Por Gilberto Maringoni
Boa parte da oposição brasileira subestimou dois imensos flancos abertos pelo governo Jair Bolsonaro ao longo de 2020 e buscou atalhos que se mostraram infrutíferos. No primeiro semestre, diante do avanço acelerado do contágio pela pandemia do novo coronavírus – e dos graves prejuízos causados à população – poucas foram as vozes a colocar o combate à doença como centro da tática. O segundo é não ver importância em uma conquista na qual essa mesma oposição teve papel decisivo, a manutenção até o fim da pandemia do auxílio emergencial de R$ 600. Há exceções, claro.
Os dois temas – doença e dinheiro – tocam o dia a dia e o desespero das maiorias, muito mais do que cinco dezenas de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, ou brados de “Fora Bolsonaro” feitos quando o negacionista eleva os índices de popularidade.
Tanto a denúncia do descaso oficial com a pandemia, quanto a extensão do auxílio emergencial são temas concretos e compreensíveis por todos. A adoção efetiva derruba o principal pilar do modelo econômico fiscalista do governo, o teto de gastos estabelecido por meio da Emenda Constitucional 95. Mais do que tudo, essas batalhas assinalariam a contradição fundamental em pauta no Brasil e no mundo de 2020, as opções entre Estado e mercado. Detalhemos.
O LUGAR COMUM
Em tempos de pandemia, alguns conceitos têm se tornado ocos de significativo inevitável para a maior parte da humanidade. O novo normal seria um mundo mais pobre, mais resignado e mais triste.
A doença atinge quase todas as esferas da sociedade. A propagação é rápida, radical e profunda e coloca para a coletividade, acima de tudo, a oposição entre alternativas individuais e coletivas, ou privadas e públicas ou, ainda, soluções de mercado e de Estado.
No caso brasileiro, estabeleceu-se a banalização da tragédia (veja “Naturalizamos o horror?”, de Maria Rita Kehl, nesta edição), assimilada como parte da paisagem após meses de informações e orientações desencontradas. Algo semelhante ocorre com a violência que se tornou fenômeno aparentemente insolúvel. O país é um dos mais perigosos do planeta e os indicadores chegam a ser superiores aos de regiões em guerra. A brutalidade, assim como o novo coronavírus, tem aqui a dramática PPP. Ou seja, atinge preferencialmente pobres, pretos e periféricos. Apesar do drama humano, são tristezas com reduzida influência em círculos de poder e dinheiro de uma sociedade estupidamente desigual. Pandemia e violência geram estatísticas mais do que lágrimas e indignação.
A naturalização – ou banalização – do horror marca em cheio o mundo político- -institucional. Apesar da abnegação de profissionais de saúde pública e de poucas e honrosas exceções, a naturalização atinge o poder central, com o inesquecível brado “E daí?”1 . A indiferença alcança ainda instituições de Estado, partidos políticos e a grande mídia. Assistimos cada vez mais o noticiário sobre a saúde ser deslocado para o rodapé dos veículos de comunicação e a perder importância na agenda nacional.
Por que isso acontece? Difícil saber ao certo, mas há algumas pistas. A dimensão quase totalizante da doença parece intimidar o comando de instituições, partidos, associações e organizações sociais.
Durante a crise de 2008, dizia-se nos EUA que certos bancos seriam “grandes demais para quebrar”. Diante dos pesos definidores na economia, o Estado não poderia deixá-los falir. Parece haver agora, face à pandemia, a sensação de que esta seria “grande demais para se enfrentar”, gerando uma impotência que forçaria todos a se desviarem do tema em busca de tarefas tangíveis para seguirem “fazendo alguma coisa”.
A pandemia é e será, por tempo ainda indefinido, o principal problema político do país e do mundo. Se o vírus faz parte da realidade objetiva, o avanço e o recuo da doença dependem de ações humanas. Em outras palavras, depende de movimentações não naturais. Defesa do isolamento social, dinheiro nas mãos das pessoas, financiamento para empresas, injeção maciça de dinheiro no SUS, testagens em massa e outras são iniciativas de Estado. Sublinhando, iniciativas de Estado e não de mercado.
“Estamos em guerra”
Em 16 de março, o presidente francês Emmanuel Macron fez um pronunciamento televisivo de pouco mais de 20 minutos. Por seis vezes, a pontuar o ritmo da fala, o chefe do palácio do Eliseu repetiu: “Estamos em guerra”2 .
O mote guerra, a partir daí, disseminou- -se pela Terra, sendo repetido não apenas por políticos, como por sanitaristas. Até mesmo o ministro da Defesa do Brasil, general Fernando Azevedo e Silva, afirmou, em 16 de abril: “Estamos em uma guerra e o Exército está nela”. Bravata, como se sabe. As Forças Armadas brasileiras entraram na guerra por meio de uma polêmica intervenção no ministério da Saúde, que prima pela inoperância, pelo empreguismo e por não traçar nenhuma estratégia sanitária nacional. O Exército brasileiro demonstra não ter a menor noção do que signifique um conflito de grandes proporções. Seus generais sabem do que se trata por meio de filmes de Quentin Tarantino ou Steven Spielberg.
Apesar disso, a metáfora lançada por Macron tem razão de ser. Em termos formais, uma pandemia é muito diferente de uma guerra. Nesta, o objetivo é matar pessoas, na pandemia, a meta é salvar pessoas. No entanto, só se pode combater infecções de larga expansão territorial por meio de um tipo de mobilização política e social semelhante à de uma união nacional contra agressão externa.
Em ambos é necessário um comando nacional único e centralizado, capaz de mobilizar e coordenar ações de três níveis do Estado – nas áreas de informação, crédito, financiamento, redes de saúde, educação, pesquisa, assistência social e forças armadas – e da iniciativa privada – comércio, indústria e serviços, com destaque para transportes -, além de entidades associativas.
O vírus se move geograficamente, ocupando espaços e territórios. Embora o atendimento médico na fase aguda da doença seja individualizado, o controle do ataque viral demanda ação pública e coletiva. O isolamento social e territorial só pode ser aventado mediante operações de compensação e transferência de renda que supram necessidades básicas da população em períodos de suspensão de atividades econômicas. Secundariamente, o confinamento físico apenas é factível por meio da adoção de táticas e logísticas militares, eficientes campanhas de esclarecimento popular e dinheiro nas mãos das pessoas.
Disputas de tempo, espaço e território
Ressalte-se: o combate a uma pandemia para a qual não existe vacina ou cura tem de ser pensado, antes de mais nada, como disputas de tempo, espaço e território3 . Só se enfrenta a Covid-19 se o conhecimento de seu deslocamento geográfico presente e futuro for o mais detalhado possível. Dessa maneira se traçam normas de isolamento.
O conhecimento e o domínio do espaço geográfico se mostram essencial para uma ação integrada no combate à doença, que só é factível por meio de iniciativas estatais coordenadas. No Brasil e nos Estados Unidos – países nos quais a Covid-19 fugiu de controle – as soluções adotadas foram descentralizadas, desiguais e com uma multiplicidade contraditória de procedimentos. Em síntese, nos dois países, uma lógica análoga à anarquia de mercado se sobrepôs às necessidades da saúde pública. No mercado vigora a concorrência sem regras, na ação pública, ao contrário, a matriz pode ser cooperativa.
Voltemos ao paralelo bélico. A maneira mais eficiente de se combater o coronavírus é encará-lo como um exército invasor contra o qual uma multiplicidade de forças nacionais pede comando centralizado, ofensivas convergentes, emulação popular e unidade de ação.
O mapeamento da ocupação só pode ser realizado por uma rede pública e nacional de saúde fortalecida. No caso concreto do Brasil, a ação estatal teria a vantagem de contar com a decisiva atuação da rede pública e capilarizada do Sistema Único de Saúde (SUS).
A tática de defesa precisa envolver, ademais, recursos ilimitados e a fundo perdido (em especial para que se garanta o funcionamento da economia, com dinheiro nas mãos das pessoas e créditos para as empresas), campanhas educativas e restrições à mobilidade, para garantir o isolamento social. As intervenções demandam ação militar e sanitária, além de investimentos emergenciais em pesquisa, compra de equipamentos, montagens de hospitais, pronta resposta, transparência de decisões entre outros. A difusão da ideia de agressão externa e de Pátria em perigo, típica de conflitos bélicos, torna-se fundante. Sem mobilização e engajamento social não se enfrenta a pandemia. O clima de new deal mais economia de guerra é essencial para uma empreitada desse tipo.
O exemplo chinês
Foi com iniciativas desse quilate que a China obteve êxito em mitigar a propagação da Covid-19. Pode-se alegar que o país é governado por uma ditadura há 70 anos, motivo pelo qual uma dinâmica articulada nos moldes acima enunciados é factível. O mesmo não seria possível em um regime de liberdade.
A alegação é enganosa. Grandes democracias enfrentaram guerras cruentas sem perder a pluralidade política. Vamos repetir mais uma vez: a questão a ser colocada não é entre ditadura e democracia, mas entre mercado e ação estatal.
No Brasil, sem nenhum planejamento ou controle centralizado e com um discurso negacionista por parte do presidente da República – que contamina a sociedade -, o contágio obedece um roteiro de manual de luta de classes. Das zonas urbanas de remediadas a peste migra e se consolida entre regiões pobres, bairros de periferia e favelas, numa escalada devastadora.
A doença colide com a economia internacional como força externa a ela e põe em questão parâmetros da globalização neoliberal estabelecidos nas últimas quatro décadas. Se o surgimento da Covid-19 faz parte das condições objetivas da realidade, o desenvolvimento, o deslocamento e o contágio estão subordinados – impulsionados ou bloqueados – por condições subjetivas, as ações humanas. É aqui que a doença se insere na esfera política e funciona como ferramenta para se alterarem regras estabelecidas, acelerando o desenlace de tensões que estavam em andamento. Nos últimos quarenta anos, espalharam-se pelo mundo políticas de cortes de orçamentos públicos como um fim em si e como passaporte seguro para que um dia, quem sabe, os países voltem a crescer. Com a Covid-19, a urgência de políticas anticíclicas e investimentos maciços em saúde torna a ideia de rigidez fiscal e contração monetária um contrassenso total.
No caso do Brasil, o vírus colhe em cheio uma economia fragilizada por sucessivas decisões ultraliberais tomadas desde, pelo menos, 2015. Todas tiveram como métrica a cantilena privatizante e antiestatal, com a elevação dos ajustes fiscais à categoria de eixos estruturantes da sociedade.
O resultado para o país é a mais profunda depressão da história republicana, o maior aumento da taxa de desemprego em um curto espaço de tempo – ela praticamente dobra entre dezembro de 2014 e março de 2016 – e a mais lenta recuperação econômica em mais de um século. A economia passa a funcionar num cenário de semiestagnação, desemprego de dois dígitos, baixo ativismo estatal e desindustrialização perene. Consolida-se a alta produtividade do setor agroexportador como polo dinâmico da economia, numa volta à situação pré-1930, quando o país exibia uma economia predominantemente rural. A essa anomalia planejada também se denominou novo normal.
AUMENTO DE GASTOS
Tentar vislumbrar o mundo pós Covid-19 em meio à propagação incontrolável – no caso brasileiro – é um exercício de alta abstração. Como os conflitos sociais estão em curso, é difícil realizar análises prospectivas confiáveis. Projeções do FMI avaliam que o resultado imediato será a maior recessão global em um século.
O governo Bolsonaro coloca na mesa uma escolha de Sofia como alternativas à crise, a oposição entre salvar vidas ou salvar a economia, como se economia não precisasse de seres vivos e estes, daquela. Mesmo assim, o governo foi forçado a adotar o chamado orçamento de guerra, por meio de emenda constitucional promulgada no início de maio4 . A medida na prática acabou com restrições orçamentárias no combate à doença e permitiu que se rompesse o chamado teto de gastos, definido a partir de 2017.
Qual tem sido a solução generalizada para manter a demanda efetiva ao redor do mundo? Aumento dos gastos, investimentos públicos e emissão monetária sem preocupação imediata com déficits são a norma, mesmo em países governados pela direita neoliberal. No início de junho, o Banco Central Europeu anunciou um gigantesco programa de desembolsos da ordem de 1,35 trilhão de euros, algo próximo a 80% do PIB brasileiro5 . No final do mês seguinte, líderes da União Europeia chegaram a um novo acordo para um programa de recuperação econômica de mais 750 bilhões de euros.
Formou-se um aparente consenso entre especialistas de variadas correntes: “Até economistas tidos como falcões do fiscalismo tendem a apoiar gastos emergenciais agora e alguns querem mesmo ampliá-los”, afirmou a Economist, em 24 de abril de 20206 .
Na crise de 2008, os cofres dos tesouros nacionais da maioria dos países também foram escancarados para salvar as economias. Ao longo da década seguinte, tendências protecionistas no mercado internacional ganharam forte apelo político-eleitoral. Reapareceu um discurso antiliberal de direita em defesa dos negócios e dos empregos, como não se via desde a II Guerra.
Sairemos da pandemia com a adoção de práticas keynesianas e anticíclicas por parte dos Estados, com planejamento e investimentos públicos em alta? Ou deixaremos a superação das múltiplas crises em andamento aos imponderáveis desígnios da mão invisível do mercado? Teremos um novo normal? Ou teremos novos normais como possibilidades múltiplas, a depender dos enfrentamentos em curso? Estamos num ponto incerto do turbilhão, sem conhecer o ciclo vital de um vírus que avança com velocidade inusitada. Teremos a volta a algum tipo de regime de substituição de importações e consequente reconversão industrial? Ou seja, de volta ao Estado indutor, planejador e financiador?
O exercício de se prever o mundo pós- -pandemia tem muito de achismo. Depende dos rumos e ritmos da luta política entre partidários da ação estatal e mercadistas, já comentados. A fragilidade do mercado como organizador social fica evidente, mas tal disfunção por si só não engendra a superação. É difícil vislumbrar a existência de força política capaz de construir tal ultrapassagem.
O TRABALHO PÓS-PANDEMIA
Como ficará o mundo do trabalho pós- -pandemia, quando os trabalhadores e empresários do setor de serviços descobrirem ser possível estabelecer o home office como modalidade permanente? É possível que num futuro breve, segmentos da atividade industrial – a partir da chamada revolução 4.0 e do desenvolvimento da internet das coisas – possam também ser desenvolvidos a partir de casa. O que o insulamento perene dos trabalhadores implicará para o convívio social?
Várias modalidades de trabalho não necessitam mais de lugar fixo. O exemplo pioneiro vem das empresas de call center, que montaram bases em regiões marcadas por incipiente organização sindical, o que lhes permitiu pagar salários muito baixos, com vínculos flexíveis de emprego. Agora, percebe-se que um sem número de atividades prescinde de funcionários baseados em uma única cidade ou mesmo um único país. Uma verdadeira guerra pela redução dos custos do trabalho pode se estabelecer de forma ainda mais acentuada do que na atualidade.
Não é mais necessário exportar capitais na forma de escritórios ou centros de prestação de serviços em busca de mão de obra e preço da terra mais baratos. Um laptop e conexão estável de internet resolvem tudo. Claro que as empresas deverão externalizar os custos de energia, comunicação e espaço físico para milhares de lares espalhados ao redor do planeta. O trabalho absorverá custos até aqui de responsabilidade do capital.
Edifícios inteiros podem ser esvaziados, bairros comerciais tendem a se tornar zonas fantasmas, com evidentes impactos deflacionários sobre o preço da terra. As empresas de transporte – urbanas, interurbanas e internacionais – terão menos demanda, assim como grandes espaços desenhados para convenções e encontros. Os deslocamentos serão reduzidos, o raio de ação das pessoas poderá ser menor, as viagens serão cada vez menos urgentes. A globalização das coisas – parafraseando Robert Kurz – se imporá em detrimento da globalização humana.
O novo normal do mercado teria assim o condão de reconfigurar também o espaço de forma radical. A encruzilhada aponta dois caminhos. O do mercado – descrito linhas atrás – representa o aprofundamento do neoliberalismo, com maior redução de custos de produção e de trabalho, eliminação de ramos inteiros de atividades e a eternização da precariedade, do aumento das desigualdades e do caos social.
A outra via é a de uma reorientação tectônica do papel e da função dos Estados nacionais num mundo pós-catástrofe. Essa opção abre esperanças para as maiorias. A escolha resultará de um profundo conflito no terreno da política.
A possibilidade de os setores progressistas terem voz e vez nesse imenso enfrentamento demanda fazer escolhas corretas, como mencionado no início. Implica abraçar pautas que toquem a vida das maiorias, como a centralidade política da pandemia e a continuidade do auxílio emergencial.
Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC).
1 No dia 28 de abril de 2020, quando o número de mortes causadas pela Covid-19 chegava a cinco mil, uma jornalista afirmou a Jair Bolsonaro: “A gente ultrapassou o número de mortos da China por covid-19”. O presidente, então, afirmou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, em referência ao próprio sobrenome.
2 O discurso pode ser assistido ou lido aqui: https://vancouver.consulfrance.org/CoronavirusAllocution-d-Emmanuel-Macron-16-mars
3 Veja-se como referência o artigo “Assim nasce a geografia da pandemia”, de Ricardo Devides Oliveira (https://outraspalavras.net/ descolonizacoes/assim-nasce-a-geografia-dapandemia/) (Acesso em 20.07.2020).
4 Emenda Constitucional 106, de 2020, decorrente da PEC 10/2020
5 As informações estão em https://www.bbc.com/ portuguese/internacional-51983863 (Consulta em 23.07.2020)
6 “What would Keynes do? The pandemic will leave the rich world deep in debt, and force some hard choices”, Economist, 23.04.2020 (https:// www.economist.com/briefing/2020/04/23/ the-pandemic-will-leave-the-rich-world-deep-indebt-and-force-some-hard-choices). (Consulta em 24.07.2020) Tradução nossa.