Carolina Peters
Em sua autobiografia, publicada em 1926, Alexandra Kollontai descreve a repercussão do que talvez seja seu trabalho mais conhecido no Brasil, editado por aqui como A nova mulher e a moral sexual: “Um debate inflamado alastrou-se quando publiquei minha tese sobre a nova moral. […] Minhas teses, minhas ideias sobre sexo e moral, foram amargamente combatidas por muitos camaradas do partido de ambos os sexos, assim como ainda outras diferenças de opinião no partido a respeito dos princípios políticos” (KOLLONTAI, 2007, pp. 74-75). À época da publicação dessas teses sobre a gênese da mulher moderna e a defesa de uma moral proletária próxima à “concepção de mundo do proletariado” aludida por Engels em harmonia com “as necessidades vitais e práticas […] da vanguarda da humanidade” (KOLLONTAI, 2003, p. 30), ela deixava o Comissariado do Povo, equivalente aos nossos ministérios, em razão da discordância com a assinatura do tratado de Brest-Litovsk.
Única mulher no primeiro escalão do recém-formado governo soviético, primeira na história a ser reconhecida como membro de um governo, sua gestão à frente da pasta do Bem-Estar Social foi marcada pela defesa da autonomia das mulheres e do direito de escolha: seja para escolherem ser mães, sendo a maternidade “considerada uma função social e, consequentemente, ser protegida e garantida pelo Estado” (KOLLONTAI, 2007, p. 72), contando ainda com o reconhecimento de direitos iguais para filhos ilegítimos; ou optarem por não ser o aborto foi legalizado na Rússia revolucionária em 1920, e posteriormente proibido por Stalin em 1936.
Pioneira em diversas atividades, Kollontai foi uma mulher de seu tempo, produto das transformações na produção e da ação política de trabalhadoras e trabalhadores, como se lê na análise sensível que nos legou, presente ao longo dos textos que conformam o volume A nova mulher e a moral sexual. As mulheres modernas que Kollontai nos apresenta, tipificadas por ela como “celibatárias” não as que praticam o celibato, mas em tradução frágil do francês célibataire, solteiras são aquelas “que na luta pela subsistência contam apenas com suas próprias forças” (KOLLONTAI, 2003, p. 16), sem mais depender de um homem provedor, fosse o pai ou o marido.
Longe de representar o esforço heroico de “algumas individualidades fortes que tomaram consciência de sua própria personalidade”, a nova mulher emerge entre o ruído das máquinas, “primeiro e, principalmente, nas camadas mais profundas da sociedade, ou seja, onde se produz necessariamente a adaptação ao trabalho, nas condições radicalmente transformadas de sua existência” (KOLLONTAI, 2003, p. 19). Participando ativamente do trabalho, elas experimentam o antagonismo de classe com intensidade infinitamente superior que as mulheres do tipo antigo, cujas vidas se restringiam ao espaço doméstico.
Lembrando a estratégia estilística de Marx, que com frequência recorria à Comédia Humana de Balzac em seus estudos, Alexandra Kollontai mobiliza seu conhecimento literário para ilustrar a força e a pluralidade do novo tipo de mulher que, aos poucos, ganha peso na Rússia do início do século XX:
“A realidade capitalista separa de maneira absoluta a Tatiana, de Gorki, da Tatiana de Nagrodskaia. É esta realidade capitalista que leva a proprietária de uma oficina a encontrar-se, por sua ideologia, muito mais separada de uma de suas operárias do que a boa dona de casa com relação a sua vizinha, a mulher de um operário” (KOLLONTAI, 2003, p. 22).
A importância do tratamento artístico do fenômeno é tal que seu escrito “A nova moral e a classe operária”, de 1918, dedica um longo trecho ao tema, traduzido para o português sob o título “A nova mulher na literatura”, quarto capítulo de A nova mulher e a moral sexual.
Os segundo e terceiro artigos do livro são dedicados a expor as raízes e apresentar soluções para o que identifica, amparada por outros pensadores contemporâneos seus, como a “crise sexual”, resultado de três fatores fundamentais que deformam a psicologia humana para o amor: o egocentrismo; o direito de propriedade sobre o corpo e a alma do outro; e a desigualdade entre os sexos. Estabelecer uma nova moral sexual que se contraponha à moral sexual burguesa, que é baseada no individualismo, na propriedade e na subordinação da mulher ao homem e aumentar o potencial de amor na sociedade são para ela importantes tarefas da classe revolucionária na conquista da sociedade futura.
É uma pena que não contemos no Brasil com traduções minuciosas e estudos profundos de seus trabalhos de análise da sociedade. Retomar seus escritos hoje, quando, por um lado, o movimento de mulheres demonstra internacionalmente sua força e, por outro, o capital incide brutalmente sobre o trabalho feminino para retomar seu processo de acumulação (no Brasil, a terceirização e a reforma da Previdência têm particular incidência sobre as mulheres), deve representar um exercício de reflexão pessoal e coletiva para os revolucionários.
TRECHOS:
“[…] A classe operária necessita, para a realização de sua missão social, de mulheres que não sejam escravas. Não quer mulheres sem personalidade, no matrimônio e no seio da família, nem mulheres que possuam as virtudes femininas passividade e submissão. Necessita de companheiras com uma individualidade capaz de protestar contra toda servidão, que possam ser consideradas como um membro ativo, em pleno exercício de seus direitos, e, consequentemente, que sirvam à coletividade e à sua classe” (KOLLONTAI, 2003, p. 23). “[…] Eu sempre acreditei que inevitavelmente chegará o tempo em que uma mulher será julgada pelos mesmos padrões morais utilizados para os homens, pois não é a sua específica virtude feminina que lhe dá um lugar de honra na sociedade humana, mas o valor da missão cumprida por ela, o valor de sua personalidade como ser humano, como membro da sociedade, como pensadora, como lutadora. Subconscientemente essa foi a força motriz da minha vida e das minhas ações. Fazer as coisas do meu modo, trabalhar, lutar, criar e produzir lado a lado com os homens, e me esforçar para alcançar um objetivo humano universal (por quase 30 anos, de fato, eu pertenci aos comunistas) mas, ao mesmo tempo, dirigir minha vida pessoal e íntima como mulher de acordo com a minha própria vontade e de acordo com as leis da minha natureza” (KOLLONTAI, 2007, pp. 26-27).