Sobre o mal estar do individualismo pós-covid
Vivemos em um tempo de desemprego estrutural, de frustração e melancolia em relação ao futuro. O bolsonarismo corrói nosso cotidiano com as fakenews, o golpismo, o pão caro e horas de trabalho exaustivas. Nesse sentido, parece que somos indivíduos correndo atrás do prejuízo. Tá ruim, mas parece que não consigo fazer nada. O sentimento de exaustão é generalizado. Faz sentido ligar-se a uma causa política? As eleições deste ano nos colocam desafios para além da eleição de parlamentares: como retomar o trabalho de base e organizar comitês que sejam espaços duradouros de resistência ao golpismo bolsonarista? Considerando que a militância é um ato de coletivização da vida, como ser militante em um mundo de indivíduos egoístas? Nesse texto, reflito a necessidade de resgatar o sentimento de comunidade que tem sido perdido com a ideologia neoliberal e acirrado durante a pandemia. Defendo, então, a necessidade de uma linha comunitária como parte de um caminho geral que devemos trilhar para atingir objetivos estratégicos. Entendo a construção de um sentimento de comunidade como método da realização do poder popular e da democratização profunda de um país dependente e herdeiro de formas políticas antidemocráticas e antipopulares de sociabilidade.
Relações primárias de socialização e os conflitos do mundo da mercadoria
A tese da qual quero partir é de que, mesmo com o individualismo exacerbado, a comunidade não deixa de existir no vínculo de vizinhança, no chão de fábrica, no refeitório, no lugar de estudo, etc. Dessa maneira, esses vínculos são elementos de coletividade diante da mercantilização capitalista de todos os poros da vida e da noção abstrata de lucro, de que somos indivíduos isolados e lutando uns contra os outros. E é no território que há noções primárias desse vínculo comunitário. A família, a vizinhança, a escola nascem ali no lugar de moradia, onde construímos o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Com o avanço da urbanização, principalmente nos bairros periféricos, o outro é também da família, compartilha dos dramas cotidianos e assim se faz um irmão na dificuldade. Há uma identidade na precariedade. Se falta água, as pessoas compartilham do fardo, se uma casa tem mais que a outra, ela divide com aquele que sente falta, se uma mãe está passando dificuldade, a outra mulher ajuda com algo. A noção de classe social é uma vivência dessa coletividade[1]. Nosso vizinho é um trabalhador assalariado que faz o mesmo corre.
E o trabalho? Com o advento de novas formas de trabalho, há uma diminuição da coletividade no chão de fábrica que antes criava noções importantes de coletividade, de massificação e sentimento de identidade na exploração contra os burgueses, tal como colocou Marx no Manifesto. Porém, no território e nessas noções primárias de coletividade, a classe se encontra. Principalmente, a população marginal desorganizada e fragmentada pela precarização promovida pela reestruturação produtiva. Assim, o território é um cimento de identidade de classe que dá suporte à organização principalmente dos setores pauperizados da classe.
No entanto, essa noção espontânea de classe não cria política de classe necessariamente. Há greves e formas de organização comunitárias espontâneas. No entanto, a consciência combativa e solidária espontânea deve se converter em consciência de projeto e consciência estratégica e, nesse sentido, há um elemento externo à comunidade. E aqui defendo uma leitura conjunta de Lênin, Gramsci e Rosa sobre a construção do elemento externo frente à espontaneidade das massas. O capital divide as relações e as lutas. Mas nós unificamos, sendo vínculo abstrato frente ao concreto.
O trabalho de base é a práxis à flor da pele, pois é o vínculo entre a ação de classe, o cotidiano de precariedade, a universalidade que supera o particularismo territorial e corporativista, ao mesmo tempo em que é uma ação reflexiva do processo de existência e luta das classes trabalhadoras. A noção de solidariedade por uma escolha existencial por estar ali, apesar de não ter um interesse imediato naquela relação. À medida que a militância se dirige a uma ocupação, a outro território para conviver com a comunidade que não é a dela, constrói uma noção abstrata de comunidade que se realiza como síntese.
Por exemplo, ele parte das necessidades mais básicas, cria ou apoia uma organização de moradia (ocupação ou resistência ao despejo), um restaurante solidário, um mutirão e nesse processo a primeira questão é ganhar confiança. A empatia na concretude das necessidades da classe, vinculando-se por meio de métodos de associativismo, acrescentando elementos externos de suporte político. No trabalho comunitário, a militância enfrenta diretamente as contradições do capitalismo.
Universalidade da luta e o conteúdo integrativo da militância
Nessa submersão de classe combativa e estratégica, há um processo de desacoplamento com as noções mais intuitivas da militância e a conversão da noção individual dos conflitos para uma demanda coletiva. Assim, entendo que a questão não é a minha casa própria, meu alimento, e sim, a casa para a comunidade, o alimento para meu povo. De fato, ainda é uma noção corporativa (GRAMSCI, 2000), pois estamos setorizando as demandas, porém, há nessa dinâmica uma noção embrionária de universalidade, de entendimento da resolução comunitária dos problemas cotidianos. O que deve passar para a conversão em elemento político de poder, isto é, vinculado às políticas públicas, à importância do Estado como espaço de disputa pelos recursos sociais alienados pela burguesia. Aqui, o partido liga as demandas populares com os vínculos institucionais e parlamentares, como dizia Florestan, na luta dentro e contra a ordem. Esse vínculo com a burocracia institucional não pode anular a criatividade da institucionalidade comunitária.
É importante nesse sentido os espaços auto-organizados de assembleias e rodas de conversa, pois convivem com a ação imediata comunitária, criando um processo cotidiano de reflexão coletiva e crítica. De maneira que a fala vai se tornando parte de uma luta coletiva maior. É criar um espaço de convivência que vincula a militância e a discussão política com a ação. A reflexão crítica da cotidianidade do capitalismo. Dessa forma, comprometer-se com o povo, socializar-se com ele e buscar essa reconstrução coletiva, entendendo as contradições que vicejam em seu seio e na própria militância. Tal como descreve Florestan Fernandes, é preciso moldar-se pela classe, “favorecendo a sua socialização política revolucionária no dia-a-dia da luta de classes” e:
“Ao mesmo tempo, procurarão reeducar-se e ressocializar-se: seria funesto que não ocorresse uma proletarização da consciência social dos revolucionários militantes e dos partidos revolucionários. Aí a dialética de quem educa quem? possui duas mãos. Mesmo que o revolucionário possua uma origem operária e uma ampla experiência proletária prévia, ele precisa ser moldado pela classe – não a classe por ele!” Caso contrário, a partir de certo ponto, o proletariado caminhará numa direção e o que deveria ser o partido da revolução proletária caminhará em outra, cavando-se um fosso fatal entre ambos (FERNANDES, 1981, p. 27.)
Esse moldar-se exige um compromisso cotidiano com um programa da classe trabalhadora, que vincule as vitórias cotidianas com as lutas estruturais. Esse reconhecimento coletivo, na construção entre o ganho localizado e as necessidades individuais, faz parte do processo de formação de uma consciência estratégica. Por exemplo, a cozinha solidária é uma vitória, parte de um plano geral, a comida que comemos hoje só será um direito se houver política de distribuição e se o Estado intervier. Assim, vinculamos os problemas cotidianos com as abstrações sobre a dependência, a superexploração do trabalho com as relações estruturais que a compõem. Isto é, a ação constrói reflexão que se liga a uma estratégia de luta de longo prazo.
Conclusões: a importância do trabalho paciente como método de recomposição popular
1Esse artigo visou abrir um debate sobre uma metodologia política e das lutas cotidianas que enfrente o bolsonarismo em diversas frentes. Vivemos em um tempo de perda do território e do convívio militante, substituído pelo mecanismo virtual – que deveria ser um suporte para as lutas sociais, não um equivalente per si dessas lutas. O fundamental é retomar essa noção de comunidade e de encontros que superem o espaço virtual. Recuperar a noção de tarefas e de trabalho comum, de que o militante é um trabalhador que se fundamenta em tarefas políticas, mas pé no barro, tal como fala o companheiro Boulos. O comunitário contra a noção subjetiva de individualismo, isto é, o anticapitalismo à flor da pele. Tal como a noção de Brecht sobre comunismo, de resolver divertidamente os problemas cotidianos. É a comunidade contra o peso existencial do capital, ao mesmo tempo que combate a noção neofascista de autoritarismo e de vínculos de uma comunidade orgânica antipopular, antissindical, misógina, racista e homofóbica. Isto é, o trabalho comunitário é, no fundo, essa busca pelo amor ao próximo e ao distante frente ao mundo de ódio bolsonarista.
Referências bibliográficas.
FERNANDES, F. (1981). O que é revolução . São Paulo : Brasiliense.
GRAMSCI, A. (2000). Cuadernos del Cárcere. Tomo 6. Ciudad de México : Ediciones Era.
LENIN, V. (2020). O que fazer. Campinas: Boitempo editorial.
LUXEMBURGO, R. (2011). Guerra de massas, partidos e sindicatos. Em I. Loureiro, Rosa Luxemburgo, textos escolhidos. . São Paulo: Editora Unesp.
THOMPSON, E. ( 1998). A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. ,. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.
Venancio Oliveira é Economista e Doutor em Economia Internacional pela Universidad Nacional Autônoma de México (UNAM-MX).
[1] Essa elaboração é inspirada na leitura da formulação de Thompson (1998) sobre a importância de uma cultura de identificação na formação da classe operária inglesa.