Walter Altino de Sousa Júnior
Nos últimos meses se tornou notório o debate do racismo institucional das polícias a partir do caso George Floyd, que gerou uma onda de protestos nos EUA e no mundo. As reações e onda de passeatas e rebeliões atingiram todo o país, em uma proporção só comparada às que aconteceram durante os anos 1960 e 1970 com os movimentos dos Direitos Civis.
No Brasil, a situação da violência policial aumentou significativamente a partir da eleição de Jair Bolsonaro.
Ainda que a proposta do excludente de ilicitude tenha sido derrotada no pacote anticrime do então Ministro Sérgio Moro, houve aparentemente um entendi mento por parte dos policiais, sobretudo nas grandes metrópoles, de que agora “é tolerância zero”. O comportamento tem respaldo tácito tanto no discurso presidencial, como no de governadores com discurso conservador bélico de combate à criminalidade (é o caso do Rio e de São Paulo). Dados do Fórum Brasileiro de segurança pública divulgado pelo portal G1, informa que a letalidade policial cometida em São Paulo aumentou 53% em abril de 2020 comparado ao ano de 2019, sendo 31% se forem tomados os meses de janeiro a abril. Já segundo dados divulgados pela Folha de S. Paulo2, a letalidade cometida por policiais no Rio superou a cometida por crimes violentos.
Ações desastrosas
Essa realidade que já vinha se apresentando durante a pandemia ganhou novas proporções a partir de ações desastrosas, como a que levaram a morte do menino João Pedro, no Rio de Janeiro. O fato, entre outros, ensejou liminar do Ministro Edson Fachin, a pedido do PSB, para que não ocorra mais ações de diligência policial nas favelas do Rio enquanto durar a pandemia.
A situação da violência racial e controle social estabelecidos sobre bairros nos quais predomina a população negra, seja na nossa realidade, seja nos Estados Unidos, pode ser definida como “necropolítica”.
Por necropolítica entendemos o conceito do filósofo camaronês Mbembe Achille, que analisa o exercício da soberania do Estado moderno a partir de uma reelaboração do conceito de biopolítica, de Foucault. Segundo ele, para garantir a vida o Estado busca matar o inimigo externo, cujo exemplo mais emblemático seria o do nazismo.
Achille, a partir da observação das experiências de colonizações modernas da Europa, como do que foi o modelo de escravidão, identifica a existência nessas condições de uma política do terror e da morte, como exercício do bio poder, não como declarada política externa da soberania, mas como exercício interno, a partir de condições de excepcionalidade estabelecidas pelo aparato legal.
Assim se produzem Estados de sítio ou de exceções como normalidade, em contextos como do apartheid na África do Sul ou nas colônias. Dessa forma, ele elabora o conceito de necropolítica como algo constituinte do exercício da soberania no Estado moderno. Este para além das funções de dominação de classe, também seria constitutivo de dominação racial.
Direita e centro-esquerda
Dito isso e ilustrando nossa conjuntura, há contradições notáveis. Os governos até aqui citados representam administrações conservadoras, eleitas numa onda de extrema direita que levou ao poder Donald Trump lá e Jair Bolsonaro aqui. Por outro lado, temos um governo como o da Bahia, que pertence a um partido de centro-esquerda (o PT), com participação de movimentos sociais na gestão. Esse último não se contrapõe à lógica da violenta política de controle sociorracial de Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e de João Doria (São Paulo). E esse é o fenômeno de “necropolítica”.
O caso específico da Bahia se mostra emblemático como uma cultura política arraigada no Estado, cujo “modus operandi” do PT no “poder” não foi capaz de alterar um exercício de necropolítica que tem herança desde os governos neocoronelistas de ACM (Antônio Carlos Magalhães), que permitia a repressão e o extermínio desde a época da ditadura militar por meio dos “esquadrões da morte”, que posteriormente se constituem nos grupos de extermínio modernos.
Vale enfatizar que na área da segurança pública e não só nela nada mudou na Bahia. O bairro de Nordeste de Amaralina, na periferia de Salvador, tem sido um exemplo incontestável de “necropolitica” há anos, provavelmente por ser uma grande extensão populosa de presença negra, cercado por territórios predominantemente brancos de classe média alta. O “complexo do Nordeste” compreende os bairros de Vale das Pedrinhas, Santa Cruz e Nordeste de Amaralina, que ficam cercados pelos bairros de Alto do Itaigara, Pituba, Rio Vermelho e Horto-Candeal, estes tidos como “nobres”.
Assim, nossa população sofre desde os abusos cometidos pelas bases de segurança comunitárias que estabelecem um estado de exceção constante no citado “complexo”, pelo qual se aborda qualquer aglomeração de jovens em atividades culturais ou lazer, impondo inclusive limites de horário nessas atividades e/ ou para estarem em determinados lugares, até abordagens mais violentas e tiroteios constantes.
Assassinatos aos milhares
Tivemos casos absurdos de assassinatos como o do menino Joel, 10 anos de idade, presente em peça publicitária do governo estadual, morto em sua casa por bala da polícia. Ou o de Marcos Vinícius, 20, casado, pai de um bebê que, mesmo sem ter “nenhum envolvimento” com crimes, como sempre é alegado, foi assassinado por policiais, ao sair de casa para compra pão. São milhares de casos nessa linha, sem exagero, que já deram origem a muitas iniciativas civis.
É necessário refletir como os setores progressistas da sociedade brasileira, em especial a esquerda, têm desprezado o combate ao racismo, que é crucial para a consolidação democracia no Brasil.
Observamos nesse sentido, mesmo na normalidade democrática, que as nossas favelas sempre se constituem como verdadeiros campos de concentração, nas quais a população negra vive amontoada à revelia das políticas públicas básicas; seja de saúde, educação e lazer, saneamento básico, habitação ou mobilidade e, sobre um Estado de exceção constante de violações dos diretos humanos, pelo aparato repressor da polícia militar ou de paramilitares.
Nesses espaços não existe a noção de democracia, pois vive-se oprimido, seja sobre o controle de milícias e outros grupos criminosos, seja sobre um estado de guerra constante no fogo cruzado entre os dois Estados.
A política de segurança pública durante muito tempo foi negligenciada na disputa de hegemonia da sociedade civil pelos setores organizados e progressistas. Isso, tendo em vista a disputa pelo modelo, considerando o caráter militar, ostensivo e repressor vigente. Comparativamente, essa política não foi disputada levando-se em conta as demandas da sociedade ao Estado, pelos setores progressistas após a abertura democrática, tais como foram as políticas de educação, de cultura, saúde, habitação e economia entre outras, haja vista a experiência petista durante o período que foi governo federal e estadual, no caso específico da Bahia.
Tomamos aqui como parâmetro do entendimento de disputa de hegemonia o conceito de “hegemonia e disputa de hegemonia” de Gramsci, pelo qual o Estado se configura, mais do que um aparelho de dominação, mas como uma arena a partir do qual se dão as lutas e disputas de “classe e fração de classe” pela hegemonia do modelo societário.
Não por acaso vai ser justamente dessa área de segurança que ressurge, agora ameaçando toda a sociedade, o fantasma do fascismo a partir desse governo neofascista e genocida de Jair Messias Bolsonaro.