Rosa Maria Marques
Praticamente tudo já se disse sobre os acontecimentos de Outubro de 1917, tal o volume de livros e artigos existentes sobre a Revolução Bolchevique. Afora ela, o interesse manifesto somente é comparável à produção relativa à Grande Guerra, como era chamada a Primeira Guerra Mundial, e à Segunda Guerra Mundial, com o genocídio de milhões de judeus.
Da Revolução de 1917, não há aspecto que não tenha sido detalhado, analisado e redefinido, a partir das várias lentes que se debruçaram sobre ela. Tal interesse explica-se pela influência duradoura que provocou no século XX, não comparável a outro evento. Passados cem anos da revolução, e tendo presente que a Rússia de hoje não tem qualquer relação com aquela dela nascida, que resultou na União dos Estados Soviéticos, que interesse haverá em se retomar os traços gerais de sua economia no momento do evento e nos primeiros anos que se seguiram? Eis o desafio que os editores da revista SOCIALISMO e LIBERDADE me fizeram. O atrativo está em fornecer às jovens mulheres e homens de hoje, que estão engajados na construção de uma sociedade melhor no Brasil, elementos que lhes sirvam para melhor compreender os desafios que a tomada do poder colocara aos revolucionários daquela época.
Lembremos, em primeiro lugar, que a Rússia era um país atrasado, com uma economia estagnada, cuja ampla maioria da população, (de 150 milhões a 171 milhões de pessoas, conforme a fonte; a maiorda Europa), composta largamente por analfabetos, estava espalhada em torno de pequenas aldeias por seu imenso território: 80% da população viviam no campo. A emancipação dos servos ocorrera muito recentemente, no período de 1860 a 1866, e as revoltas e manifestações camponesas faziam parte da história russa, inclusive no início do século XX.
Ao mesmo tempo, a população urbana era altamente concentrada em Moscou e Petrogrado, e os operários, que representavam 3% da população total, concentravam-se nessas cidades, particularmente em Petrogrado. A indústria recente, construída com capital francês e inglês, era composta de fábricas com tamanhos significativos, tal como aconteceu nos países de industrialização tardia, concentrando nmero razoável de trabalhadores, o que foi importante no momento da sublevação.
A Revolução de Outubro, como não poderia deixar de ser, foi resultado da interação de um conjunto de fatores. Para nosso propósito, é importante destacar a incapacidade do Estado russo (e de sua economia) em garantir a manutenção de seu imenso exército de camponeses durante a Guerra Mundial. De fato, ele não estava preparado para enfrentar um conflito com aquelas características: mais moderno, em vários aspectos, e abrangendo um campo de batalha de enorme extensão. Rapidamente se fez sentir a falta de armas e a ausência de um abastecimento adequado, tanto para repor a munição, como para fazer chegar alimentos aos soldados.
E isso era cada vez mais sentido na medida em que a guerra se prolongava. Na batalha iniciada em 10 de janeiro de 1917, diante do rio Riga, por exemplo, durante dez dias a artilharia russa ficou literalmente paralisada por falta de munição, ocorrendo um verdadeiro massacre das tropas. Enquanto isso, durante a guerra os campos eram lavrados com dificuldade crescente e a carência de alimentos aumentava.
À situação no front se somavam questões agudas de ordem política, econômica e social, levando a que, em pouco tempo, a Rússia assistisse à queda de seu czar, à instalação do Governo Provisório e à revolução bolchevique. Os relatos da época mostram que o número de operários em greve era de tal proporção, tão inusitado, que não tinha paralelo em outros países, mesmo naqueles muito mais industrializados. A falta de alimentos, respondida pelo Estado com racionamento, insuflava os saques em todo o país, com destaque aos ataques a casas de propriedade de alemães, em Moscou. Ao final de 1916, o custo de vida havia subido vertiginosamente. Isso, somado à desorganização do transporte e à escassez generalizada, reduziu o consumo a menos da metade. Nas fábricas, a discussão preparatória das manifestações e greves tratava do abastecimento, do custo de vida e da guerra.
No momento da tomada do poder, em outubro de 1917 (novembro, no calendário ocidental), quando os bolcheviques obtiveram 399 delegados de um total de 649 reunidos no II Congresso Panrusso dos Sovietes de Operários e Soldados, entre os decretos aprovados, destaca-se o da terra. Nele, foi abolida a propriedade da terra dos grandes proprietários, mediante expropriação sem indenização; garantido o direito de uso para todos, sem distinção de sexo; e proibidos a venda e o arrendamento, além da contratação de trabalho assalariado. A exploração de minerais passou a ser de uso exclusivo do Estado. Seguiram-se a nacionalização (hoje se diria estatização) da grande indústria, dos bancos, das ferrovias e da marinha mercante. No plano econômico, ainda, uma das primeiras medidas dos bolcheviques, e de importância chave, foi a instituição do monopólio comércio exterior do Estado, de modo que todas as transações realizadas com países estrangeiros passaram a ser por ele centralizadas. Se na época, essa questão era importante, bem como a nacionalização dos bancos, mais ainda o é em um mundo globalizado e financeirizado, tal como hoje.
Ainda no momento da tomada do poder, e como consequência do primeiro decreto do II Congresso Panrusso dos Sovietes, foi paralisado o conflito com a Alemanha. Como sabido, essa atitude recebeu o repúdio veemente dos aliados de então. E essa indignação foi reforçada quando tomaram conhecimento da expropriação de terras e de fábricas, da nacionalização dos bancos e de que as dívidas contraídas pelos governos anteriores não seriam reconhecidas. Em março de 1918, foi firmado o tratado de Brest-Litovski, momento em que a Rússia bolchevique precisou ceder vastas extensões de seu território (com destaque para a Ucrânia) ao domínio alemão. Embora considerasse os termos do tratado inevitáveis, Lenin qualificou a paz que se seguiu de “vergonhosa”.
Cessado o conflito mundial, com a derrota da Alemanha em novembro de 1918, os exércitos brancos, que faziam a luta contra a revolução, receberam o reforço de dez forças estrangeiras diferentes: britânica, estadunidense, francesa, canadense, sérvia, finlandesa, romena, turca, grega e japonesa, todas empenhadas em derrotar o governo que havia ousado realizar expropriações e não pagar sua dívida.
Nos últimos meses de 1919, no entanto, só restavam em solo russo, tropas japonesas e estadunidenses. Nos demais países, motins e manifestações de protesto impediram a continuidade do envio de homens para lutarem ao lado do exército branco, o que foi compensado pelo aumento de remessas de armas e munições. A guerra civil teve fim, no início de 1921, com a vitória do Exército Vermelho, organizado e comandado por Leon Trotski.
Durante todos esses anos, da tomada do poder pelos bolcheviques ao fim da guerra civil, a economia russa foi devastada. Ao quadro de destruição provocado pela Grande Guerra, somava-se uma escassez crônica de alimentos, principalmente nas aldeias, e um processo de desindustrialização ocasionado pelo estado de abandono de fábricas e pela destruição física de parte da classe operária. A fome e o frio faziam parte da realidade de milhões, pois a distribuição de terras feita no início da revolução não tinha sido acompanhada pela retomada da produção agrícola. A arrecadação de impostos era simplesmente inviável e o governo revolucionário não tinha outra saída senão imprimir moeda para dar conta de necessidades correntes. Esse período é conhecido como “comunismo de guerra”, quando as tentativas de reorganização da economia são tratadas com mão de ferro, no calor do momento e para fazer frente aos desafios imediatos e agudos, bem distantes das experiências posteriores, quando o planejamento foi considerado o principal instrumento para garantir a efetividade das políticas econômicas.
Embora não relacionado à economia, é exemplo do pragmatismo imposto pelas circunstâncias de uma Rússia devastada e atacada o fato de que, para organizar o Exército Vermelho, Trotski tenha recorrido a instrumentos disciplinares associados ao exército do czar e a seus antigos integrantes, mobilizando um total de 30 mil oficiais, em 1919.
Assim, se foi relativamente fácil derrubar o fraco governo provisório, tarefa bem mais complexa era edificar sua substituição e realizar um controle efetivo do caos que havia se tornado o imenso território do antigo império russo.
Nas cidades e nos meios operários, a prioridade era o alimento, que precisava chegar ao meio urbano. Por isso, em junho de 1918 foram criados os comitês de camponeses pobres, com o objetivo de supervisionar a coleta, a distribuição e o envio às cidades de grãos e de outros produtos agrícolas. Tiveram curta duração (foram abolidos em dezembro de 1918) e efetividade quase nula, não só porque, em diversas regiões, a extrema divisão das terras levou a que glebas produzissem uma quantidade de alimentos próxima às necessidades de subsistência, mas também devido a outros fatores, em alguns casos decorrentes da relação conflituosa que se estabeleceu com o camponês médio.
Por isso, a rigor, a primeira medida real da fase do “comunismo de guerra” deve ser associada à nacionalização dos ramos mais importantes da indústria, o que foi feito também em junho de 1918. Nas fábricas, tal como no Exército Vermelho, os antigos diretores, administradores e engenheiros foram convidados a se somarem ao esforço de reorganização das atividades, para o qual recebiam salários diferenciados. O resultado, contudo, não foi muito animador, pois a demanda do front, agora da guerra civil, tinha prioridade no atendimento de suas necessidades. Além disso, havia falta de matéria prima e de alimentos e o transporte estava totalmente desorganizado (com a exceção do trem que servia ao Exército Vermelho). Nos três primeiros anos da revolução, fruto da situação extremamente deteriorada das cidades e também do recrutamento para o front, houve um verdadeiro despovoamento das cidades, de modo que Moscou perdeu 44,5% de sua população e Petrogrado, 57,5%.
Houve, também, várias tentativas de regularizar a distribuição da produção entre o campo e as cidades e mesmo nas cidades e entre elas. Os decretos emitidos, contudo, não passaram de letra morta. O que “funcionava” eram os homens do saco: homens que, ao irem ao campo, trocavam bens de consumo simples por alimentos e os vendiam a preços exorbitantes na cidade. No período do “comunismo de guerra”, portanto, o que foi possível de ser feito foi manter o Exército Vermelho abastecido. Mesmo assim, com muita dificuldade, fazendo uso da combinação de métodos disciplinares com o entusiasmo revolucionário.
É interessante destacar que, em geral, quando autores falam do período do “comunismo de guerra”, o associam a políticas decididas de forma centralizada e com vistas a estabelecer certo grau de planejamento, ao mesmo tempo em que foram introduzidas a gratuidade para produtos e serviços considerados básicos ou instituídos preços fixos. Na verdade, essas ações tinham um alto conteúdo pragmático, muito embora possamos buscar justificativas no campo do marxismo. Apesar de derivadas da extrema necessidade colocada pelas circunstâncias, tiveram pouca efetividade.
Terminada a Guerra Civil, a economia russa estava ainda mais exaurida. Em 1921, a produção industrial representava 13% da registrada em 1913 e a agricultura produzia menos da metade, para os mesmos anos. O comércio exterior havia desaparecido totalmente. Frente a isso, segue-se uma tentativa de recompor a produtividade do campo, concedendo mais liberdade para o camponês médio para que este vendesse seu excedente (além da produção definida pelo poder central) a livre preço no mercado. Era o início da Nova Política Econômica (NEP), conjunto de medidas aprovado no X Congresso do Partido Comunista, em 1921. A NEP irá, ao longo de sua vigência (finda em 1928), combinar elementos de mercado aos de uma economia centralizada, permitindo, para alguns casos, o arrendamento da terra e a contração de assalariados. Como sabido, depois da morte de Lenin e da ascensão ao poder de Stalin, a orientação econômica dá uma guinada, tornando a economia altamente centralizada e organizada com base no planejamento. A NEP e o período posterior são outro assunto.