A localidade no litoral do Maranhão é, talvez, o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Quanto mais próximo da linha do Equador, isto é, quanto menor a latitude, maior é o impulso do movimento de rotação da Terra para a decolagem de tais veículos. Para se ter uma ideia, a velocidade de rotação de superfície da região da principal base de lançamento dos EUA, o cabo Canaveral, Flórida, é de 408 metros por segundo. Em Alcântara, é de 465 m/s. Essa característica possibilita que se lancem cargas mais pesadas com grande economia de combustível. Assim, além de mais eficiente, a base brasileira implica barateamento de custos.
A vantagem buscada por Washington não para por aí. Quando se examina o documento do acordo de Alcântara, fica evidente que a maior limitação imposta pelos EUA é o cerceamento da transferência de tecnologia e recursos. Isso interfere seriamente nas decisões soberanas para o Brasil se desenvolver na área espacial.
Compensação monetária
Em 18 de março de 2019, na visita de Jair Bolsonaro a Washington, os governos do Brasil e dos Estados Unidos assinaram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) que regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo norte-americano e de empresas daquele país. O Brasil receberá uma compensação monetária por isso. Para entrar em vigor, precisa ser aprovado pelo Congresso.
Há mais propaganda e pressa em aprovar definitivamente a parceria com os EUA do que eficiência ou vantagens comprovadas para o nosso país. Brasília fornece dados de comprovação duvidosa e evita a discussão das implicações de um alinhamento geopolítico e tecnológico com os EUA no setor espacial.
O governo Bolsonaro defende o acordo com argumentação de cunho exclusivamente econômico. Em documento publicado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, subscrito pelo titular Marcos Pontes, o Brasil deixou de arrecadar US$ 3,9 bilhões nos últimos vinte anos, em razão da não aprovação de um acordo semelhante com os próprios EUA, em 2000. Pontes não indica a origem dos cálculos e nem atenta para o fato de que o total alcança US$ 195 milhões anuais, montante quase irrisório diante do valor estratégico da base.
Com a aprovação do AST, ainda segundo o ministro, o Brasil terá a possibilidade de capturar 1% do volume global de negócios relativos à exploração do espaço, propagado por ele em US$ 1 trilhão ao ano em 2040. Há uma estimativa realizada pelo banco Morgan Stanley que aponta esse valor (https://www.morganstanley. com/ideas/investing-in-space.). Todavia, na papelada do MCT, nenhuma fonte é citada. Tais ausências são, no mínimo, curiosas num documento que pretende informar o Congresso Nacional sobre um acordo internacional importante.
Sem transferência tecnológica
Logo no Artigo I do AST, há a declaração de que o objetivo é “evitar o acesso ou a transferência não autorizada de tecnologias não relacionadas ao lançamento”. É possível observar que o acordo serve para garantir que os EUA, como sócio maior, reservem para si o direito de determinar quem e como utilizará a base.
Ao longo do texto, torna-se claro que não haverá o repasse de capacidades científicas e de engenharia para que o Brasil retome a construção dos próprios veículos lançadores de satélites (VLSs). Pior: o acordo impede a transferência de recursos oriundos do aluguel da base para a pesquisa diretamente relacionada à construção de um VLS nacional. Isso é estipulado no Artigo I, que busca “evitar o acesso ou a transferência não autorizada de tecnologias dos Estados Unidos da América”.
O acordo também impede que o Brasil invista os ganhos financeiros oriundos do aluguel da base em “programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação, ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados”.
O AST proíbe que o Brasil negocie futuras parcerias que envolvam o lançamento de foguetes em Alcântara com países que não fazem parte do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR). Esse regime imposto pelos EUA veda aos signatários a construção de determinados tipos de foguetes que pelas dimensões possam ser convertidos em mísseis balísticos. O documento impõe ao Brasil limitações na busca de parceiros paralelos aos Estados Unidos. A recíproca não acontece. Aliados dos EUA podem se beneficiar da base, num claro favorecimento ao sócio mais forte na empreitada.
O acordo também define que não haverá lançamentos de foguetes com carga explosiva em Alcântara, mas há uma inconsistência em relação à proibição do uso militar da base. Isso se dá pelos obstáculos colocados para a inspeção brasileira dos materiais que chegarem de fora. No inciso1, alínea b, o Artigo define que “as autoridades brasileiras competentes deverão receber do governo dos Estados Unidos da América ou de um licenciado norte-americano a declaração por escrito sobre o conteúdo dos referidos contêineres lacrados. Essas atividades não deverão autorizar exame técnico, documentação (por meio de registro visual ou por outros meios) ou duplicação de qualquer tipo de conteúdo”.
Há mais. É prevista a criação de dois tipos de áreas especiais, as “controladas” e as “restritas”. As primeiras possuem o acesso supervisionado pelos governos brasileiro e norte-americano. Nas “áreas restritas” só será permitido o acesso de pessoal autorizado pelos estrangeiros. Importante ressaltar que não são especificadas que áreas serão essas. Quem fará isso são os estadunidenses. Além das restrições de acesso a determinados setores internos, Washington impõe limites à recuperação de possíveis destroços de equipamentos em caso de acidente fora da base.
Disputa de duas décadas
O acordo de março não é o primeiro feito em torno do uso de Alcântara. Em abril de 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso assinou um documento também com os EUA, então sob a administração de Bill Clinton (1993-2001). O contrato era praticamente idêntico ao atual. No ano seguinte, o Congresso brasileiro o rejeitou. Em parecer, o então relator, deputado Waldir Pires (PT-BA), escreveu que “Trata-se, como já demonstramos, de diploma internacional que consubstancia (…) acima de tudo, o desprezo à soberania da nação brasileira”.
Em 2002, foi firmado outro memorando, dessa vez com a Ucrânia, e que viria a criar a Alcântara Cyclone Space. A empresa binacional tinha o objetivo de comercializar e lançar satélites utilizando-se de tecnologia ucraniana. Estavam presentes restrições semelhantes às colocadas pelos estadunidenses. Todavia, a nova cooperação não vedava ao governo brasileiro a busca de outras parcerias, nem colocava empecilhos quanto ao uso do dinheiro obtido com o aluguel do centro de lançamentos.
Mas as negociações não prosperaram. Além de problemas políticos enfrentados entre Ucrânia e Rússia, pesou na interrupção o acidente em Alcântara com o VLS brasileiro, em 2003, que matou 21 cientistas, engenheiros e outros técnicos. Ali também houve pressão do governo de George W. Bush (2001-2009) para que os ucranianos não transferissem tecnologia para o Brasil. O projeto seria cancelado em 2015 durante o governo de Dilma Rousseff e, entre 2018 e 2019, a empresa binacional foi definitivamente sepultada nos governos Temer e Bolsonaro.
Competência técnica
O Brasil tem formado quadros técnicos no setor aeroespacial de reconhecida competência. Com estímulo governamental poderiam desenvolver uma gama de capacidades para mobilizar setores de pesquisa em Universidades e empresas e criar sinergias com outros ramos da economia. Vetando o aporte de recursos para o VLS nacional, os EUA impedem o desenvolvimento de qualquer política pública de estímulos a pesquisas espaciais brasileiras.
Existe a possibilidade de que a utilização da base traga, de fato, um aumento nos recursos financeiros para o Brasil. Mas serão divisas esterilizadas, bloqueadas para demandas do setor aeroespacial, ferindo a própria legislação brasileira.
O acordo, na forma atual, atende aos interesses dos EUA e coloca nosso país numa posição subalterna. Fica muito difícil acreditar que seremos um grande player global se o governo aceitar as limitações impostas de fora.