Cátia Guimarães
Quase um ano após a chegada da pandemia ao Brasil, analistas e pesquisadores já nem tentam mais explicar a posição assumida, desde sempre, pelo presidente Jair Bolsonaro. Afinal, apesar da tragédia humanitária sem precedentes na história recente, a Covid-19 oferecia a um presidente em início de mandato, sem experiência nem estrutura de estadista, a oportunidade de não errar. Primeiro, porque o fato de se tratar de uma crise sanitária mundial, em tese, haveria alívio na pressão sobre os governantes nacionais. Segundo, porque pouco se conhecia e pouco se podia fazer diante de um novo vírus, para o qual não havia vacina nem tratamento.
A aprovação do ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, que nada mais fez do que não atrapalhar o beabá do enfrentamento possível ao novo coronavírus, pareceu-nos uma demonstração concreta desse cenário. No caso específico do Brasil, a crise sanitária se oferecia ao governo ainda como discurso para justificar uma crise econômica que lhe era muito anterior.
Mas apostando no ‘quanto pior, melhor’, como parte de uma estratégia de mobilização de sua base social, Bolsonaro optou pelo caminho oposto: minimizou o problema, negou quase tudo que a ciência aconselhava e, principalmente, criou novos ‘inimigos’ externos e internos, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e parte significativa dos governadores.
Falsa dicotomia
É bem verdade que a posição do presidente não ignorava completamente os dilemas concretos: ao criar a falsa e oportunista dicotomia entre saúde e economia, criticando o isolamento social, ele respondia, de certa forma, à pressão de setores empresariais que se opunham ao lockdown recomendado em algumas regiões. Mas essa oposição se mostrou frágil, já que em pouco tempo os governadores que protagonizavam as críticas a Bolsonaro também se renderam às pressões pela abertura do comércio não-essencial e, progressivamente, de praticamente todos os setores econômicos.
Pouca coisa sobrou desse antagonismo que, no entanto, continua sendo o principal fio de interpretação adotado para o desenrolar político do enfrentamento da pandemia: de um lado, uma extrema direita negacionista, representada pelo bloco bolsonarista, à frente do governo federal; de outro, uma direita que se apresenta como ‘ilustrada’, cada vez mais vendida pela imprensa como centro, que instrumentaliza a crise para construir uma alternativa eleitoral para 2022, tendo como expressão principal o governador de São Paulo, João Dória. Tudo isso é notícia velha. Mas o fato é que, neste momento, se encena um novo capítulo dessa farsa, tendo como cenário as estratégias de vacinação da população brasileira contra a Covid-19.
Falta de projeto
Vale lembrar que, entre esses dois falsos extremos, circula uma esquerda que reage, polemiza, combate o obscurantismo, mas pouco propõe como projeto, restringindo-se a pular de um caminho a outro a partir de um cardápio de opções construído fora do seu espectro político.
Convém também não esquecer que uma camada abaixo da superfície em que se desenrolam essas disputas, agoniza es canteada a política social que carrega, nos seus princípios e organização, um plano de ação completo, de curto, médio e longo prazo, não só para a vacinação como para o enfrentamento mais amplo da pandemia. Referimo-nos ao Sistema Único de Saúde, o projeto capaz de responder ao caráter necessariamente coletivo da produção de saúde e doença, tão escancarado pela crise sanitária atual e claramente expresso nas polêmicas em curso sobre a imunização contra o novo coronavírus. Não apenas defender o SUS, como um discurso genérico de valorização do público, mas assumir o SUS como guia de um posicionamento tático-estratégico em relação à vacinação da população brasileira e ao controle da pandemia, parece-nos o caminho principal para uma esquerda socialista que vise, ao mesmo tempo, controlar a tragédia humanitária e fugir do pobre debate político que se prende à superfície das polêmicas, excluindo qualquer possibilidade de se fortalecer um projeto societário progressista a partir dessa crise sanitária.
Assumir protagonismo
Assim, assumir protagonismo na disputa política que se trava em torno da vacina significa, antes de tudo, recusar o comportado lugar de espectador na polarização entre uma direita travestida de centro e uma extrema direita protofascista. No caso da pandemia do novo coronavírus, isso só é possível pelo resgate dos princípios universalistas que orientam o SUS aqueles que não cabem nos planos de Bolsonaro nem de Dória, mas que precisam ser mobilizados também no esforço de fortalecimento de uma consciência sanitária que vá além da concepção de saúde como problema individual.
Para início de conversa, nada está mais distante dos princípios do Sistema Único de Saúde em relação à imunização do que as iniciativas que, aqui e ali, confirmam a lógica fragmentária do ‘cada um por si’ na corrida dos entes federados pela vacina.
Como se sabe, a chamada imunidade coletiva que se espera atingir com a vacinação requer um quantitativo mínimo da população imunizada no caso da Covid-19, esse número ainda é incerto e depende de cada vacina. Dada a impossibilidade de se determinarem limites fixos entre estados e municípios, a imunização da população local não contribui para o objetivo imediato principal, que é frear a transmissão comunitária do vírus. Em mais um capítulo da disputa política com ‘p’ minúsculo que vem sendo travada em torno de tema tão importante, o governador de São Paulo aparentemente resolveu esse problema quando declarou que não será preciso confirmar moradia no Estado para tomar a vacina, incentivando um ‘turismo de saúde’ e, com isso, naturalizando soluções parciais ou mesmo individuais para um problema que, como os trágicos números da pandemia já cansaram de demonstrar, só tem saída coletiva e universal um adjetivo que, não por acaso, há mais de 30 anos, é sobrenome do sistema de saúde brasileiro.
Universalidade do SUS
Mais do que uma garantia legal de que todos tenham acesso aos serviços de saúde, a universalidade do SUS é um princípio contra a desigualdade e a iniquidade que historicamente assolam a sociedade brasileira. Ao se estabelecer que saúde é direito de todos e dever do Estado, a Constituição de 1988 recusa soluções individualistas como aquelas que privilegiam quem tem recursos para se deslocar de um estado a outro em busca de uma vacina tratada como moeda de troca política.
Diante disso, como sustentar que, em resposta a um governo que não se compromete com o direito à saúde, a pauta pragmática da esquerda socialista possa reforçar uma fragmentação que, no limite, significa também a negação desse direito? Parecer prudente também não esquecer a determinação econômica daqueles fenômenos que, na superfície, mostram-se apenas como disputas políticas. Afinal, o que permite que Dória tenha neste momento a possibilidade de comprar, produzir e oferecer vacina a um contingente da população é a profunda desigualdade federativa brasileira. E essa é uma dimensão importante da luta contra a desigualdade e em favor da universalidade do SUS, que precisa se expressar também no acesso à imunização, já que a maioria dos 27 estados e 5.570 municípios brasileiros não terão condições de adquirir uma cota de vacina para chamar de sua.
A resposta sobre ‘o que fazer’ passa por um conjunto de ações diretivas de pressão, social e jurídica, sobre o governo federal, mas também de organização da solidariedade federativa que pode reduzir os danos causados pela omissão do Ministério da Saúde.
Vencer desigualdades
Incentivar, a partir de ações concretas e urgentes, um regime de partilha ao invés da concorrência em curso, redistribuindo a riqueza e a infraestrutura de estados e municípios em prol da universalização da vacina, é uma forma de enfrentar, ao mesmo tempo, a pandemia e a falsa disputa política que reforça a desigualdade no acesso à saúde e contribui, na aparência e na essência, para o jogo da direita.
E vale ressaltar que solucionar cooperativamente a ausência do governo federal não significa abrir mão da exitosa experiência e da logística do Programa Nacional de Imunização (PNI), ao contrário. Embora seja coordenado pelo Ministério da Saúde, o PNI se estrutura como ação descentralizada, cuja execução final fica a cargo das instâncias locais do SUS, que, norteadas pelo princípio da universalidade, levam a imunização a todos os rincões deste país.
Tudo isso, no entanto, requer recursos sobretudo num país em que a maior parte da arrecadação tributária está concentrada na União.
Portanto, é tarefa urgente da esquerda socialista, especialmente aquela que está presente no legislativo federal, capitanear a luta para garantir dinheiro extra para estados e municípios. Além de todos os desafios de uma pandemia que continua ampliando suas vítimas, e do saldo de doenças acumuladas pelo não acompanhamento em meio ao isolamento social, no que diz respeito especificamente à vacina, governadores e prefeitos terão altos custos com o reforço de pessoal, combustível e transporte em geral principalmente nas regiões que concentram aldeias indígenas, populações ribeirinhas e outras particularidades e formação dos trabalhadores da saúde envolvidos na imunização desafio, aliás, que tem sido pouco tematizado. Além de essenciais para frear a pandemia e preservar a vida, pauta prioritária de qualquer programa de esquerda que mereça esse nome, essas medidas têm potencial de mexer no tabuleiro político, ao mesmo tempo denunciando, com ações, a omissão do governo federal e retirando as lideranças da direita, dita civilizada, da zona de conforto em que vêm se movimentando.
Imunização pública
Vale insistir ainda um pouco no quanto a questão orçamentária é fundamental para diferenciar, de forma efetiva, a pauta estruturante da esquerda do discurso civilizado, mas ainda assim excludente, da direita que tem se vendido como a real oposição a Bolsonaro. À primeira vista, esse pode parecer um tema externo ao debate da vacina, mas aqui é preciso olhar o contexto sanitário e político pela máxima totalidade possível. Comecemos por mapear os limites objetivos.
Quem conhece minimamente o campo sabe que a produção mundial de imunobiológicos, hoje, não é suficiente para que se garanta a vacinação de toda a população brasileira num curto intervalo de tempo. A primeira conclusão dessa constatação é que não é apenas válido como necessário defender e lutar para que se alcance a vacinação de toda a população adulta em 2021, mas é igualmente importante não apostar em palavras de ordem vazias, que ignorem as dificuldades impostas pela realidade.
A segunda pauta, urgente, que essa constatação impõe, e que parece ‘correr por fora’ da disputa político-eleitoral entre direita e extrema direita em torno da imunização, é impedir que o setor privado comercialize vacinas no país, exigindo que tudo que for produzido seja destinado aos governos para a vacinação gratuita, universal e equitativa de toda a população, sem privilégios a quem pode pagar.
Auxílio emergencial
Mas aqui uma terceira e fundamental conclusão é que, sem vacina durante um número ainda indefinido de meses e com a continuidade (ou agravamento) da crise econômica, parte da população aprofundará a situação de pobreza e miséria. Isso num contexto em que o auxílio emergencial fornecido pelo governo federal foi suspenso, o orçamento aprovado para políticas sociais foi reduzido e o teto de gastos federais continua em vigor. Aqui, apenas um passo além da superfície do debate da vacina, encontramos o ponto que rapidamente iguala as bandeiras da direita ‘de sempre’ e da extrema direita bolsonarista: a defesa intransigente da austeridade fiscal.
Por isso, lutar pela retomada e ampliação do auxílio emergencial, por mais recursos para que as escolas públicas tenham segurança de retomar as aulas quando as condições sanitárias permitirem, por mais dinheiro para garantir profissionais e serviços de saúde enquanto o vírus continuar circulando é executar um programa de combate à pandemia que incorpora e complementa a estratégia de imunização. Significa reconhecer a determinação social da saúde e da doença, estágios que se definem para além da contaminação por um ou outro vírus. Mais do que isso, significa colocar em prática o conceito ampliado de saúde, entendendo (e prevenindo) as diversas causas do adoecimento e o quanto ele é marcado pela estrutural desigualdade da sociedade brasileira. Significa, por fim, trazer o SUS como ferramenta para o combate à pandemia e como projeto para o debate político.