Flávio Rocha de Oliveira
A epidemia global do novo coronavírus afeta o planeta em vários âmbitos: sanitário, social, econômico e político. Desde o momento em que as primeiras informações deram conta de que um vírus havia surgido na China, até à situação de pandemia no final de junho, mais de 9 milhões de casos foram diagnosticados, com cerca de 500 mil mortes nesse período, o que implica, grosseiramente, uma porcentagem de óbitos da ordem de 5,4%. São dados globais e provavelmente alguns países e regiões terão porcentagens ainda maiores, dependendo de vários fatores.
A pandemia causada pela Covid-19 começou e está se desenvolvendo numa conjuntura internacional marcada por uma “nova era” de competição entre as grandes potências. Os três grandes protagonistas são a China, os EUA e a Rússia. Apesar de serem os três atores mais poderosos num agregado de fatores (poder militar, recursos naturais, tamanho da população, presença geopolítica, economia etc.), eles não estão sozinhos nessa disputa. Potências regionais, com variados graus de capacidades, também se tornaram protagonistas: Japão, Coréias, Índia, Austrália, Irã, Arábia Saudita, Turquia e Brasil. A título de informação, apenas alguns têm procurado aumentar a sua influência nos primeiros anos do século XXI. E há, ainda, a existência de grupos sociais e interesses econômicos que agregam complexidade a essa situação.
O contexto imediato
As indicações de que uma cepa completamente nova de um vírus havia sido descoberta na China começaram a ganhar os noticiários em dezembro de 2019. Um mês depois, a China já havia reconhecido a extrema gravidade do problema. No dia 23 de janeiro, o governo central decretou um lockdown em Wuhan, o epicentro da epidemia, e em outras cidades vizinhas. Essa medida afetou diretamente cerca de 57 milhões de habitantes. A título de comparação, a Colômbia possui cerca de 49 milhões de habitantes, ou seja, Beijing colocou em quarentena forçada um número de pessoas maior do que o número de habitantes do nosso vizinho sul-americano.
Ao conseguir ser bem-sucedida em estancar o número de mortes dentro de suas fronteiras, a China vai além: como é o grande centro produtor de manufaturas no mundo, e inclusive de produtos de saúde, ela alia essa posição singular com a experiência de política pública emergencial no caso da Covid-19 e passa a oferecer ajuda aos países europeus, com destaque para a Itália, e a outros governos.
O coronavírus se propaga rapidamente fora da China. Quando chega a Europa, o mundo assiste ao impacto que a expansão da doença tem sobre os sistemas de saúde na Itália, Espanha, França e Reino Unido, para citarmos apenas alguns. Isso acontece entre fevereiro e abril com velocidades crescentes. Também, deve-se levar em conta que a prevalência do vírus se concentra mais em algumas regiões desses países do que em outras.
O vírus na América
Segundo matérias nos principais jornais norte-americanos, como o New York Times, o governo Trump já possuía oficialmente informações sobre a gravidade da Covid-19 em 3 de janeiro de 2020. Somente no último dia do mês é que começaram as restrições de entrada de pessoas vindas da China, mas o mesmo não se aplicou aos cidadãos estadunidenses provenientes daquele país.
O presidente Trump minimizou o perigo do vírus até o dia 27 de fevereiro, nas entrevistas dadas e na conta na rede social Twitter. Vale a pena lembrar que, do final de dezembro de 2019 até fevereiro de 2020, o Departamento de Estado e o Pentágono estavam concentrados numa confrontação com o Irã. Em dezembro houve um ataque contra bases americanas dentro do Iraque, e em 6 de janeiro os estadunidenses assassinaram o General Suleimani, da Guarda Revolucionária Iraniana, que havia ajudado a conter, por terra, o Estado Islâmico (ISIS). Os próprios EUA começaram a advertir o Irã de que poderiam escalar as ações militares contra o país na região do Golfo Pérsico.
Em 29 de fevereiro, morreu, oficialmente de coronavírus, a primeira pessoa no território americano, apesar de haver informações dando conta que a primeira vítima da doença havia falecido 23 dias antes.
Segundo o New York Times, nesse período, cerca de 40 mil pessoas provenientes da China circulavam pelos EUA. Em 17 de março já eram 100 pessoas oficialmente diagnosticadas, e no dia 20 de março apenas a cidade de Nova York já confirmava 5,6 mil casos. No dia seguinte, o Departamento de Saúde (Governo Federal) fez um requerimento em larga escala de máscaras N95, ou seja, entre 3 de janeiro e 21 de março, foram mais de dois meses perdidos pelo governo enquanto o vírus se disseminava entre a população estadunidense.
Reação dos mercados
Enquanto isso, os mercados também foram impactados, com um crash na bolsa de Nova York no final de fevereiro, motivado também pela crise do coronavírus.
No dia 3 de abril, o Departamento do Trabalho indicava que o desemprego havia chegado a 13%, sinalizando que o país e o mundo poderiam estar a caminho de uma grande depressão pior do que a de 1929.
Com o avanço da epidemia, declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março, as desigualdades existentes entre os países e dentro dos países ganharam destaque. Desigualdades no tocante ao poder político, a capacidades econômicas e tecnológicas e as divisões entre as classes sociais e as etnias são escancaradas. Fica evidente que mesmo Estados que já fizeram o básico em termos de saúde pública, como Itália e França, têm o sistema vergado sob o peso da expansão da doença. E fica mais claro ainda que os EUA são lentos na reação inicial e têm que lidar com essas desigualdades brutais dentro da própria população, que dificulta a identificação dos infectados. A natureza do sistema de saúde norte-americano privado impede ou desestimula a população menos abastada a procurar por ajuda ou por testes para identificar se são portadoras do vírus.
Confusa reação de Trump
Como observado, o governo Trump demorou a reagir à doença. Quando o fez, foi de forma totalmente egoísta e voltada para a satisfação dos próprios interesses. Surgiram, na imprensa europeia e estadunidense, informações que davam conta de que o governo federal e os governos estaduais começaram a sair a campo para comprar suprimentos médicos e respiradouros do único grande fornecedor global, a China. Utilizaram a grande capacidade de compra, mais o peso geopolítico, para atravessar acordos prévios de aquisição feitos por governos de países aliados, como Alemanha e França. Também foi amplamente notado por analistas e observadores na cena internacional que os Estados Unidos se esquivaram de liderar qualquer esforço de resposta conjunta aos efeitos da pandemia, o que terminou abrindo espaço para a diplomacia de países rivais, como a própria China e mesmo Cuba.
A Batalha de Narrativas
O fato é que a resposta doméstica estadunidense foi desordenada na comparação com a reação chinesa. E o governo Trump tratou de politizar a questão, e passou para o ataque contra a China.
O dirigente estadunidense e o secretário das Relações Exteriores, Mike Pompeo, tentam emplacar o nome “vírus chinês” com o intuito de causar prejuízos à imagem do país asiático. Os EUA começaram a acusar Beijing de ter, propositalmente, escondido informações sobre a propagação do vírus no território durante a fase inicial, tendo contado com a cumplicidade da OMS para isso. O vice-primeiro ministro japonês, Taro Aso, já havia feito tal acusação contra a Organização Mundial da Saúde antes dos EUA, ou seja, um aliado de Washington fez um tipo de declaração que se inseriu numa batalha de narrativas em torno da Covid-19. Em março, o presidente norte-americano começou a ameaçar o órgão da ONU com o desligamento dos Estados Unidos.
A China rechaçou essas afirmações. Antes, porém, a diplomacia russa manifestou-se em defesa de Beijing e criticou a posição estadunidense em 12 de abril, num comunicado do próprio chanceler russo, Sergei Lavrov. O comunicado elogiava a OMS e dizia que ela estava agindo de acordo com as linhas de orientação, respeitando todos os países membros. Sem adotar meias palavras, o governo russo disse que os EUA estavam tentando desviar a atenção da opinião pública do fato de que haviam cometido erros grosseiros no tratamento da pandemia.
O Porta-Voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Zhao Lijian, saudou a posição russa e tratou de apresentar a China como um líder internacional no combate ao coronavírus. Ao mesmo tempo, atacou os EUA por politizar qualquer forma de cooperação antipandemia e foi além. Disse que os chineses estavam prontos a trabalhar com a OMS, a Rússia e qualquer país no sentido de conter os efeitos do novo coronavírus. O Secretário Geral da ONU, Antônio Guterres, saiu em defesa da OMS contra as acusações norte-americanas. Os chineses também começaram a acusar os norte-americanos de terem levado o vírus para seu território durante os jogos militares que ocorreram em Wuhan no final de 2019, o que contribuiu para elevar ainda mais a tensão com os Estados Unidos.
O efeito duradouro
O Coronavírus já tem um efeito que pode se tornar duradouro na política internacional: a imagem dos EUA como líder hegemônico sai arranhada por conta da atuação, que foi oscilante e na qual abriram mão de toda e qualquer liderança. Isso se deu principalmente pelo fato de não terem ensaiado nenhuma forma efetiva de apoio aos aliados europeus. Em contrapartida, a China conseguiu dar uma resposta efetiva na contenção da Covid-19 dentro de suas fronteiras, além de usar sua singular situação econômica para oferecer ajuda a países necessitados, como foi o caso da Itália.
Todavia, mesmo tendo sido bem sucedida, paira a dúvida sobre a transparência das informações veiculadas pelo governo chinês nas fases iniciais do problema. Não é impossível que governantes em níveis regionais (cidades e províncias) e, mesmo, no plano nacional, tenham tentado segurar informações, enquanto tomavam ciência da situação. Se isso ocorreu de modo a evitar pânico ou porque houve uma decisão de não veicular a informação por conta da situação política doméstica e internacional (estavam ocorrendo os protestos em Hong Kong, há a situação no Xingiang e disputas geo-econômicas com os EUA e territoriais no Mar do Sul da China), é algo que ainda precisa ser elucidado.
Minar a imagem da China
Ao mesmo tempo em que a liderança estadunidense simplesmente não opera, também se observa que há um esforço acentuado do governo Trump para minar a imagem da China. Pesquisas feitas nos EUA em abril pelo Pew Research Center indicavam que 62% dos entrevistados consideravam a República Popular da China como uma ameaça global aos Estados Unidos. Isso, certamente está sendo usado com objetivos de curto, médio e longo prazo, em que se deve levar em consideração o calendário das eleições presidenciais e os efeitos da competição geopolítica e econômica com Beijing.
A Covid-19 também afetou outra disputa em curso no sistema internacional: a busca por controle ou influência de organizações internacionais. Isso está exemplificado no caso da OMS, com os EUA e alguns aliados acusando a organização de ser conivente com a China.
Tão logo os norte-americanos lançaram a ideia de que poderiam se retirar da Organização Mundial da Saúde, Beijing tratou de aumentar a contribuição financeira. Ao longo dos próximos anos, veremos essa disputa se acirrar, com a China e alguns países pressionando ainda mais pela reforma de importantes organizações e acusando os EUA e os aliados (principalmente a Europa Ocidental e o Japão) de tentarem manter o controle que têm sobre elas desde o final da II Guerra Mundial.
Poderemos assistir a uma aproximação ainda mais forte entre a Rússia e a China por conta da atuação dos Estados Unidos. Essa aproximação tem uma lógica econômica fundada na questão energética (necessidades chinesas e recursos russos abundantes) e na questão geopolítica (conter o excesso de poderio americano em termos militares e econômicos). No meio, poderemos ver, também, a uma rearticulação de todo um leque de alianças regionais, com países tentando se posicionarem diante dessa aproximação sino-russa em reação à política externa estadunidense. Nesse último aspecto, ressalte-se que os EUA têm uma vantagem estratégica de peso: a maioria das demais potências econômicas e militares do mundo é, de alguma forma, aliada do dispositivo geoestratégico norte-americano, ou tem interesses em conter a China. No primeiro caso, temos países como Japão, Austrália, Grã-Bretanha e França. No outro grupo, destacam-se a Índia e o Vietnã.
Os efeitos do Coronavírus afetarão os países do chamado Sul-Global e como eles se posicionarão nessa competição entre as três grandes potências. A esmagadora maioria desses países tem problemas econômicos e sociais muito sérios, agora agravados pela pandemia. Há regiões com sistemas de saúde precários que buscam lidar com outras epidemias (sarampo, dengue, febre amarela), como é o caso de Estados africanos e latino-americanos.
E o Brasil?
A situação internacional de competição entre as grandes potências já estava se manifestando no Brasil. Desde as eleições de 2018, o presidente Jair Bolsonaro tenta realizar um processo de alinhamento com a política externa norte-americana. O acordo em torno do uso da Base Aeroespacial de Alcântara, por exemplo, está totalmente inserido na competição que os Estados Unidos têm com a China. Nessa disputa, a tecnologia é um setor-chave no qual os EUA e seus aliados tentam resguardar a sua posição de criadores mundiais de padrões frente a uma China que tenta se inserir como uma desafiante nesse jogo.
O setor aeroespacial é visto pelos dois contendores como parte vital dessa disputa, e a base brasileira está, simplesmente, localizada no melhor ponto do planeta para o lançamento de cargas espaciais. A assinatura da cooperação, nos marcos em que foi feita, é uma declaração do governo Bolsonaro de que está tomando partido dos interesses estadunidenses.
Não é só nesse exemplo que o governo brasileiro começa a realizar uma política externa subserviente. Em várias reuniões em órgãos internacionais, o Brasil sempre procura se alinhar com o governo Trump. O chanceler Ernesto Araújo dá constantes declarações fustigando a China, sendo que em maio ele emitiu um parecer aconselhando o presidente Bolsonaro a adiar o leilão do 5G de modo a favorecer interesses estadunidenses em detrimento da chinesa Huawei. O mesmo ocorre com membros do governo brasileiro, que sempre tratam de criticar em termos duros o governo chinês.
Isso vem junto com uma política doméstica de negação da importância da doença, feita pelo próprio presidente da república. Durante o mês de fevereiro, Bolsonaro ecoava qualquer afirmativa do presidente Trump minimizando a gravidade do Coronavírus. Quando o dirigente norte-americano começou a mudar de posição, Bolsonaro permaneceu em negação.
Um dos resultados imediatos foi que o Brasil perdeu tempo precioso em comprar suprimentos médicos como máscaras e respiradouros da China. Além disso, o governo brasileiro tratou de solapar as bases das relações especiais que haviam sido construídas com Beijing nos governos anteriores, e que mesmo o governo Temer tentou manter após o golpe de 2016. Sob o impacto da Covid 19, começam a ser mostrados os limites da Política Externa Brasileira nessa nova era de competição entre as grandes potências.