João Máximo
O Maracanã já foi do povo, tentou ser da elite e hoje é de ninguém. Em seus 67 anos de existência, vem cumprindo um destino que tinha tudo para ser grande, imenso, mas que acaba sendo o mesmo de velhos estádios demolidos em nome do progresso. Só que, para o Maracanã, o progresso andou para trás. O que já foi o maior, o mais famoso, o mais sagrado templo esportivo do mundo, é hoje um monumento à incúria.
Quando o Flamengo recentemente desembolsou R$ 1 milhão para que os refletores do estádio possam iluminar seus 4 x 0 sobre o San Lorenzo (e outros tantos reais para que sua torcida testemunhe a vitória com um mínimo de respeito), ficou claro que o Maracanã já não era o mesmo e não só arquitetonicamente. Não era o mesmo no corpo e na alma.
Sim, certos estádios de futebol têm alma. O primeiro Wembley, o Santiago Bernabeu, La Bombonera tinham até personalidade. Dizia-se que eram estádios “que jogavam”, pois era difícil a uma equipe visitante resistir à temperatura da torcida local, convertida naquele tipo de energia que fatalmente leva adiante o time da casa. O velho Maracanã, ao contrário, sempre se impôs pela neutralidade. Não jogava e deixava jogar. Sua alma estava justamente em permitir que, maior que fosse o coro das arquibancadas, ali sempre podia vencer o melhor, fosse o Uruguai em 1950, fosse a LDU em 2008.
Não há retórica nem inverdade em se dizer que o velho Maracanã já foi do povo. Para o povo ele foi construído, em dois anos, não importando que houvesse política (como sempre há) por trás do ambicioso projeto. O dinheiro público empregado nas obras mais o arrecadado com a venda de cadeiras cativas e perpétuas foi rigorosamente fiscalizado. Por menos democrático que fosse o presidente Eurico Gaspar Dutra com fechamento de partidos, cassações e prisões políticas a oposição que restou a ele entre os vereadores do então Distrito Federal foi o bastante para saber como andavam as contas do novo prefeito Ângelo Mendes de Moraes. Pronto, o velho Maracanã foi entregue, sem problemas, a quem pagou por ele: a municipalidade.
Mas não é por isso que seu verdadeiro dono era o povo. Antes de sua inauguração, excetuando o histórico São Januário, os estádios de futebol do Rio eram convites para que o torcedor ficasse em casa, acompanhando seu time pelo rádio. Os estádios eram pequenos, desconfortáveis, sem cor e sem alma. Já imaginaram um Fla-Flu na Gávea ou nas Laranjeiras, clássico para poucos, dez mil no máximo? Pois era assim o futebol carioca antes de 1950.
Talvez o maior encanto do velho Maracanã esteja justamente na generosidade com que abriu seus portões para todos, o torcedor da geral e o bacana das cadeiras azuis. Povo representado pela mulher e pelo idoso que não se atreviam a ir a Moça Bonita, a Bariri ou a outro estadinho lá de longe. Representado, também, pelo menino torcedor que o pai tinha medo de levar a campos chamados de “alçapão”. Assim, o futebol ganhou novos torcedores, tornou-se mais vivo, mais apaixonante, mais democrático. O Fla-Flu? Talvez cause espanto nos mais jovens saber que 32 dos realizados no velho Maracanã tiveram público acima de cem mil pessoas.
Também não se exagera quando se diz que o novo Maracanã se elitizou. Ou melhor, voltou-se para uma elite capaz de pagar caro por um espetáculo antes barato. Qualquer um podia desembolsar quase nada para ver seu time jogar no velho Maracanã, é verdade que ao sol ou à chuva, em pé, pescoço espichado, como todo bom e fiel “geraldino”. Mas mesmo o ingresso da arquibancada custava pouco, tão pouco que podia ser adquirido pelas 120 mil pessoas que tomavam os degraus de cimento em dias de lotação esgotada.
E aí… tudo mudou. A ideia do então presidente da FIFA, João Havelange, de se implodir o velho Maracanã para que se construísse outro em seu lugar, se pareceu absurda quando o estádio comemorava seu cinquentenário, tornou-se realidade quando o Brasil (leia-se: Presidência da República, governos de estado, prefeituras e, claro, CBF) concluiu que já era hora de voltarmos a sediar uma Copa do Mundo. Para isso, novos estádios, obedientes ao chamado “padrão FIFA de qualidade”, teriam de ser construídos pelo país afora. Foi para adaptar-se à nova realidade que o velho Maracanã começou a ser demolido.
O tal padrão FIFA de qualidade incluía redução das dimensões do campo de jogo e, mais importante, diminuição de público nos estádios. Lugares sentados, e numerados, seriam obrigatórios. Marquises para protegerem o torcedor do sol e da chuva deveriam ser construídas. Os ingressos, incluindo a parte da FIFA ou das entidades organizadoras, custariam mais. Num país como o Brasil, onde não havia sequer um estádio com tais especificações, foi uma festa.
Festa das empreiteiras contratadas para construir os estádios, agora denominados “arenas”. Festa dos órgãos públicos que bancariam tudo para não ficar com nada além do reconhecimento das empreiteiras. Festa de CBF e da FIFA, que fariam uma Copa do Mundo moderna e, melhor, rendosa. Festa enfim das autoridades envolvidas, pois todos, rigorosamente todos presidentes, governador, dirigentes da FIFA, cartolas da CBF poiaram e até bancaram a grande festa (história que se repetiria quando a mesma turma se entregou ao sonho-pesadelo de organizar uma Olimpíada).
Como em 1948, as obras do novo Maracanã foram feitas com dinheiro público. De início, algo próximo a R$ 1 bilhão. Claro, somem-se a isso mais R$ 211 milhões em nome dos superfaturados. Uma vez concluída, a “arena” foi entregue de graça ao grupo de empreiteiros. O governador justificou-se: “O estado não tem condições de administrar o estádio”. Se não tinha, por que fazê-lo? Algumas respostas cínicas chegaram a ser dadas em desrespeito à inteligência do cidadão. Por exemplo: a modernização do Maracanã tinha, entre outras, uma causa “nobre”: educar o brasileiro. Em especial, o brasileiro que gosta de futebol.
Um senhor chamado João Borba, na época presidente do consórcio que iria cuidar do novo Maracanã, abriu o coração ao jornal “O Globo”: “Fui no último fim de semana às finais de tênis em Wimbledon, e no convite estava escrito que não era recomendável ir com determinada roupa. Quando o inglês lê ‘não é recomendável’, entende que não deve usar aquele tipo de roupa.”
Como o mesmo senhor antecipava, na “arena” em construção seriam proibidos bumbos, apitos, bandeiras, torcedores sem camisa. E como ele não fazia segredo de que muito de sua inspiração fora colhida, ao vivo e em cores, na britaníssima plateia de Wimbledon, podemos imaginar como seria o seu Fla-Flu: torcedores de Flamengo e Fluminense de paletó e gravata, celebrando, com palminhas e sussurros, a jogada do craque. Sorrindo, mas não gritando na hora do gol. E no intervalo do primeiro para o segundo tempo, saboreando elegantemente um chá. Enfim, educado e elitizado, o Fla-Flu daria sono. Não que os homens que realizavam o projeto da tal “arena” não soubessem a diferença entre o futebol e o tênis, ambos grandes esportes, mas cada qual com seu ritmo e sua coreografia. Eles só estavam preocupados em nos educar.
O senhor fã de Wimbledon, com todo o pomposo consórcio, pulou fora. Alguns respondem a processo (mas não pelo que fizeram ao Maracanã). Outros fingem que nada aconteceu. Outros mais, da Fifa, da CBF, do governo, pagam por crimes de corrupção que, da mesma forma, pouco têm a ver com a modernização do estádio, mas que dizem bem de que barro foram feitos os personagens dessa história.
Em resumo, o velho Maracanã já não existe. E o novo, adormecido, fechado, abandonado, quase esquecido, sem dono, sem futuro, sem alma… não é de ninguém.