral Carcerária que prender gente com a expectativa de ressocialização era o mesmo que amarrar uma criança na árvore e esperar que ela aprenda a andar nessas condições. O regime de pena mais utilizado é o inicialmente fechado, que corresponde a 41% da população prisional com condenação. A ela se somam 41% de pessoas encarceradas provisoriamente, o que já soma 82%, pois a prisão provisória tem como único regime o fechado. Isso comprova que temos a conceito desconexo que de fato é possível ensinar alguém a andar deixando a pessoa amarrada numa árvore.
Herbert José de Almeida Carneiro (ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), hoje desembargador e presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que conheci ainda como juiz da Vara de Execuções Criminais de Belo Horizonte e que fez uma excelente explanação como convidado pela última CPI Carcerária, destacou a necessidade de construirmos o sistema penitenciário de forma interinstitucional e intersetorial. Isso implica que Executivo, Legislativo e Judiciário cumpram seu papel, com permanente interlocução entre si (CPI do Sistema Carcerário, 2015, p.72).
Diante dessa explanação e de questões abordadas aqui, como a aumento do número de presos provisórios, apesar da atuação do Legislativo, dos relatórios de duas CPIs, do recorte racial e socioeconômico dos encarcerados, escancarado tanto pelo número de presos e presas, negros e negras, bem como a punição estabelecida, sempre de prisão, para os crimes cometidos por esse grupo social, a questão que se apresenta em nada tem a ver com o número de crimes ou quem os comete. O que está posto é a ausência de uma política pública conjunta dos três poderes com vistas à modificação estrutural do sistema penal brasileiro, que inclui o sistema carcerário, estrutura que traduz de forma contundente a ausência de uma política criminal que tome como referência os dados produzidos pelo Legislativo e pelo Departamento Penitenciário Nacional.
Mas iniciamos 2017 e ainda falamos de crise no sistema penitenciário brasileiro, como se estivéssemos diante de algo inusitado e imprevisível, ao invés de “uma tragédia anunciada” largamente aos quatro ventos ou pelos três poderes da nação, ou talvez promovida por eles mesmos.