A luta por teto e pão em meio à emergência climática

Por Júlia Ladeira*

Diante do agravamento da crise climática, a reforma urbana é ainda mais urgente. Com Cozinhas Solidárias e Emergenciais, planos comunitários de redução de risco, e ações territoriais verdes, o MTST tem enraizado e capilarizado a luta socioambiental

Quando a pandemia de Covid-19 assolou o mundo, ficou nítido que ainda que enfrentássemos um desafio global, não estávamos todos no mesmo barco: a tempestade era geral, mas alguns navegavam embarcações de luxo – podendo ficar em casa em segurança e com comida na mesa -, enquanto outros pilotam jangadas ou nadavam em mar aberto. No Brasil, junto com o vírus, veio a pandemia do negacionismo e da fome e, não fosse a força do SUS e a solidariedade de movimentos sociais e da sociedade civil, a tragédia seria ainda maior.

Com a crise climática, a lógica é a mesma: a ação capitalista predatória sobre a Terra tem gerado alterações profundas no funcionamento de todo o planeta, mas os impactos dessas mudanças não são, nem serão, vividos de modo igualitário. As enchentes que atingiram cerca de 95% das cidades gaúchas e deixaram mais de 735 mil pessoas sem suas casas são exemplo disso: embora as águas tenham atingidos pessoas de diferentes classes sociais, as consequências e a capacidade de cada uma de enfrentá-las e se recuperar eram radicalmente diferentes. 

De modo geral, nas áreas periféricas, onde há menos investimento em infraestrutura básica, são inúmeras e frequentes as histórias de pessoas que perdem o pouco que conseguiram conquistar com seu trabalho em decorrência de enchentes e deslizamentos. Antes mesmo do desastre no Rio Grande do Sul, a média de mortos em decorrência de chuvas fortes no Brasil era de uma pessoa a cada 3 dias: uma expressão severa da lógica excludente e violenta que rege a construção e manutenção das cidades em nosso país. 

Instrumentos como planos diretores, que deveriam criar estratégias para minimizar as desigualdades e favorecer o acesso à cidade para todos, são utilizados em favor da especulação imobiliária, promovendo a gentrificação e a “expulsão” de pessoas de baixa renda para áreas periféricas, onde os riscos são maiores. No caso do desastre no Rio Grande do Sul, essa mesma lógica marginalizadora foi reproduzida também nas primeiras ações do plano de reconstrução do estado, com cidades provisórias e pessoas amontoadas em espaços precários, distantes, sem acesso a direitos básicos e com riscos de adoecimento.

Em contextos como esse, a fome e a insegurança alimentar, já tão presentes na realidade das famílias periféricas, são aprofundadas e agravam a perversidade do racismo ambiental no Brasil. Aqui, as Cozinhas Solidárias ganham novos contornos. Criadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) no contexto da pandemia de Covid-19, elas já são mais de 50 espalhadas pelo Brasil: além do preparo e distribuição de refeições saudáveis gratuitas, estes espaços geram conexões importantes nos territórios, transformando-se em locais de referência comunitária e articulação política, promovendo atividades de ensino, cultura, saúde e lazer.

Diante do aumento da intensidade e da frequência dos eventos climáticos extremos, as Cozinhas Solidárias também passaram a responder a momentos emergenciais, começando pela tragédia climática que assolou Petrópolis (RJ) em 2022, quando foram distribuídas mais de 1200 marmitas em apenas 4 dias de atuação na região afetada. Nos anos subsequentes, as Cozinhas Solidárias de Emergência se fizeram presentes nas enchentes que atingiram Minas Gerais, Pernambuco, Acre, e, mais recentemente, no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, a Cozinha da Azenha, chegou a distribuir 4 mil refeições diárias durante a crise, superando a marca de 87 toneladas de alimentos preparados e distribuídos a várias regiões, algumas acessíveis apenas por barcos. Além de alimentação, o local oferecia atendimento médico e se tornou um pólo de articulação de doações.

Na contramão disso tudo, estão aqueles que preferem atacar os movimentos organizados com fake news e fortalecer o negacionismo climático: aqueles que trabalham a serviço do agronegócio e das empresas que exploram a natureza a todo custo, impactando a vida dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em nome do lucro e da concentração de renda. Responsáveis pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, suas ações reverberam negativamente na realidade das periferias urbanas, onde quem menos contribui para a crise, sofre suas mais severas consequências. 

Assim, se algum dia houve dúvida da importância da conexão da luta entre movimentos do campo, floresta e cidade, o agravamento da crise climática evidencia que não há outro caminho. A aprovação do Programa Cozinha Solidária, construído a partir da experiência do movimento social popular, é uma vitória nessa direção: através do Programa de Aquisição de Alimentos, a produção de agricultores familiares e assentamentos da reforma agrária passa a chegar às refeições distribuídas nas periferias urbanas.

Se o negacionismo climático é uma máquina produtora de pessoas sem-teto, não há como pensar e promover uma verdadeira agenda climática brasileira sem passar, necessariamente, pelo combate às desigualdades nas cidades e mudanças no paradigma de planejamento, adaptação e processos de reconstrução. Nesse sentido, além de seguir travando a luta por moradia e direito à cidade, o MTST tem reivindicado políticas transversais e participativas para promoção da segurança e soberania alimentar, prevenção, mitigação, redução de riscos, e adaptação nas periferias. 

Iniciada logo após as enchentes de maio de 2024, a ocupação Maria da Conceição Tavares, localizada no coração de Porto Alegre, em um grande imóvel abandonado há décadas, materializa muito desse esforço e se opõe às medidas tomadas para reconstrução da cidade que reforçam a desigualdade e a especulação imobiliária. Para além do investimento prioritário nas periferias, a ocupação Maria da Conceição Tavares evidencia também a necessidade de uma reforma urbana justa, que promova, inclusive, a requalificação de prédios abandonados para moradia popular e acesso às regiões centrais pela população em geral.

Além disso, através do trabalho territorial, o MTST tem promovido experiências que enraizam e capilarizam ações e formulações populares sobre a luta socioambiental: de hortas comunitárias à cisternas e composteiras, de oficinas de biocostrução à articulação de cooperativas de catadores. O movimento também tem desenvolvido experiências piloto para a prevenção de desastres, através da elaboração de Planos Comunitários de Prevenção de Risco e Adaptação Climática, em parceria com a Secretaria de Periferias do Ministério das Cidades em São Paulo e em Rio Branco, colaborando com uma necessária inversão da lógica que costuma imperar nas políticas para as periferias: em vez de remover as pessoas, mitigar o risco gerado pela desigualdade e falta de infraestrutura. 

Por fim, é importante ressaltar que o povo das periferias já se organiza de diferentes formas para conviver e diminuir os efeitos da crise climática. Deslizamentos e enchentes não são novidade nessa realidade, sendo urgente popularizar o debate climático para que as causas e consequências sejam evidenciadas para a maioria da população. As mobilizações populares ao redor da COP-30 no contexto da Cúpula dos Povos, que conta com mais de 200 organizações e entidades, vem se organizando nesse sentido, lutando para que as pautas prioritárias dos movimentos, povos e comunidades tenham visibilidade. 

Nesse contexto, o MTST tem ressaltado a importância da compreensão da crise climática em relação à realidade urbana e buscado qualificar o debate sobre a importância da solidariedade – um importante valor norteador de nossas ações mas que, se expresso apenas de forma emergencial e momentânea, não é suficiente para transformar a sociedade. A organização popular é fundamental nessa tarefa e, se queremos de fato combater a crise climática e seus efeitos, é preciso mudar o próprio paradigma do planejamento territorial urbano.

*Geógrafa e coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).

**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.

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