Por Eden Pereira Lopes da Silva
Historiador (UERJ), Doutorando em História Comparada (UFRJ), Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre África, Ásia e Relações Sul-Sul (NIEAAS) e Militante do MTST-RJ
Em outubro de 2024, o governo do Níger renomeou várias partes de sua capital em um significativo gesto de ruptura política com o antigo regime liberal tutelado pela França. A principal avenida de Niamey, capital do Níger, deixou de se chamar General Charles De Gaulle, e recebeu o nome do líder da independência do país, Djibo Bakary. O retrato do militar Parfait-Louis Monteil, responsável pelas campanhas militares da França no Sahel no fim do século XIX, que ocupava um muro de pedra do centro da cidade, foi substituído pela imagem do lendário revolucionário socialista burkinabe Thomas Sankara.
Essas mudanças, que indicam o resgate do legado da luta revolucionária socialista e anticolonial, começaram num momento no qual boa parte do mundo, especialmente o Ocidente, já não mais considerava sequer existentes essas ideias, julgadas por muitos como anacrônicas. Uma vez que o Muro de Berlim caiu, e com ele ficaram para trás diversas experiências históricas de superação do capitalismo no século XX, a imposição neoliberal do “fim da História” fez com que muitos acreditassem que a era revolucionária iniciada ao final do período de guerras mundiais havia acabado. Para o caso da África, essa conclusão foi praticamente unânime entre setores intelectuais e militantes.
No fim do século XX, a independência já havia sido conquistada pela maior parte dos povos africanos, com as únicas exceções do Saara Ocidental (ocupado pelo Marrocos), Mayotte e Reunião (ilhas colonizadas pela França) e outras ilhas menores ocupadas por Grã-Bretanha e Espanha. Muitas experiências revolucionárias tinham padecido fisicamente, por meio de assassinatos e sangrentos golpes de Estado bancados pela CIA, MI6 e DGSE, como em Gana (1966), Mali (1968), Burkina Faso (1987) e outros. Ocorreu ainda a crise dos países que estavam no processo inicial de reflexão sobre o caminho para o socialismo, como Angola, Moçambique, Tanzânia. Crise essa que emergiu na esteira do impacto gerado pela destruição da União Soviética e o triunfo violento do neoliberalismo.
As longas e opressoras ditaduras ao lado das experiências liberal-democráticas em vários países africanos a partir das décadas de 1980 e 1990 fizeram com que ideias como revolução, socialismo e anti-imperialismo fossem sinônimos de passado. A única exceção naquele período, a Líbia, sobreviveria apenas até 2011, quando o linchamento público de Muammar Gaddafi foi seguido pelo esquartejamento de uma das últimas experiências revolucionárias africanas existentes.
Esse período sombrio representou uma nova “era áurea” para os antigos colonizadores da África, pois as bases revolucionárias do pan-africanismo foram marginalizadas perante as propostas de integração metropolitanas, que tinham por base central questões de natureza econômica devido à nova divisão internacional do trabalho e as rivalidades entre as elites locais. A expressão disso foi a proliferação de blocos econômicos regionais ou multilaterais funcionais apenas para as antigas potências coloniais, e que elevaram a desigualdade social a patamares tão grandes quanto os existentes há um século. Em 2020, os dez Estados com menor PIB por paridade de poder de compra no planeta eram todos africanos. Esse cenário foi agravado pelo impressionante crescimento populacional para o qual não existem políticas públicas em uma série de países, que usam suas populações como reserva de mão de obra global e como espaço para tipos de trabalho e serviços que seriam ilegais no capitalismo central.
O cenário derivado do neoliberalismo elevou à máxima potência graves problemas sociais nos países africanos. Por um lado, o terrorismo, o tráfico de drogas e armas, o contrabando de recursos minerais e biológicos tornaram-se atividades adjacentes aos negócios de diversas empresas e uma das poucas fontes de renda locais, gerando um círculo vicioso. Por outro, a guerra do terror promovida pelas presidências de George W. Bush e Barack Obama, também foi levada a cabo de forma violenta e silenciosa na África em países como a Somália e o Mali, com o apoio e o protagonismo de aliados estadunidenses, como a Grã-Bretanha e a França. A única alternativa a isso para a maior parte da população era a perigosa migração para a Europa, ou para outros países próximos geográfica e culturalmente no Sudoeste da Ásia, e até mesmo o Brasil. Logo, não existia qualquer expectativa de futuro ou mudança a curto e médio prazo na África perante essas questões sociais e políticas.
O Sahel, região semi-árida de transição geográfica entre o deserto do Saara e as savanas sudanesas, numa faixa que vai do Oceano Atlântico ao Índico, é uma das áreas que mais sofreram com esse processo. Majoritariamente colonizada pela França, cuja presença militar ainda é visível décadas depois da independência, esse foi um dos espaços mundiais que foram mais violentamente afetados pelo neocolonialismo e também pelas consequências da presente crise climática do planeta, que tem como principal sintoma local a desertificação.
Povos que até a década de 2000 eram semi sedentários, e fortemente dependentes da agricultura para sobreviver, foram forçados a abandonar as suas terras por problemas como secas e violência derivada do terrorismo e ações militares estrangeiras. As pessoas que pertenciam a esses grupos migratórios também tinham escolhas restritas nas cidades, por causa da marginalização política, da desigualdade social e econômica, aliada a sistemas políticos conservadores, compostos por pequenas elites burocráticas estatais ligadas a interesses estrangeiros, sobretudo das ex-metrópoles. Esse cenário de desesperança, porém, alimentou a indignação social e política nessas sociedades.
Algumas partes da população, especialmente frações de tuaregues e fulanis ― as etnias mais afetadas pelos problemas climáticos e a violência ―, acreditaram que a resposta era a violência terrorista. Isso transformou o Sahel em um novo Vale de Fergana, região da Ásia Central que empobreceu após o fim da União Soviética e que forneceu recrutas para grupos terroristas na década de 1990, com implicações generalizadas para todos os países africanos. Em 2023, o Sahel foi a região que registrou a maior proporção numérica de atividades terroristas do mundo, de acordo com o Índice Global de Terrorismo, cerca de 26%. Isso foi fruto do surgimento do Estado Islâmico do Azawad no Nordeste do Mali, no curso do esquartejamento da Líbia pelos países europeus, que resultou na emergência de células terroristas na Nigéria (Boko Haram, 2014), e em outros países como Chade e Níger.
A intelectualidade desses países, cuja grande maioria é crítica às políticas de submissão as antigas metrópoles e às práticas autoritárias, foi incapaz de organizar a indignação popular e respostas às crises sociais que estão expressas por meio de problemas como o terrorismo. Como boa parte da intelectualidade africana, muitos dos acadêmicos e pensadores críticos do Sahel residem em áreas fora do continente por questões que vão de segurança pessoal (muitos são politicamente perseguidos) até problemas econômico-financeiros. Isso afastou esses círculos intelectuais de vários aspectos da vida política e social de seus países e abriu o espaço para que outros setores se tornassem protagonistas da luta pela transformação social, como funcionários públicos das esferas civil e militar, líderes religiosos e frações da população urbana desempregadas ou situadas em empregos de alto grau de superexploração. O Mali, ponto de ignição das recentes transformações no Sahel, é o melhor exemplo.
Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, o país passava por uma dura crise econômica e social, e o então presidente malinês Ibrahim Boubakar Keita (IBK) ― instalado pelos franceses após a invasão do país durante a Operação Serval em 2013 ― foi o primeiro líder da África Ocidental derrubado na presente década após grandes manifestações na capital do país durante três meses. Uma quartelada liderada pelo Coronel Assimi Goïta afastou IBK da Presidência e o primeiro-ministro de seu posto, e instalou um governo de transição em resposta aos protestos, então comandados pelo notório Imã salafista Mahmoud Dicko. Embora o país permaneça sob governo militar, as principais demandas da população, que envolviam a expulsão das tropas francesas e o combate ao terrorismo, foram atendidas e medidas econômico-sociais, sobretudo na agricultura, foram tomadas, para fortalecer a segurança alimentar.
Certamente o governo presidido por Goïta tem limites políticos e ideológicos, porque herda uma visão militar de mundo e de relações sociais e políticas. Contudo, a mudança ocorrida lembra episódios similares que ocorreram se deram em governos nacionalistas na América Latina durante as décadas de 1920 a 1960, como Getúlio Vargas no Brasil, Velasco Alvarado no Peru e Juan Domingo Perón na Argentina. A similaridade não reside apenas na questão do protagonismo militar no processo de transformação política do país, mas também pela convergência de ideias entre civis e fardados ao redor de um projeto nacional comum, que ganhou eco em outros países, criando uma tendência regional que se confirmou em anos seguintes no Burkina Faso e no Níger.
No Burkina Faso, as forças armadas mantinham o regime mais opressivo de toda a África Ocidental, graças a uma estrutura imposta após a violenta derrubada do líder revolucionário Thomas Sankara em 1987. O país ocupava as primeiras posições no ranking dos maiores índices de violência, pobreza e analfabetismo em toda a região. Em setembro de 2022, o movimento militar liderado pelo capitão Ibrahim Traoré, o mais jovem chefe de Estado do mundo, ocorreu na sequência de um golpe militar que derrubou o presidente civil Roch Kaboré. Para muitos observadores externos na época, a ação política de Traoré parecia apenas mais uma quartelada comum no continente africano, e para a própria história de Burkina Faso, porém as aparências enganam, especialmente àqueles que julgam os eventos apenas pela superfície.
Diferentemente de outros companheiros de farda de seu país e da África Ocidental, o jovem capitão possuía uma singular leitura política, social e cultural. Traoré é um geólogo que, segundo uma reportagem sobre sua vida no francês Le Monde, foi membro do movimento estudantil na Universidade de Ouagadougou, atual Universidade Joseph Ki-Zerbo. O líder burkinabe não frequentou a tradicional escola militar do país, que tem forte influência da França, pois, devido à sua formação qualificada, acessou diretamente a Academia Militar Georges-Namoano. Ali, Traoré ascendeu rapidamente, com dedicação aos estudos e liderança em várias missões contra os grupos terroristas no Mali e no próprio Burkina Faso. Não é surpreendente, então, que, quando chegou à Presidência, Traoré tenha quebrado uma série de protocolos históricos e iniciado uma revolução.
Ibrahim Traoré anunciou a nacionalização de vários recursos minerais e naturais durante os primeiros meses do governo. Fundou o primeiro banco estatal da história do país, o Burkindlim, e negociou com países como Turquia, Rússia e China para estabelecer indústrias capazes de complexificar a cadeia produtiva dos recursos minerais e agrícolas e até usinas nucleares. No entanto, uma das ações mais simbólicas do presidente burkinabe foi o resgate da figura de Thomas Sankara e das ideias revolucionárias e anticoloniais. Algo que não apenas o tornou popular entre a juventude do país, mas chacoalhou toda a África, com uma nova onda de difusão das ideias anti-imperialistas e pan-africanistas.
As ideias e manifestações populares vistas no Burkina Faso rapidamente chegaram ao conhecimento do povo do Níger, principalmente aos militares nos quarteis. Em julho de 2023, o comandante da guarda presidencial, general Abdourahamane Tchiani, seguiu os exemplos de Goita e Traoré e afastou da presidência Mohamed Bazoum, um dos maiores aliados da França no Sahel. O novo governo também nacionalizou recursos minerais e naturais, como o urânio, principal recurso mineral do país, fechou as bases militares francesas, e mais tarde uniu esforços com o Mali e o Burkina Faso para combater o terrorismo e construir uma nova identidade política para a região a partir da Aliança do Estados do Sahel. Essa organização tem sido considerada, vulgar e superficialmente, como apenas um pacto militar entre novos ’’governos militares africanos’’.
O impacto dessas transformações no Sahel foi tectônico. No Ocidente, grandes jornais falam de um “coup belt’’ (cinturão de golpes) na África e de um “ufanismo anticolonial arcaico e autoritário’’ que precisa ser combatido. A França tentou sem sucesso organizar uma intervenção multinacional sobre o Níger. Vários governos africanos também estão alarmados com a possibilidade de que essas ideias possam chegar aos seus quarteis, passando a promover um controle maior sobre os seus fardados enquanto a insatisfação com as democracias liberais continua a crescer em regiões que vão além da África francófona. Países como Gana, Quênia e até mesmo a África do Sul, também veem a oposição ao modelo neoliberal de governança crescer, à medida que essa política colapsa em várias partes do continente. Mesmo os países que seguiram vias centristas e reformistas na independência também são varridos pela nova onda pan-africana. O Senegal, que passou por um turbilhão político recentemente, escolheu um presidente de esquerda com ideias panafricanistas.
É evidente que esses governos possuem grandes limitações, mas, uma vez que mantenham o apoio e fortaleçam o protagonismo popular, podem ir mais longe. Não é possível enquadrar as recentes rupturas políticas ocorridas no Sahel como parte de tradicionais golpes de Estado no continente africano, como muitos setores da mídia dominante e alguns acadêmicos de visão eurocêntrica têm afirmado. Os processos e resultados políticos, sociais, econômicos e culturais desses movimentos são completamente distintos. Basta apenas contrapor o que representaram para seus povos e a própria África as ditaduras militares no Mali, no Burkina Faso e no Níger no passado e o que fazem os governos atuais desses países no presente. Não é nenhum exagero dizer que esses movimentos de ruptura são desdobramentos políticos que resultaram de demandas nacionais locais, que, ao acionarem os seus próprios caminhos para a construção da soberania popular, revitalizaram não apenas a luta anti-imperialista, mas o próprio pan-africanismo em sua vertente mais revolucionária.
Referências:
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FRENCH, Howard W. The End of Françafrique? In: Foreign Policy. 2024. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2024/02/26/france-sahel-mali-niger-francafrique-burkina-faso/.
HELLER, Kim. On the shoulders of Thomas Sankara. In: The African. 2023. Disponível em: https://theafrican.co.za/politics/on-the-shoulders-of-thomas-sankara-11d27e5a-32bf-4d88-a957-c0604296aead/.
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LE MONDE. Au Burkina Faso, le capitaine Ibrahim Traoré, le président énigmatique qui défie la France. 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2023/05/30/au-burkina-faso-le-capitaine-ibrahim-traore-le-president-enigmatique-qui-defie-la-france_6175485_3212.html.
PRASHAD, Vijay. Balas de Washington- Uma história da CIA, golpes e assassinatos. Editado por Expressão Popular, São Paulo, 2020.
VIZENTINI, Paulo F. G. Revoluções e Regimes Marxistas- Rupturas, experiências, e impacto internacional. Editado por SindBancários, Porto Alegre, 2013.
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