Renata Lins
Duas imagens de impacto retratam com bastante clareza a situação de intolerância existente na França hoje: a cena do agricultor Cédric Herrou, perseguido pelo “crime” de ajudar refugiados a entrar em seu país; e a senhora de burquíni obrigada a se retirar da praia em Nice, por não estar usando um traje “compatível com as regras da laicidade”.
Essas duas imagens violentas parecem estar muito longe da ideia do país da “liberdade, igualdade e fraternidade” que nos acostumamos a conhecer.
Em um primeiro momento, é evidente que a tentação é fazer a ligação direta entre os recentes atentados ocorridos em solo francês e essa onda de xenofobia: é importante, entretanto, dar-se conta de que o caminho é bem mais longo do que esse. Deve-se lembrar, inicialmente, que arquitetura da União Europeia teve como característica o fato de que suas instituições centrais Banco Central Europeu, Eurogrupo, Comissão Europeia não são eleitas, reduzindo em muito a força e a autonomia de suas democracias internas. A inexistência de um Banco Central nos países que aderiram ao euro e as regras rígidas de austeridade do BCE fizeram muito para destruir o estado de bem-estar social a duras penas constituído no pós-guerra: a partir do ano 2000, com a criação do euro, os países passam a estar impedidos de fazer política monetária e fiscal anticíclica por conta própria, tornando-se muito mais vulneráveis às crises econômicas, sem que possam fazer políticas keynesianas de recuperação da renda e do emprego.
No ano seguinte a essa mudança significativa, que reduz a autonomia dos países da zona do euro, acontece o ataque do 11 de setembro nos EUA, que não só abala a economia mundial, mas também coloca a Europa ao lado dos Estados Unidos na reconfiguração da ordem política. À estabilidade econômica preconizada pelas instituições centrais da União Europeia com todo seu viés de “austeridade” recessiva acrescenta-se, pois, a necessidade de “estabilidade” política, para defender se de atentados terroristas à base de aumento do policiamento ostensivo nas ruas e de elevação das barreiras à entrada de emigrantes. Isso, evidentemente, cria um caldo de cultura propício ao crescimento da direita, da rejeição aos estrangeiros e da xenofobia.
É neste contexto que o partido da Frente Nacional, liderado por primeiro por Jean-Marie Le Pen e depois por sua filha Marine, cresce na França: como toda vez que se reduzem os direitos da classe trabalhadora, aumenta o sentimento de insatisfação com relação àqueles que são vistos como usurpadores do trabalho dos locais. O discurso de exaltação das raízes, de ênfase aos direitos das famílias tradicionais, com o que subentende de recuperação de espaços perdidos, frutifica neste solo fértil. O quadro se complexifica ainda mais com a questão nunca resolvida da integração dos imigrantes das antigas colônias do norte da África. O resultado disso tudo já aparecia na pesquisa anual da Comissão Consultiva de Direitos Humanos (CCDH) de 2015: 70% dos franceses eram de opinião de que o país tem imigrantes demais e 45% declararam ter uma visão negativa do Islã. Nesse sentido, a proibição do uso de “símbolos religiosos ostensivos” nas escolas, de 2004, entendida como uma proibição que mira o véu islâmico, apenas acirrou o sentimento dos muçulmanos de serem cidadãos de segunda categoria, fazendo aumentar a distância entre os grupos sociais e com isso, as tensões subjacentes. Parece evidente que essa proibição, embora endereçada a todas as religiões, atinge mais diretamente as jovens muçulmanas portadoras de véu, muitas vezes retiradas das escolas públicas laicas para serem transferidas para escolas confessionais. É bom lembrar que, em 1989, Lionel Jospin, então ministro da Educação, havia reafirmado que o véu islâmico era compatível com o princípio da laicidade, visto que este “implica necessariamente o respeito de todas as crenças”. De 1989 a 2004 há, portanto, uma inversão no que se entende como “laicidade”, e isso atinge particularmente as meninas muçulmanas. Parece claro que essa orientação do poder público acaba funcionando como um estímulo à xenofobia, por distinguir e discriminar um grupo social específico. A proibição posterior do burquíni nas praias só veio aprofundar essa situação.
É nesse cenário já estruturado de tensão política e racial que acontecem os atentados de 2015: no início do ano, em janeiro, a invasão do escritório da revista Charlie Hebdo com a morte de 12 pessoas (das quais oito eram vinculados à revista), e no final do ano, em novembro, o ataque à casa de shows Bataclan, em que morreram 129 pessoas. A autoria do primeiro atentado foi reivindicada por um grupo ligado à Al Qaeda, e a do segundo pelo Estado Islâmico (EI), ou Daesh. Se o primeiro atentado já havia motivado uma declaração por parte das autoridades francesas e europeias de intensificação da luta contra o terrorismo, o segundo fez com que a França, sob o comando de Manuel Valls, que já tinha se engajado em ações de bombardeio à Sìria invocando “legítima defesa”, intensificasse esses ataques após o atentado de novembro.
As eleições regionais francesas, em dezembro de 2015, trouxeram perdas significativas para a esquerda socialista, enquanto a Frente Nacional mais que dobrou seus assentos. Os temas predominantes, como o reforço da segurança nacional, a questão da imigração intensificada pela crise dos refugiados em toda a Europa e a valorização da identidade nacional favoreceram claramente o perfil da direita, que pautou a discussão.
Foi também em dezembro que François Hollande, um presidente com baixíssima popularidade (em torno de 7%), declarou que não seria candidato à reeleição. Seu candidato seria Manuel Valls, o primeiro-ministro, cujo perfil tende para a direita e que esteve com Hollande no apoio a teses liberais em favor do mercado e da flexibilização da legislação trabalhista. No entanto, a vitória nas primárias coube a Benoît Hamon, ex-ministro da Educação e representante de uma fatia muito mais à esquerda do Partido Socialista. Hamon defende o estabelecimento de uma renda mínima universal e é crítico da atuação da União Europeia. Sua vitória deixa clara a derrota do projeto de “terceira via” capitaneado por Blair na Inglaterra e por Hollande na França. Resta saber se, diante da conjuntura adversa, ele terá fôlego para chegar ao segundo turno das eleições.
Representando a direita conservadora, no campo dos Republicanos, o vencedor das primárias foi François Fillon, antigo primeiro-ministro de Sarkozy. Fillon é católico e tradicional, e defende que os imigrantes que chegam à França “devem assimilar seus valores”. Considerado favorito por muita gente para as eleições de maio, o ex-primeiro-ministro agora se debate com uma ameaça de escândalo envolvendo a contratação como assessora-fantasma da sua esposa, Pénélope Fillon.
Na extrema-direita, Marine Le Pen aparece nas pesquisas como presença garantida no segundo turno das eleições. Seu programa pretende reduzir radicalmente a entrada de novos imigrantes. Já se declarou inclusive contra a educação gratuita para os filhos de imigrantes voltou atrás, entretanto, já que esta posição vai contra a Constituição francesa e as leis sobre o ensino primário obrigatório. Fala de um “protecionismo patriótico” e quer rediscutir as bases do euro para poder ter possibilidade de impulsionar a indústria francesa. Caso não consiga, quer fazer um referendo sobre a saída da França da zona do euro. Tem um discurso extremamente nacionalista e também intervencionista. Trata-se de “favorecer as empresas francesas” e de melhorar as condições de moradia “para os franceses”.
Esse discurso pode encontrar eco junto à população francesa trabalhadora, que considera que sua situação piorou com a União Europeia e com “os estrangeiros”. É um sentimento parecido com o que fez o Brexit vencer no Reino Unido. A política econômica neoliberal da União Europeia não fez nada para diminuir este sentimento. A ver.