Márcio Farias
A psicologia enquanto ciência é fruto da intensificação do processo de alienação/estranhamento humano capturado por Karl Marx (1818-1883), ainda no início do século XIX, quando do triunfo burguês e da consolidação do capital. Essa intensificação do mal-estar humano diante do projeto civilizatório do capital ocorre quando da transição de um capital de base concorrencial para um capital monopolista e imperialista. Esse descompasso entre indivíduo e sociedade foi apreendido com excelência pela psicanálise freudiana que pressupunha, em sua versão original, a recordação e a elaboração dos traumas vivenciados como saída para minimizar o sofrimento psíquico dos indivíduos, evitando a compulsão, a repetição e a paralisia.
Por sua vez, essas novas veredas do capitalismo foram captadas por aquele que foi o principal expoente político e teórico da Revolução Russa, Vladimir Ilyich Ulyanov Lenin (1870-1924), em seu célebre texto Imperialismo: fase superior do capitalismo (1916). Já a Revolução Russa caiu em certo descrédito quando da derrocada da URSS, na década de 1980, e virou uma espécie de martírio para os marxistas de todo o mundo, muito por conta dos descaminhos stalinistas e da propaganda contra ofensiva da mídia internacional burguesa de envilecimento desse processo revolucionário que consolidou e levou a cabo a primeira negação do capitalismo. A ampla esquerda de orientação marxista, ao longo do século XX, atribuiu a si uma penitência constrangedora que reafirma, em muitas situações, a negação dessa revolução política e, indiretamente, da teoria marxista enquanto instrumento teórico e político imprescindível para as lutas por emancipação de que o mundo contemporâneo necessita.
Esses processos se apresentam não sem contradições, por isso, uma digressão e uma ressalva são de bom tom neste momento. Sobre a digressão, de um lado, a psicanálise enquanto ciência burguesa teve metamorfoses e, talvez, a psicoterapia breve seja a maior expressão dessas mudanças. Definida como um tratamento psicológico com foco e tempo determinado, pressupõe certa maturidade subjetiva do paciente, pois nesta modalidade terapêutica caberá ao analista identificar um conflito central e ajudar o paciente a trabalhá-lo, com vias de pensar na resolução da dada conflitiva central e aqui a metáfora perfeita para a discussão proposta que ao ser atingida interfere nas demais conflitivas, tal como um efeito carambola, como no bilhar, em que é possível acertar uma bola e levar outras para a caçapa.
A Revolução Russa, além do legado político e histórico, é donatária de um cabedal teórico que subsidiou e subsidia a análise concreta de realidades concretas, desiguais e combinadas, apreendidas nas suas determinações particulares, em que pesem especificidades, mas que logram a superação do julgo neocolonial e imperialista. Como um efeito carambola, esses revolucionários pensaram a luta internacional a partir da Rússia no mundo.
Neste ponto, o pensador peruano José Carlos Mariátegui (1895-1930) é certeiro. Ele foi um entusiasta de primeira ordem da Revolução Russa. Sua apreciação do processo russo é bastante plausível quando da sua afirmação sobre a importância da revolução socialista para o gênero humano:
O socialismo, em suma, tão satirizado e acusado de materialista, vem a ser, desse ponto de vista, uma reinvindicação, um renascimento de valores espirituais e morais oprimidos pela organização e pelos métodos capitalistas. Se na época capitalista prevaleceram ambições e interesses materiais, na época proletária suas modalidades e instituições se inspirarão em interesses e ideias éticos (Mariátegui, 2011, p. 142).
Essa espécie de ode ao socialismo tem com referência não só o processo político em curso, uma vez que este excerto pertence a um texto dos anos de 1920, mas, sobretudo as inspirações teóricas legadas por Leon Trotski, Lunacharsky, Grigori Zinoviev, entre outros. Sendo signatário desta tese, entendo ser a Revolução Russa um corolário de militantes e intelectuais que escreveram obras clássicas para a luta revolucionária de todos os povos explorados e oprimidos.
Sobre a ressalva, é importante recuperar a ideia desenvolvida por Perry Anderson no livro Considerações sobre o marxismo ocidental. Em linhas muito gerais, o marxismo ocidental se caracteriza por uma guinada filosófica e acadêmica de seus expoentes como tentativa de revalidar o marxismo enquanto teoria social contrapondo-se à vulgata stalinista. Dentre os vários caminhos seguidos pelos diferentes autores, existem aqueles que se orientaram por um retorno aos textos de Marx e Engels, impulsionados pelas descobertas de clássicos até então inéditos, como por exemplo o texto A ideologia alemã (1845-1930), mas também na busca de discernir aquilo que foi desvio degenerado do marxismo oficial e daquilo que era de fato apreensão e proposta analítica de Marx e Engels.
Outros seguiram caminhos mais heterodoxos, na tentativa de conciliar outras perspectivas teóricas que complementariam lacunas existentes nas bases marxistas. Ainda houve os que seguiram caminhos de negação e rechaço ao marxismo e orientaram-se por novas perspectivas. Ainda que muito diverso, em geral, “o marxismo ocidental” esteve distante dos grupos políticos e tradicionais ligados à classe trabalhadora.
Esses fluxos e influxos permitiram o crescimento de abordagens ligadas ao amplo pensamento convencionado como pós-moderno, cuja caracterização é difícil, uma vez que não se trata de uma escola, mas sim de um “espírito do tempo contemporâneo. Mas pode ser identificado como intensificação do irracionalismo no pensamento burguês europeu pós Segunda Guerra Mundial, amparado naquilo que ficou conhecido como virada linguística, momento em que prevaleceu uma orientação para as ciências humanas, de forma geral, na apreensão dos signos, significados, sentidos, representação etc, etc, etc que partiam do rechaço ou da negligência ao trabalho, à economia política e à totalidade como fenômenos e categorias de análise. Ao invés das relações sociais de produção, entraram as relações de poder. No lugar do trabalhador vieram o oprimido e suas derivações. Em suma, o mundo virou um teatro onde os atores sociais devem ser protagonistas e representarem suas agruras e resistirem ao invés de revolucionarem as relações de produção e, consequentemente, o modo de produzir a vida. Assim sendo, essas vertentes epistemológicas vêm dando respostas às bandeiras de movimentos sociais importantes.
Por isso, é preciso separar o joio do trigo. O fato de a apreensão teórica que subsidia a luta de amplos setores progressistas contemporâneos estar alicerçada nessas correntes pós-modernas não elimina a importância de suas pautas políticas. Em outras palavras, o fato de o guerreiro estar enfrentando um exército armado com lanças e flechas, contra canhões e armas de fogo do oponente, não diminui a importância e nem a necessidade desse enfrentamento.
Em geral, os “temas marginais no marxismo, como raça, classe, gênero ou ecossocialismo são menos frutos da negligência ou da impossibilidade de pensá-los pelos clássicos marxistas, e muito mais fruto do dogmatismo e da falta de leitura por parte dos quadros dirigentes da esquerda socialista. Por isso, é preciso uma retomada ortodoxa e não dogmática desse processo, conferindo quais eram os desafios e as condições de previsibilidade e governabilidade que estavam postos para a concretude desses sujeitos revolucionários e, na mesma medida, quais foram os saltos qualitativos que nos são caros ainda hoje.
Neste momento, quero me ater às contribuições teóricas da supracitada obra Imperialismo: fase superior do capitalismo e seu “efeito carambola” no “tema marginal” para o quadro médio da esquerda mundial, tal como as lutas por independência no continente africano.
É Lenin a maior referência teórica desse processo de revolução política. A amplitude de seus escritos abarca temas muito diversos. No Imperialismo: fase superior do capitalismo, um dos mais importantes livros de economia política do século XX, Lenin apontou para as novas veredas do capitalismo, outrora concorrencial, naquele momento monopolista e imperial, uma vez que, entre o fim da segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foi o período em que se conformou a fusão entre capital industrial e financeiro, sob a batuta astuta do último:
Este livro mostra que a guerra de 1914-18 foi, de ambos os lados, uma guerra imperialista (isto é, uma guerra de conquista, de pilhagem e pirataria), uma guerra pela partilha do mundo, pela distribuição e redistribuição das colônias, das zonas de influência do capital financeiro etc. (…) (Lenin, 1916(1979), p.10)
Prossegue:
O capitalismo se transformou num sistema universal de opressão colonial e de asfixia financeira da imensa maioria da população do globo por um punhado de países “avançados”. E a partilha deste “saque” faz se entre duas ou três aves de rapina, com importância mundial, armadas até os dentes (América, Inglaterra e Japão) que arrastam consigo toda a Terra na sua guerra de partilha (Lenin, 1916(1979), p.11).
É neste contexto que o território africano é invadido por alguns países europeus, na busca de extração de matérias primas essenciais para as novas demandas do mercado mundial, fazendo uso de força de trabalho superexploração ou às vezes escravizada.
A invasão neocolonial durou algumas décadas, mas já em meados dos anos de 1950 começam os levantes que culminaram no processo de independência política. A gestação desse processo ocorre desde a chegada dos colonizadores europeus, mas é nas décadas de 1930 e 1940, sobretudo nos congressos pan-africanistas que elas são elaboradas. É especial o congresso de 1945, ocorrido em Manchester, na Inglaterra, onde se destaca, entre as lideranças intelectuais presentes, Kwane N’Krumah (1909-1972), ganense e figura ímpar entre os panafricanistas que propuseram um projeto de saída em bloco ao continente africano frente à libertação e à consolidação econômica pós independência.
Em seu livro clássico Neocolonialismo: último estágio do imperialismo (1965), N’Krumah discute um projeto econômico para o continente africano, diante do capital internacional. Recupera as teses de Lenin sobre a característica predatória do capital internacional para com países subdesenvolvidos.
N’Krumah aponta para o desenvolvimentismo urbano e industrial, mesmo que financiado pelo capital estrangeiro o contrapeso seriam as contrapartidas exigidas pelo bloco que diminuiriam o peso do capital central na negociação como projeto de transição e inserção do continente africano na moderna sociedade capitalista. Ainda que se mantenha alinhado política e eticamente ao eixo comunista, para N’Krumah a análise concreta da sociedade africana exigia que a transição e a consolidação de uma independência produtiva fosse um primeiro foco, por todos os meios necessários.
Essa rápida incursão na obra de N’Krumah e sua relação com a analítica geminiana permite uma inferência não causal e que arremata nossa proposta de discussão. Como bem apresentado por Weber Lopes e Renata Gonçalves, Lenin sempre destacou a importância da autodeterminação dos povos e das lutas empreendidas por povos explorados e oprimidos contra o racismo como fonte potencial de luta contra o capitalismo. Inclusive superando limites e resistências nas elaborações sobre campesinos e não europeus de seus pares políticos, como bem ressaltado por Marcos Del Royo, superou e compreendeu determinações extra econômicas que reverberam na economia e na política. Sua produção, ao alcançar a nervura do movimento do real, possibilitou um efeito carambola em temas marginais para o marxismo.
Nas elaborações teóricas contemporâneas para a esquerda marxista, a retomada desses clássicos, tal como Lenin e N’Krumah, podem possibilitar efetivamente um cotejamento mais fidedigno entre passado e presente, criando horizontes de visibilidade mais largos. O conteúdo reprimido da revolução passa, não só pela recordação, mas também pela elaboração. Elaboração de um projeto de transição que compreenda os verdadeiros dramas humanos contemporâneos e, partindo deles, efetive a revolução social que ponha fim aos grilhões do capital.