Jesem Orellana
Manaus, como boa parte das metrópoles brasileiras, apresenta sérios problemas de desigualdades. A chegada da pandemia da Covid-19 encontrou uma notada precariedade da infraestrutura médico-hospitalar e de saúde, bem como corrupção no setor de saúde. setor de saúde.
Em 2019, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 53%, aproximadamente, dos domicílios de Manaus, situavam-se em aglomerados subnormais (favelas, invasões, palafitas e loteamentos). A cidade também figurava na penúltima posição entre as capitais brasileiras no ranking da renda média mensal declarada (alta informalidade) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
No final de fevereiro de 2020, em plena emergência sanitária, o único hospital de referência do Amazonas para Covid-19, o Delphina Rinaldi Abdel Aziz, em Manaus, tinha apenas 20 leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) adultos. O interior do Estado permanece sem leitos de UTI.
A elevada desigualdade no acesso a serviços de saúde é inegável na capital amazonense. Há baixa efetividade de vigilância epidemiológica e laboratorial, incluindo respostas oportunas e rápidas diante de emergências em contexto pandêmico.
Manaus, mesmo recebendo o maior volume de estrangeiros de toda a Amazônia, só começou a fazer o monitoramento remoto de passageiros que desembarcavam no aeroporto internacional Eduardo Gomes a partir de 26 de março de 2020. Ademais, inexistia testagem em massa em março/abril e pouca capacidade instalada para vigilância genômica. No ano seguinte, o Amazonas, seguiu sem fazer testagem em massa e com irrisória vigilância genômica do novo coronavírus.
A escalada das mortes
Em 27 de março de 2020, foi notificada a primeira morte pela doença em Manaus. Duas semanas depois, a rede médico-assistencial entrou no primeiro colapso, junto à rede funerária, evidenciando descontrolada transmissão comunitária. Câmaras frigoríficas foram instaladas na parte externa dos principais hospitais da cidade, para empilhar o crescente número de corpos, dentro e fora dos hospitais. Além disso, Manaus protagonizou enterros coletivos que chocaram a humanidade.
A partir de junho de 2020, Manaus, apresentou desaceleração na epidemia, motivo suficiente para que o então ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, minimizasse a situação ao dizer que “o estado do Amazonas é completamente diferente da curva da região Norte e do Brasil. Uma curva muito mais clara, onde o pico já passou e o número tende a normalidade no final da curva”.
Interessante frisar que em 18 de setembro, o governador do Amazonas promoveu um evento para cerca de mil pessoas, com a presença do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do senador Flávio Bolsonaro. Era uma mensagem clara à sociedade de que eventos dessa natureza não só eram permitidos, mas incentivados, justamente por quem deveria coibi-los. Como se não bastasse, no fim daquele mês, o governo estadual autorizou o retorno ao ensino presencial de quase 111 mil alunos de escolas públicas de ensino fundamental.
A descrença em relação ao avanço da epidemia no Amazonas era nítida. Não por acaso, em agosto, o Estado realizou o menor número de exames RT-PCR (padrão-ouro para o diagnóstico da Covid-19), da série histórica, conforme se observa na Figura 1. No mês seguinte, mesmo diante do discreto aumento de exames em relação aos meses de julho e agosto, a positividade de amostras (número de exames com confirmação para a presença do novo coronavírus) alcançou 29,2% (IC95%: 27,9- 30,6). Em janeiro de 2021, chegou-se ao crítico percentual de 53,5% (IC95%: 52,9- 54,0). Era o segundo e mais violento pico de contágio e mortalidade da Covid-19, em plena segunda onda.
Figura 1. Descrição do número mensal de exames RT-PCR para Covid-19, março de 2020 a março de 2021, Amazonas, Brasil
Alertas científicos
Os perigos da segunda onda foram alertados em revistas científicas de renome internacional e na imprensa. Trata-se do momento em que se observaram três fenômenos epidêmicos importantes no risco de morte por Covid-19, segundo a data dos primeiros sintomas, para a população com 20 anos ou mais.
O primeiro havia sido o registro do menor nível no risco de morte por Covid-19 da primeira onda, no período de 21 de junho a 11 de julho de 2020 (semanas epidemiológicas 26 a 28), com 5,7 mortes (IC95%: 4,6-7,0) para cada 100 mil habitantes.
O segundo foi a estabilização em patamares levemente mais altos nos períodos seguintes, quais sejam: entre 12 de julho e 1º de agosto de 2020 (semanas epidemiológicas 29 a 31), com 6,6 mortes (IC95%: 5,4-8,1) para cada 100 mil habitantes; bem como de 02 a 22 de agosto (semanas epidemiológicas 32 a 34), com 6,7 mortes (IC95%: 5,5-8,2) para cada 100 mil habitantes.
O terceiro e mais importante, já na segunda onda, foi a significativa e sustentada reversão na tendência de queda na mortalidade por Covid-19, a partir do período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), com 8,4 mortes (IC95%: 7,1-10,1) para cada 100 mil habitantes.
Figura 2. Descrição do risco de mortalidade por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas e grupos de semanas epidemiológicas (semana 11 de 2020, até a semana 11 de 2021), Manaus, Amazonas, Brasil.
Tentativa de LOCKDOWN
No período de 23 de agosto a 12 de setembro de 2020 (semanas epidemiológicas 35 a 37), o então prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, inspirado em recomendações de cientistas, propôs um lockdown para conter o avanço da epidemia. A proposta foi quase que imediatamente classificada como “absurda” pelo presidente Jair Bolsonaro e descartada pelo governador Wilson Lima.
O erro de avaliação dos governos federal e estadual, bem como a falsa promessa de imunidade de rebanho pela via natural, parece ter sepultado a resposta sanitária que poderia ter limitado a evolução da segunda onda e, quem sabe, a forte e rápida disseminação da variante de preocupação P.1 (B.1.1.28) ou até mesmo a sua emergência/surgimento.
Como consequência da má gestão da epidemia e da baixa adesão da população às medidas de controle, no período de 13 de setembro a 3 de outubro (semanas epidemiológicas 38 a 40), ficou configurado o primeiro pico de mortes da segunda onda, com risco de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0) para cada 100 mil habitantes (Figura 2).
Cabe salientar, que mesmo diante do sustentado e significativo agravamento da epidemia em Manaus, o governo estadual seguia negando a segunda onda. Ademais, de forma furtiva, a partir de setembro, passou a aumentar o número de leitos clínicos e de UTI, sob o improcedente pretexto de preparação para o período sazonal das síndromes gripais, o qual, historicamente, só passa a ser relevante em termos de mortalidade, entre fevereiro e abril.
Ironicamente, mesmo novembro sendo mês de eleições municipais, quando mais de um milhão de manauaras foram às urnas no primeiro e no segundo turnos, em plena segunda onda e no momento em que a variante P.1 pode ter começado a circular, o Amazonas fez o menor número mensal de exames RT-PCR da epidemia. Foram menos de 3,6 mil diagnósticos para, aproximadamente, 4,3 milhões de habitantes. Semanas depois esse total passou para 4.933 (provavelmente influenciado pelo lançamento de resultados de amostras de novembro, avaliadas a partir de dezembro de 2020) como apresentado na figura 1.
Testagem negada
Em novembro de 2020, a senhora Noeme Tobias de Souza, Procuradora de Justiça do Amazonas, em parecer alheio à realidade da epidemia, indeferiu o pedido de tutela de urgência impetrado pela Defensoria Pública do Estado (Processo n.º 0657137- 02.2020.8.04.0001), em que requeria, acertadamente, a ampliação da testagem para o novo Coronavírus no Amazonas.
Em linha com a suposta eficiência da testagem, em 2 de dezembro, o então ministro Pazuello defendeu que ela estava sendo feita de forma adequada no país, em contexto de queda na demanda desses recursos nos estados devido a “fase de desaceleração das infecções”. Na mesma ocasião, o então Ministro, assim como o presidente Jair Bolsonaro, criticou o lockdown, dizendo que havia sido implementado sem preparo e “na base do medo”, como se algum dia ele houvesse, de fato, aplicado algo assim no país.
Mesmo depois de inúmeros alertas sobre a gravidade da segunda onda em Manaus, a tragédia sanitária começou a ficar escancarada em dezembro de 2020. Entre 10 de dezembro e 31 de janeiro, o número de leitos clínicos passou de 324 para 1.954, um aumento de 500%. Já o de leitos de UTI passou de 193 para 691. Apesar dos repetidos apelos e proposições de lockdown10, Manaus jamais o implementou.
Também merece destaque o fato de que a confirmação da circulação da variante emergente P.1 do vírus no Brasil só foi possível na segunda semana de janeiro. Ou seja, aproximadamente, 45 dias após o provável início da circulação no Amazonas e do colapso da rede médico-hospitalar de Manaus.
A detecção só ocorreu graças ao assertivo e preciso monitoramento de rotina das autoridades aeroportuárias do Japão, junto a turistas que haviam visitado o Amazonas em dezembro de 2020. Esse, sem dúvida, é mais um elemento que confirma a ineficaz e inoportuna vigilância laboratorial e genômica no Brasil, ao longo da pandemia da Covid-19.
Morte sem ar
Em 14 de janeiro de 2021, Manaus, maior metrópole da Amazônia, protagonizou o episódio mais dramático da pandemia, marcado pela morte de dezenas de pessoas dentro de hospitais, transformados em “câmaras de asfixia”, pelo esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Como consequência, além de outros fatores, somente em janeiro de 2021 foram confirmadas 3.106 mortes por Covid-19, de acordo com a data dos primeiros sintomas, um número 22,1% maior do que o total de mortes pela doença (2.543) durante a primeira onda (entre fevereiro e julho de 2020).
Dias depois, dezenas de pacientes internados em municípios do interior também morreram por asfixia, devido ao esgotamento do suprimento de oxigênio medicinal. Diante da trágica situação, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atribuiu o colapso a fatores como umidade e falta de tratamento precoce, mais uma vez negando os fatos e a Ciência.
Embora o governo federal tivesse alegando o desconhecimento da previsível falta de oxigênio em Manaus, é preciso lembrar que em 7 de janeiro, o governador Wilson Lima esteve reunido com o ministro da Saúde em Brasília para abordar a urgente necessidade de instalar mais 60 leitos de UTI12. Ademais, em 11 de janeiro, o ministro Pazuello esteve na capital amazonense para acompanhar a crítica situação sanitária e humanitária, retornando a Brasília um dia antes do fatídico 14 de janeiro.
Saliente-se que o governo estadual, na presença de técnicos do ministério da Saúde, imediatamente após aquela data, apresentou gráficos detalhando o consumo de oxigênio medicinal ao longo da epidemia.
Portanto, como a evolução do consumo de oxigênio é obrigatoriamente acompanhada pelo número de internações hospitalares, não parece plausível alegar desconhecimento da iminência de tamanha tragédia. Some-se a isso o fato de as autoridades sanitárias virem acompanhando a explosão da demanda por leitos desde o final de dezembro de 2020.
Disseminação de variantes
No esteio da sequência de erros cometidos pelos diferentes níveis da gestão em saúde e diante do colapso da rede médico-hospitalar e das centenas de mortes sem assistência médico hospitalar, os governos federal e estadual reuniram esforços para enviar, aproximadamente, 600 pacientes de Covid-19 para metrópoles de outras regiões do país14. Essas pessoas viajaram acompanhadas por familiares em contexto de maciça circulação da variante P.1 do vírus, a qual viria a se disseminar de forma inédita pelo país semanas depois.
O fato é que em abril de 2021, o Brasil se tornou o epicentro da pandemia e chegou a responder por cerca de 1 em cada 4 óbitos por Covid-19 no planeta. Além disso, das mais de 423 mil notificações de mortes por Covid-19 no Brasil, desde março de 2020, um pouco mais da metade ocorreu nos primeiros quatro meses de 2021. Nessa ocasião, a transmissão comunitária atingiu os maiores níveis, em cenário de amplo relaxamento das medidas sanitárias e da forte circulação de variantes.
Essa tragédia evitável, além de ter resultado na perda de milhares de vidas (direta e indiretamente) e no vultuoso desperdício de recursos públicos, em tempos de crítico subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), deixou a marca mais imediata não apenas nas vítimas diretas que sobreviveram à Covid-19. Ela lega traumas psicológicos e um vasto leque de sequelas físicas e acarretará efeitos residuais de médio e longo prazo. Entre esses estão a redução da expectativa de vida da população ou o aumento das desigualdades, devido a piora de indicadores sociais.
Aumento de casos fatais
Por último, o governo do Amazonas, afinado com o ministério da Saúde, flexibilizou, em 22 de fevereiro, de forma precoce, as medidas restritivas à circulação de pessoas. A partir do período de 7 a 27 de fevereiro (semanas epidemiológicas 06 a 08), o risco de morte era de 30,2 (IC95%: 27,5-33,1) para cada 100 mil habitantes, ou 310% (IC95%: 232-406) maior do que no período da flexibilização pós-pico da primeira onda. Nessa ocasião, o risco de morte foi de 7,4 (IC95%: 6,1-8,9) para cada 100 mil habitantes.
No último grupo de semanas avaliado, o qual inclui o período de 28 de fevereiro a 9 de março de 2021 (semanas epidemiológicas 09 a 11), o risco de morte foi de 14,2 (IC95%: 12,4-16,2) para cada 100 mil habitantes, um valor ainda alto. Mas, em contexto de lento processo de vacinação, de circulação de variantes de preocupação e com parte da rede médico-hospitalar das principais cidades do Brasil, saturada ou em colapso.
A onda pode piorar
A desaceleração da queda no risco de morte, em pleno processo de vacinação, pode ser um indicativo de estabilização da segunda onda em nível de risco elevado e semelhante ao do primeiro pico da segunda onda, entre 13 de setembro e 3 de outubro de 2020 (semanas epidemiológicas 38 a 40), quando o risco de morte foi de 12,1 (IC95%: 10,5-14,0). Esse padrão epidêmico pode ser um prenúncio da retomada ou do recrudescimento da segunda onda em Manaus, reforçando a ímpar negligência sanitária e humanitária na capital mundial da Covid-19.
Não há dúvidas de que o papel das políticas voltadas à mitigação da epidemia precisa ser considerado para minimizar o impacto de novos ciclos de infecções, adoecimentos e mortes evitáveis por Covid-19 no Brasil, especialmente em regiões com baixa capacidade de resposta a emergências sanitárias e forte desigualdade socioeconômica como a capital amazonense. A cidade é dupla e gravemente afetada pela disseminação descontrolada do novo coronavírus.
Finalmente, a dupla tragédia sanitária e humanitária de Manaus não se deu por acaso. Ela é consequência da pior de todas as variantes e da má gestão da epidemia. Por isso, os órgãos de controle e a justiça precisam agir e responsabilizar os culpados sob a pena de deixarmos a sensação de impunidade ser solidificada no imaginário e no cotidiano do brasileiro.