Flávio Campos
Como uma propaganda de automóveis apregoava no início de 2013, a rua tornou-se a maior arquibancada do Brasil. Arquibancada ruidosa e rebelde, diversa da monótona e apática torcida brasileira que ocupou os seletivos e excludentes espaços nas novas arenas esportivas nos megaeventos futebolísticos de 2013 e 2014.
Com faixas de protesto, passeatas em avenidas, queimas de pneus, enfrentamentos com policiais e depredações a agências bancárias, a barragem da conciliação de classes foi rompida violentamente por diversos movimentos sociais, muitos deles vinculados à Ancop (Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa), empunhando bandeiras históricas que haviam sido abandonadas em nome da governabilidade e do presidencialismo de coalizão.
Tais ingredientes apimentaram de política o tempero que se pretendia mais palatável e exitoso da agenda esportiva brasileira que se iniciara com os Jogos Pan-Americanos de 2007 e deverá se concluir com os Jogos Olímpicos e a Paralimpíada, ambos de 2016, e todos no Rio de Janeiro. Tal agenda, por sua vez, havia sido viabilizada pelo governo federal e o seu amplo consórcio político, financiada pelo BNDES e pavimentada pelas empreiteiras nacionais.
Hoje, as fotos de autoridades e celebridades emocionadas em Copenhague, em 2 de outubro de 2009, podem parecer miragens. Chorando e pulando de alegria, lá estavam Lula, Sérgio Cabral, Eduardo Paes, Michel Temer, Renan Calheiros, Henrique Meirelles, João Havelange, Carlos Nuzman, Pelé, Guga, Parreira, Paulo Coelho e muitos outros, integrantes de uma imensa comitiva. Na praia de Copacabana, milhares de brasileiros “com muito orgulho”, também estavam emocionados. Há apenas sete anos, Lula “era o cara” e os ventos políticos eram amplamente governistas.
Nos últimos meses a tocha olímpica percorreu o país e, nas frestas da cobertura chapa branca da grande imprensa brasileira, foi possível vislumbrar protestos e manifestações políticas contrárias à realização dos jogos e demandas legítimas das camadas populares. Além, é claro, da significativa ausência de inúmeros atletas.
olímpicos substituídos por celebridades, convidados a participar de uma modorrenta maratona da revista “Caras”. Às vezes, no chão.
Protestos em competições esportivas não se constituem em especificidades de nossa sociedade, tampouco dos tempos atuais. Desde 1896, a despeito de repetidas advertências e de pronunciamentos de dirigentes olímpicos sobre a necessária e obrigatória separação entre política e esporte, diversas competições foram marcadas por situações inversas.
Sem dúvida, o exemplo dos Jogos do México, em 1968, é talvez o mais reproduzido em imagens, celebrizando os gestos de Tommy Smith e John Carlos, de punhos fechados e erguidos, com luvas pretas, no pódio dos 200 metros rasos, durante a execução do hino dos EUA e o hasteamento das bandeiras. Como é bem conhecido, a alusão aos Panteras Negras e à luta contra o racismo custou-lhes as medalhas olímpicas, mas não foram as únicas tensões políticas daquela competição.
Antes do início dos Jogos, o Comitê Olímpico Internacional havia convidado a África do Sul, revendo a proibição estabelecida a partir dos jogos de 1964, como retaliação ao regime do apartheid. Tal iniciativa, contudo, provocou forte reação internacional, que culminaria no cancelamento do convite.
Dez dias antes da abertura, milhares de estudantes mexicanos participaram de uma intensa onda de protestos contra a realização dos jogos, contra a estrutura social do país e contra a invasão de duas universidades por forças militares. Concentrados na Plaza de las Tres Culturas, os manifestantes foram atacados por soldados fortemente armados. Estima-se no mínimo em 300 o número de mortos no episódio que ficou conhecido como “o massacre de Tlatelolco”.
Quatro anos antes, em Tóquio, a cerimônia de abertura ofereceu um protesto mais discreto, mas não menos contundente. A pira olímpica foi acesa pelo jovem corredor Yoshinori Sakai, nascido em 6 de agosto de 1945, na localidade de Miyoshi, em Hiroshima, no mesmo dia em que a bomba atômica Little Boy foi lançada pelas forças militares estadunidenses. A emocionante cerimônia de abertura lembrava as atrocidades da Segunda Guerra Mundial no contexto da Guerra do Vietnã.
Momentos mais dramáticos transcorreram em 1972, em Munique, com o ataque do grupo palestino setembro Negro à Vila Olímpica, matando dois integrantes da delegação de Israel e mantendo outros nove como reféns. Os jogos só foram interrompidos com o desfecho trágico que culminou com a desastrosa operação da polícia alemã. No total, 11 integrantes da delegação israelense, cinco terroristas e um policial foram mortos.
Tensões nacionalistas e boicotes provocados pelas mais variadas motivações verificaram-se ao longo dos 120 anos de Jogos Olímpicos da Era Moderna. Mas, sem dúvida, os jogos de Berlim, em 1936, provocaram os maiores constrangimentos para os defensores da neutralidade política nas competições esportivas.
Uma forte campanha internacional havia defendido o boicote aos jogos nazistas. O movimento mais contundente ocorreu na Espanha, cujo governo chegou a planejar a Olimpíada Popular, prevista para se realizar entre 19 e 26 de julho de 1936. Todavia, os acontecimentos políticos que levaram à eclosão da Guerra Civil Espanhola, em 18 de julho, impediram a realização dos Jogos Populares, cujo cartaz reproduzimos abaixo.
Por decisão pessoal, atletas judeus de vários países boicotaram os jogos nazistas. Nos Estados Unidos, o Congresso Judaico Americano e o Comitê Trabalhista Judaico empreenderam uma forte campanha de boicote, enfraquecida com a decisão do Sindicato dos Atletas Amadores dos Estados Unidos de participar dos Jogos.
Enquanto os protestos se ouviam em diversas partes do mundo, as autoridades nacionais de 32 países e o Comitê Olímpico Internacional concordaram em participar do espetáculo nazista. No caso da Inglaterra, tratava-se da conivência com as recorrentes violações de tratados internacionais e da militarização empreendida pelo governo alemão, que permitiram a anexação da Áustria e dos Sudetos e que desembocaria na invasão da Polônia.
As autoridades esportivas internacionais contentaram-se com as imagens oficiais e não ousaram condenar o regime nazista, em nome da separação entre esporte e política. No seio da nação germânica governada pelos nazistas, como nunca antes, esporte e política estiveram intrinsecamente vinculados.
Ao final dos XI Jogos, o Barão de Coubertin saudava o povo alemão pela realização e anunciava alvíssaras para as competições que se desenrolariam no Japão, “nas longínquas margens do Pacífico”, em 1940. O barão faleceu em 1937 e foi poupado de acompanhar as competições bélicas que ocorreram no Pacífico e em diversas outras partes do mundo. A guerra, uma vez mais, paralisaria os jogos de 1940 e de 1944.
No caso brasileiro, retomando os Jogos Olímpicos de 2016, estabelece-se uma irônica sobreposição temporal, que também escapou ao planejamento de seus organizadores. O período do advento da abertura oficial dos jogos vai coincidir com o desfecho do ciclo de governos petistas no plano federal. A sonhada apoteose olímpico-política parece ter se transformado no pesadelo da emergência das forças reacionárias que desfilaram em parceria com o lulismo desde 2003.
Se tal quadro vier a se confirmar, nas fotos da tribuna das autoridades, possivelmente, estarão registrados Michel Temer, Eduardo Paes, Renan Calheiros e Henrique Meirelles. A maior parte do público estará elegantemente fardada de verde-amarelo. A tocha irá incendiar a pira olímpica, e poderia ser empunhada, nesse momento de glória, por Eduardo Cunha*. Haveria no gesto, muita coerência.
Independentemente do programa oficial e das celebridades presentes, vale a pena retomar e ressignificar as palavras de ordem das manifestações populares: “Vai ter jogos. Vai ter luta!” e, principalmente, “Fora Temer!”.
Flávio Campos é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e coordenador científico do Ludens (Núcleo de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP).