O governo Bolsonaro mais do que qualquer outro está empenhado em desmontar uma das grandes conquistas da Constituição de 1988, o direito universal à Saúde. Isso se dá não apenas por cortes de verbas, mas pelos incentivos às empresas privadas para que assumam o papel do Estado na área. A Emenda de Teto de Gastos e as propostas de Paulo Guedes podem levar o sistema ao colapso num momento em que a crise econômica se aprofunda
Rosa Maria Marques
Neste primeiro ano de governo Bolsonaro, se denunciou nas ruas, no Congresso e nas diferentes formas de mídias sociais comprometidas com uma sociedade mais justa e democrática sobre e como as políticas econômicas ultraliberais estavam (e estão) desconstruindo programas importantes em várias áreas sociais. Entre elas, a que teve maior visibilidade foi a da Educação que, ao restringir os recursos de bolsas de mestrado e doutorado, levou milhares de pessoas às manifestações em defesa das Universidades públicas. Ao lado dessa área, no entanto, outra tem sido duramente afetada e corre o risco de ver a política se constituir letra morta: trata-se da Saúde pública, ou melhor, do Sistema Único de Saúde (SUS). Num certo sentido, como veremos adiante, essa é a área que mais tem sofrido ataques do novo governo.
Resistência restrita
Apesar dos graves ataques impetrados contra o SUS, a resistência a essas iniciativas e as denúncias sobre os impactos praticamente têm se restringido às entidades que sempre estiveram ao seu lado, que mantém vivos os princípios do movimento sanitarista que lhe deu origem e sustentação, e aos trabalhadores da saúde nos três níveis de governo. As grandes massas, usuárias de ações e serviços, e os setores progressistas da sociedade, que em vários momentos se fizeram presentes nas manifestações deste ano, não têm sido, infelizmente, protagonistas dessa resistência. E isso não ocorre por acaso. Os motivos têm raízes históricas, em como, por exemplo, os setores mais organizados dos trabalhadores viram (e veem) a relação público/privada na saúde do país. Pontuar essas e outras questões, principalmente aquelas introduzidas pelo governo Bolsonaro, é o propósito deste artigo.
1 – Do subfinanciamento ao desfinanciamento do SUS
Durante todos os anos de existência do SUS, não foram poucos os que denunciaram a insuficiência de recursos, estivessem eles envolvidos na sua gestão ou fossem pesquisadores da economia da saúde. O número de estudos sobre esse assunto é considerável e está disponível para o acesso do público em geral nas plataformas da internet. As evidências que embasavam (e embasam) essa afirmação eram autoexplicativas: ao se comparar o esforço dedicado ao financiamento público em saúde em países com sistemas semelhantes ao SUS, isto é, público e universal, verificava-se que, em média, em 2014, gastavam o equivalente a 8% de seu Produto Interno Bruto (PIB), enquanto, no Brasil, esse percentual era de somente 3,9%. Trata-se de gasto público, financiado, portanto, com recursos tributários. Evidentemente, que essa participação tem como resultado um baixo per capita, com tudo que lhe deriva, longe do realizado em países com sistemas universais ou em países de renda média, tal como o brasileiro.
Luta permanente
Embora o assunto possa ser considerado um pouco árido, é importante perceber que, desde a promulgação da Constituição de 1988, a luta para ampliar os recursos do SUS e para regulamentar a participação das três esferas de governo em seu financiamento foi permanente. A última alteração realizada, e com relação à participação da União, ocorreu em 2015. Ali foi substituída a base de cálculo do montante aplicado no ano anterior, até então corrigido pela variação nominal do PIB, pela Receita Corrente Líquida (RCL). Esse percentual seria de 13,5% em 2016, até alcançar 15% em 2020. Segundo vários pesquisadores, essa alteração resultaria em perda de recursos para o SUS (FUNCIA, 2015). Já os municípios e o distrito federal desde 2012 devem aplicar pelo menos 15% e os estados 12% da arrecadação dos impostos em ações e serviços públicos de saúde. Assim, depois de muita luta, somente em 2012, com a modificação ocorrida em 2015, foram definidas as regras de participação dos três níveis de governo na saúde pública. Essa definição, contudo, embora tenha melhorado a disponibilidade de recursos, não permitiu a saída da condição de sistema subfinanciado. Em dezembro de 2016, quando aprovada a Emenda Constitucional 95, que altera o regime fiscal, congelando o nível de gasto do governo federal por vinte anos, a situação apenas se agravou. Embora tenha sido definido no orçamento da União que, para a saúde, seria aplicado o percentual de 15% da RCL previsto para acontecer somente em 2020, as perdas de recursos foram visíveis nos anos de 2018 e 2019. Funcia (2019) estima que, em 2019, os recursos destinados à saúde pública no orçamento representavam apenas 13,87% da RCL. Daí podemos inferir o que irá acontecer nos próximos anos: um aprofundamento do desfinanciamento, com graves impactos sobre as ações e serviços de saúde de uma população crescente. Quando este artigo estava sendo finalizado, tomamos conhecimento do Pacote de Medidas Econômicas encaminhado ao Congresso, em 5 de novembro de 2019. Naquilo que afeta diretamente o financiamento da saúde pública, destacamos a proposta de desindexação das receitas federais para a área. A implantação implica levar às últimas consequências a EC 95, deixando de ser aplicado qualquer percentual da Receita Corrente Líquida para a saúde pública. Na sequência, tal prática eliminará a vinculação das receitas nos planos municipal e estadual. Essa iniciativa, além de inviabilizar a continuidade da saúde pública, introduzirá a concorrência desenfreada entre os diferentes ministérios.
2 – A saúde é um direito de todos e um dever do Estado
O título acima é o início do artigo 196 da Constituição de 1988 e a base norteadora da construção do SUS. Passados 31 anos, quão verdadeira é essa afirmação, ou melhor, o que a realidade da saúde no país nos revela? Em 2015, 72% da população brasileira tinha somente o SUS para acessar serviços médicos e hospitalares (BARROS e PIOLA, 2016). Nesse mesmo ano, a cobertura dos Planos de Saúde de assistência médica com ou sem serviços odontológicos era de 25,7% da população. Nos anos seguintes, com o aprofundamento do desemprego junto ao mercado formal de trabalho, essa cobertura caiu, chegando a 24,2% em 2018 e assim permanecendo em agosto de 2019, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANSS). Evidentemente que a redução da cobertura resultou no aumento da população dependente do SUS. Mas o importante a ser discutido é como se fez possível que num país onde “a saúde é tida como um direito de todos e um dever do Estado” – o setor privado se tornasse tão desenvolvido, a ponto de cobrir quase um quarto da população? E isso sem contar com o acesso às ações e serviços de saúde mediada pelo pagamento direito, o que elevaria esse percentual. Mais do que isso, como é possível que o crescimento dos Planos de Saúde tenha acontecido que passou ao processo de implantação do SUS? Se considerarmos somente as informações disponíveis a partir do ano de criação da ANSS – de 2000 em diante, posto que os dados dos anos anteriores podem ter problemas de consistência, verificamos que a cobertura dos Planos aumentou de 18,3% para 25,9% da população entre dezembro de 2000 e dezembro de 2014.
Ninguém defende o direito universal à saúde
Pelo menos duas hipóteses explicativas devem ser levadas em consideração para responder a essas perguntas. A primeira diz respeito ao fato de que, no Brasil, nenhuma classe social ou segmento de classe abraçou, em momento algum, a defesa da saúde pública universal. Ao contrário, entre os trabalhadores mais organizados do mercado formal (do setor privado, mas também de estatais) os planos de saúde integram pautas de reivindicação desde os anos 1970 (ESCO – REL, 1999; BAHIA,2001). O movimento sanitarista que por ele lutava era constituído de profissionais e pesquisadores na área da saúde. Dessa forma, pode-se dizer que a bandeira da saúde pública universal levantada pelos sindicatos, movimentos sociais e partidos vincula – dos aos trabalhadores é apenas formal, pois parte significativa de suas bases é coberta pelos Planos de Saúde. Essa percepção é ainda mais reforçada quando se sabe que a criação do SUS não foi acompanhada da extinção da possibilidade de deduzir as despesas com os Planos de Saúde e com o pagamento direito de despesas médicas na declaração do imposto de renda. Isso, em termos fiscais, significa que o Estado está renunciando à arrecadação devida, caso não fosse realizada a dedução, o que chamamos de renúncia fiscal. Mas significa, ao mesmo tempo, que o Estado brasileiro, que tem na Constituição a frase “a saúde é um direito e um dever do Estado”, está financiando em parte o gasto privado em saúde, seja em planos ou não. Talvez esse fato seja revelador da maneira como as coisas são feitas no país. Aprova-se algo, mas não se vai às últimas consequências. Dizer que “a saúde é um direito” implica que ela não pode ser mediada por renda. Por decorrência, seu acesso é gratuito.
Estado financia gasto privado
Financiar o gasto privado em saúde pois, impedir a construção do SUS. E não se trata dos valores envolvidos, embora esses não sejam desprezíveis. Trata-se de reforçar a ideia, presente na sociedade brasileira e em todos os estratos sociais, de que o serviço prestado pelo setor privado é melhor do que o público. Sobre a questão da renúncia fiscal, se não estivermos enganados, somente o Partido dos Trabalhadores, em 1989, e o Partido Socialismo e Liberdade, em 2018, ousaram colocar em seu programa o fim dessas deduções. Em 2015, somente a renúncia fiscal decorrente das deduções do imposto de renda da pessoa física e jurídica totalizou R$ 16, 2 bilhões. O conjunto das renúncias na área da saúde atingiram, para o mesmo ano, 32, 3 bilhões de reais, o equivalente a 32,3% do gasto do Ministério da Saúde, em 2015, (cerca de 100 bilhões de reais) (OCKÉ – REIS, 2018)
3 – O desmonte no período Bolsonaro
Do ponto de vista do financiamento, no curso da execução do orçamento de 2019, não há novidades com relação ao ocorrido durante a gestão Temer, a não ser o aprofundamento do desfinanciamento que já vinha ocorrendo, tal como já mencionado. Ao contrário de outros ministérios, o da Saúde não sofreu com os contingenciamentos realizados em função da frustação da arrecadação provocada pelo baixo desempenho da economia. Somente os investimentos para obras de hospitais universitários foram afetados, mantendo-se os demais gastos previstos no orçamento. Houve, isso sim, uma inflexão no tocante a programas importantes, os quais traduziam princípios indissociáveis ao entendimento da saúde como um direito para todos, isto é, a que todos pretendem abraçar de forma inclusiva. Isso fica subentendido quando se verifica que, no reordenamento da estrutura do Ministério, foi extinta a coordenação responsável pelo programa de atenção integral aos portadores de doença falciforme enfermidade genética de maior prevalência no Brasil e no mundo e que afeta majoritariamente a população negra, e houve o rebaixamento do programa de tratamento de HIV/Aids. O Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), Aids e Hepatites Virais passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Não se trata de mera mudança de nome, muito embora não seja negligenciável o fato de a palavra Aids ter desaparecido com a mudança de estrutura. Trata-se do HIV/Aids e demais doenças sexualmente transmissíveis estarem junto a doenças como hanseníase e tuberculose, como se não houvesse particularidades a serem preservadas, principalmente considerando o reconhecimento mundial do programa de combate ao HIV/Aids brasileiro.
Doenças mentais e dependência química
Outra mudança significativa diz respeito ao tratamento concedido à doença mental e aos dependentes químicos, contrariando os princípios da reforma psiquiátrica (RP) que promoveu a desmanicomialização no país. A nota técnica nº 11/2019 da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Atenção à Saúde do MS, desconsidera o estímulo (no lugar das instituições manicomiais e das comunidades terapêuticas) que a RP concedia ao tratamento no território na qual as pessoas em sofrimentos mentais e suas famílias viviam e onde estavam as redes de apoio e de sociabilidade, ainda que precárias, além da rede de serviços intersetoriais fundamentais à recuperação e vida digna (escola, trabalho, moradia, saúde geral, lazer etc.) Além disso, como diz a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco, 2019), ao comentar o conteúdo dessa nota: Muito do arsenal retórico e ideológico subsequente, presente nesta Nota Técnica, especialmente aquele que se quer “novo”, segue uma mesma lógica que, ao falar reiteradamente de evidências científicas, parece querer traduzir-se exclusivamente por evidências biomédicas (negando o conhecimento de um conjunto de profissões que atuam na área). E essas requeridas evidências científicas ainda assim se mostram, muitas vezes, frágeis. Exemplar e emblemática é, nesse sentido, a propaganda feita no documento em defesa da eletroconvulsoterapia (ECT), comumente chamada de eletrochoque. No caso da política com relação aos dependentes químicos, basta para exemplificar as mudanças de rumo, o fato de que Jair Bolsonaro sancionou a lei nº 13.840, de 5/06/2019, que autoriza a internação involuntária de dependentes químicos (mediante pedido de um médico) em unidades de saúde e hospitais gerais e que fortalece as comunidades terapêuticas, instituições normalmente ligadas a organizações religiosas. Contudo, a internação nessas últimas não pode ocorrer sem o consentimento do paciente.
Entre os trabalhadores mais organizados do mercado formal, os planos de saúde integram as pautas de reivindicação desde os anos 1970. Assim, pode-se dizer que a bandeira da saúde pública universal levantada pelos sindicatos, movimentos sociais e partidos vinculados aos trabalhadores é apenas formal, pois parte significativa de suas bases é coberta pelos Planos de Saúde.
Desmonte do Mais Médicos
Restaria ainda falar do desmonte do programa Mais Médicos. Este, embora não envolva questões da mesma natureza como as anteriores, que dizem respeito ao tratamento às diferenças, foi promovido com base no ódio declarado do presidente contra os cubanos que aqui estavam levando a atenção primária em saúde a lugares em que médicos brasileiros não se dispunham a ir. As declarações, realizadas antes mesmo de tomar posse, levaram a que o governo cubano anunciasse o fim do acordo que permitia a presença de médicos no país, exigindo que se abrissem três editais para o preenchimento por brasileiros das vagas assim criadas, sendo que o primeiro ainda aconteceu sob o governo Temer. No primeiro balanço realizado no início de abril, 15% dos brasileiros que ingressaram no programa entre dezembro de 2018 e janeiro de 2019 já haviam desistido de participar: 1.052 dentre 7.120 médicos. As áreas mais afetadas foram as mais pobres: em municípios com taxa de extrema pobreza maior do que 20% da população, a desistência foi de 31% (324 desistências). Em seguida, as capitais e regiões metropolitanas, com 209 profissionais desistentes (20% do total), também concentrado nos bairros mais pobres. Em agosto, face ao evidente fracasso dessas iniciativas, o Ministério da Saúde anunciou a substituição do programa Mais Médicos por Médicos pelo Brasil. Este programa, embora tenha como objetivo a interiorização, especialmente nas regiões mais distantes e desassistidas, explicitamente afirma priorizar os municípios pequenos. Isso foi objeto de críticas por entidades ligadas à saúde pública, tal como o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), por deixar de considerar os bolsões de pobreza existentes nas grandes cidades do país. Durante todos esses meses, desde as primeiras declarações de Bolsonaro sobre os Mais Médicos, a perda sofrida pela população foi enorme. É sabido que a interiorização das ações e serviços de saúde é algo complexo e que exige um outro olhar sobre os cuidados. Nisso, a expertise dos médicos cubanos é reconhecida mundialmente.
4 – Um novo modelo de financiamento para a Atenção Primária em Saúde (APS)
No dia 31/10/2019, na 9ª reunião ordinária da Comissão Intergestores Tripartite/2019 (CIT)3 , foi aprovado o novo modelo de financiamento da APS encaminhado pelo governo. Dois dias depois, já estava circulando a proposta de minuta da portaria correspondente. Mas no que consiste esse novo modelo? Vejamos os pontos centrais. No artigo 9º da minuta diz que o financiamento federal de custeio da APS será constituído por: I – capitação ponderada; II – pagamento por desempenho; e III – incentivo para ações estratégicas. Já o artigo 10º define que a captação ponderada deverá considerar: I – a população cadastrada na equipe de Saúde da Família e na equipe de Atenção Primária; II – a vulnerabilidade socioeconômica da população cadastrada nessas equipes; III – o perfil demográfico por faixa etária da população cadastrada nas equipes e IV – classificação geográfica definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Vale mencionar que no powerpoint apresentado na reunião do CIT, as pessoas em situação de vulnerabilidade econômica eram definidas por serem beneficiárias do Programa Bolsa Família. Deveriam receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou o benefício previdenciário no valor máximo de dois salários-mínimos. Ao ser dado destaque às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, não estaria o atual governo tendo como objetivo voltar o SUS à população de baixa renda, tornando letra morta sua universalidade? Como é sabido, essa não é uma proposta nova. Há muito que agências internacionais defendem que o esforço público.
O desmonte do Mais Médicos foi promovido com base no ódio declarado do presidente contra os cubanos que aqui estavam levando a atenção primária em saúde a lugares em que médicos brasileiros não se dispunham a ir.
A CIT constitui instância de articulação e pactuação na esfera federal que atua na direção nacional do SUS. É integrada por gestores do SUS das três esferas de governo: União, estados, DF e municípios. A composição é paritária. É formada por quinze membros, sendo cinco indicados pelo MS, cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e cinco pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). A representação de estados e municípios nessa Comissão é regional, sendo um representante para cada uma das cinco regiões no País. As decisões são tomadas por consenso e não por votação. Em saúde deve ser dirigido aos setores mais vulneráveis da população, deixando a assistência à saúde dos demais ao encargo do setor privado, seja mediante Planos de Saúde ou não. Entre essas agências, destaca-se o Banco Mundial (2019). Ao evidenciar as dificuldades da cobertura da APS em áreas mais pobres e distantes o Banco sugere, simultaneamente, a definição de um pacote de benefícios a ser coberto pelo SUS e uma “cobertura universal” formada por uma saúde pública voltada aos mais pobres e por uma saúde privada, dirigida aos demais segmentos da população. Chama atenção que, ao final do powerpoint apresentado na reunião da CIT, constem agradecimentos a dois técnicos dessa instituição, evidenciando a participação na elaboração do projeto. Isso, por si só, já seria tema para intensa discussão, pois implica ingerência de uma instituição internacional em questões nacionais.
Transferência de recursos
Há outros aspectos importantes, como a remuneração por desempenho e por usuário cadastrado. Isso substitui as necessidades em saúde da população pelo desempenho, cuja base é sempre a otimização dos recursos. Além disso, com a nova política de transferência de recursos, abandona-se o critério da equidade, que, apesar dos problemas, está presente no Piso da Atenção Básica (PAB) fixo, que transfere recursos de acordo com a população do município. Dirigir a APS prioritariamente aos setores mais vulneráveis da população, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não é garantia de que esses continuem a usufruir de ações e serviços de saúde no futuro. Se alguma garantia é possível, essa deriva do fato de se reconhecer a saúde como um direito e, portanto, um dever do Estado, sem que seu acesso seja mediado pela renda do beneficiário. Essa proposta, como dito, está em linha com o que é proposto pelo Banco Mundial e pressupõe o fortalecimento dos Planos de Saúde e da saúde privada em geral. Não é à toa que hospitais e clínicas de análise laboratoriais se situem na quarta posição do ranking de fusões e aquisições no primeiro semestre de 2019 (KPMG, 2019) e que o interesse do setor privado no SUS esteja aumentando para além da gestão via Organizações Sociais e para além de compor a rede hospitalar conveniada. Toda atenção deve ser dada aos desdobramentos desse “novo modelo de financiamento de APS” e da possível desindexação dos recursos para a saúde pública.