A ecologia de Marx: materialismo e natureza, de John Bellamy Foster, é um marco nos estudos do ecossocialismo no Brasil e no mundo. Originalmente publicada em 2000 pela editora Monthly Review, a obra foi traduzida para o português já em 2005 pela Editora Civilização Brasileira, edição há muito esgotada. Quase 20 anos depois, a Editora Expressão Popular nos apresenta uma nova tradução, facilitando o acesso a esse livro formidável.
Não é exagerado dizer que a obra é um acerto de contas entre o marxismo e as questões ecológicas emergentes no contexto em que o livro foi escrito. Já no segundo parágrafo, Foster deixa claro este tom:
Marx é frequentemente caracterizado como um pensador antiecológico. Mas sempre fui muito familiarizado com sua escrita para levar essa crítica a sério. Ele tinha, como eu sabia, demonstrado uma profunda consciência ecológica em vários pontos de sua obra (p. 11).
Para Foster, a teoria marxista favorece o “escrutínio crítico renovado do debate sobre a ‘dialética da natureza’” (p. 42). O que, no entanto, não significa que nosso autor impute ao teórico alemão qualquer forma de ecologismo extemporâneo, avant la lettre. Conforme ele cuidadosamente adverte: “[…] aintenção aqui não é ‘esverdear Marx’ para torná-lo “ecologicamente correto’.” (p. 42). Outrossim, Foster almeja trazer à tona uma abordagem sofisticada da questão ecológica diretamente de Marx (e Engels), a partir das leituras sobre, por exemplo, a renda da terra e o caráter disruptivo da agricultura capitalista; a divisão do campo e da cidade; a lei do “roubo da madeira”, o guano peruano, entre outros.
Para sustentar esse argumento, ele se vale de uma vasta leitura dos escritos marxianos, que percorre todas as nuances possíveis de serem atravessadas. Ao longo do texto, vê-se um estudo minucioso dos textos de Marx, a começar pela própria tese de doutoramento, passando pelos escritos filosóficos de sua juventude em Paris, os textos políticos e as obras de maturidade, notadamente “O Capital” e os textos do período de estudo para elaboração de sua obra-mestra. Cabe destaque a detida leitura que Foster faz das cartas trocadas por Marx e seus interlocutores. Por exemplo, é numa dessas correspondências endereçada à Ferdinand Lassale em janeiro de 1861, que vemos, além do seu conhecido sarcasmo, o apreço de Marx à obra do naturalista britânico Charles Darwin:
[…] o trabalho de Darwin é muito importante e se adequa ao meu propósito, pois fornece uma base na ciência natural para a luta de classes histórica. Tem-se, é claro, que aturar o desajeitado estilo de argumentação inglês. Apesar de todas as falhas, é aqui que, pela primeira vez, a ‘teleologia’ na ciência natural não apenas sofre um golpe mortal, mas seu significado racional é explicado empiricamente. (MARX; ENGELS, v. 41, 246-247 apud FOSTER, 2023. p. 282)
Foster demonstra como Marx é em si uma fonte inelutável para a análise robusta da dinâmica da apropriação da natureza sob a égide do modo de produção capitalista. Isto o posiciona como um dos precursores daquilo que Foster e Burkett chamaram de “segundo estágio do ecossocialismo”1. O primeiro estágio foi marcado pela abordagem das questões ecológicas desde o ponto de vista marxista, porém aceitando como pressuposto que este seria, por origem, antiecológico e prometeico. Autores do segundo estágio, ao contrário, ancorados em uma ampla varredura dos escritos marxianos defendem que Marx é em si mesmo suficiente e necessário para a análise ecológica crítica, dispensando os “enxertos” das teorias verdes na teoria marxista. A ecologia de Marx é uma obra seminal deste segundo ponto de vista.
Em termos gerais, pode-se dizer que uma dentre tantas outras valiosas contribuições deste trabalho de Foster foi o de realçar a amplitude e profundidade das noções de ruptura metabólica e alienação da natureza de Marx:
Marx empregou o conceito de uma ‘ruptura’ na relação metabólica entre os seres humanos e a terra para capturar o estranhamento material dos seres humanos dentro da sociedade capitalista em relação às condições naturais que formaram a base para sua existência – o que ele chamou de “condições eternas da existência humana impostas pela natureza” (p. 238)
A ideia de “estranhamento material” é bastante provocativa. No entanto, me atenho aqui a um outro aspecto em particular: “às condições naturais que formam a base para sua existência”. Foster é bastante categórico em reivindicar uma concepção materialista da natureza sem recair em mecanicismos, o que ele preferiu chamar de “materialismo profundo” ou ecológico (p.354-355). Nos dizeres do autor:
O marxismo ocidental, crítico (junto de grande parte da filosofia e da ciência social contemporâneas) foi definido por sua rejeição do positivismo cru do século XIX, que tentava transferir uma visão de mundo mecanicista e reducionista (à qual foram atribuídos alguns notáveis êxitos no desenvolvimento da ciência) ao domínio da existência social. No entanto, ao rejeitar o mecanicismo, incluindo o biologismo mecanicista da vertente do darwinismo social, pensadores das ciências humanas, incluindo marxistas, passaram cada vez mais a rejeitar o realismo e o materialismo, adotando uma visão de que o mundo social era construído, no todo de suas relações, pela prática humana – incluindo, notavelmente, aqueles aspectos da natureza que impactam negativamente o mundo social –, simplesmente negando, assim, os objetos intransitivos do conhecimento (objetos do conhecimento que são naturais e existem independentemente dos seres humanos e das construções sociais) (p. 26).
Neste sentido, Foster combate uma postura anticientífica que demarca a teoria verde contemporânea, atribuindo a autores com Bacon, Darwin e o próprio Marx a apologética da “dominação da natureza”.
Essa nova edição traz uma novidade a se destacar, que é a tradução do termo metabolic rift para ruptura metabólica – ao invés de falha metabólica como na edição anterior –, mais alinhado, portanto, com a forma como a categoria vem sendo empregada no Brasil. Vale ainda ressaltar duas adequações na tradução que essa nova edição traz: na página 194 da edição de 2005 rent of land (p. 137) é traduzida como aluguel da terra, ao invés de renda da terra, conforme acertadamente faz a nova edição (p. 203), já que renda é uma categoria marxiana, enquanto aluguel não é. Mais adiante, na página 210 da edição de 2005, parece ter havido um engano na tradução quando líamos “os historiadores da agricultura se referem às vezes a uma segunda e até a uma terceira Revolução Industrial.” (Grifo meu); já na edição de 2023 temos: “os historiadores da agricultura se referem, por vezes, a uma Segunda e até mesmo a uma Terceira Revolução Agrícola” (p. 217. Grifo meu).
Diante de todos os elementos que foram postos aqui e tantos outros igualmente fascinantes que não puderam ser contemplados, convido o leitor e a leitora, familiarizados ou não com o ecossocialismo e a teoria marxista, a se debruçar sobre essa nova edição do clássico livro de Bellamy Foster com a garantia de uma leitura proveitosa.
1 Marx and the Earth: an anti-critique. Boston : Brill, 2016. Para uma apreciação dos estágios do ecossocialismo em português, ver: SÁ BARRETO, E. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.
Por Gustavo Iorio
Professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (DGEO/UFJF), membro do grupo de pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (POEMAS), e do Núcleo de Pesquisa Geografia, Espaço e Ação (NuGea/UFJF)