Por Ana Cristina Carvalhaes e Israel Dutra*
Uma tentativa de golpe militar (ou autogolpe, como preferem alguns) por parte de um presidente eleito e impopular desencadeou, no início deste mês, na longínqua e ao mesmo tempo próxima Coreia do Sul uma mobilização de massas, protagonizada por jovens de 20 a 30 anos, ao som de um hit de um grupo feminino de K-Pop. E por enquanto venceu.
Com a pobreza da cobertura jornalística brasileira (e ocidental) sobre os meandros da vida asiática, as manchetes repentinas passaram a ideia de que tudo foi muito inesperado, sem precedentes, surpreendente, como se nascido por geração espontânea – em outras palavras, uma exceção num mundo que caminharia inexoravelmente para regimes autoritários. No entanto, o golpe frustrado, a mobilização popular e o impeachment do presidente Yoon Suk-yeol, do Partido do Poder Popular (PPP na sigla em inglês, conservador, de extrema direita) são resultado direto de uma crise governamental longa e profunda. A polarização política entre o PPP e o Partido Democrático (social-liberal) vem tornando disfuncional o regime bipartidário de um dos países mais desenvolvidos e culturalmente influentes da região, com uma grande tradição de resistências democráticas e lutas sociais.
Foi o terceiro impeachment da história democrática da Coreia do Sul e, segundo a imprensa asiática e norte-americana, a maior turbulência vivida pelo país desde a redemocratização conquistada na marra, isto é, graças a um multitudinário ascenso operário e popular, em meados dos anos 80, portanto há 40 anos. O atualmente “impedido” Yoon (o sobrenome vem antes do nome) foi eleito presidente em 2022, com uma diferença de 0,7 ponto percentual frente ao candidato do Partido Democrático, Lee Jae-myung. Yoon costumava se comparar a Trump, atacar o feminismo como um dos “males da nação”, elogiar ditadores assassinos do passado e perseguir a imprensa (mesmo a corporativa). No terreno externo, aproximou ainda mais a Coreia dos Estados Unidos e a distanciou da vizinha China, acirrando a eterna rivalidade com a Coreia do Norte.
Desgastado por seu autoritarismo, políticas neoliberais antipopulares, em particular por uma importante crise no setor da saúde, ademais de um escândalo envolvendo um militar morto em ação num operativo de salvamento de inundados, Yoon perdeu as eleições parlamentares em abril deste ano. Ao se ver sem maioria no Congresso, resolveu decretar Lei Marcial, com a qual pretendia governar sem o parlamento e com as Forças Armadas. Deu como desculpa esfarrapada a necessidade de proteger a “ordem constitucional” de ameaças de desestabilização orquestradas por forças “antiestatais”, supostamente a serviço dos interesses da Coreia do Norte. (É tradicional na Península que a direita acuse os opositores de comunistas a soldo da Coreia do Norte.)
O anúncio da Lei Marcial, em 3 de dezembro, foi recebido com tensão no país de 52 milhões de habitantes, que vive sob um regime democrático desde 1987. A medida, que suspendia os direitos básicos de reunião, manifestação, associação e expressão, foi declarada pela última vez durante a crise instalada em 1979, durante o regime militar (1961-1987), depois do assassinato do ditador Park Chung Hee. No ano seguinte, 1980, os militares sob comando do ditador Chun Doo-hwan reagiram a um levante de trabalhadores e estudantes em Gwangju, assassinando 200 jovens. Por isso, em 2024, muitos temeram prisões em massa e repressão a atos políticos.
Este ano, no entanto, a história foi outra: em pouco mais de 12 horas, uma ampla reação popular tomou conta de praças de todo o país, das ruas em torno ao edifício do parlamento em Seul, enquanto os deputados aprovavam – à 1h da madrugada do dia seguinte – um pedido de suspensão da medida. Tudo isso em temperaturas próximas de 0 grau. A Confederação Coreana de Sindicatos (KCUT), um dos principais atores das lutas democráticas e sindicais em décadas passadas, declarou greve geral por tempo indeterminado. Ativistas sindicais se uniram a associações feministas, estudantis e progressistas para realizar manifestações em várias cidades. Calcula-se que, apesar do frio e das proibições da Lei Marcial, os atos chegaram a reunir 300.000 a 400.000 pessoas. Na capital, milhares se reuniram na Praça Gwanghwamun, desafiando as tropas, para denunciar o golpe de estado.
A derrubada da Lei Marcial pelo Congresso obrigou Yoon e seu gabinete a recuarem da Lei Marcial. O ministro de Defesa, também extremamente impopular, pediu demissão, junto a outros membros da cúpula do governo (o chefe de gabinete, o conselheiro de segurança nacional e o diretor de política nacional). O grupo de militares que formou um comando extraordinário para aplicar a lei se dissolveu. As manifestações se acumularam nos dias seguintes, colocando contra as cordas o presidente, cujo impeachment foi colocado em votação por dois sábados seguidos. No sábado 14, segunda ocasião, o partido governante decidiu não se retirar do plenário como havia feito no dia 7. O voto a favor de oito membros do PPP permitiu a aprovação do impeachment de Yoon – que ficou suspenso à espera do veredito final de um Conselho Constitucional conformado por 6 membros.
Vitória da mobilização
Foi a vitória de protestos que não perderam fôlego durante dez dias seguidos. Há quem calcule em mais de um milhão os manifestantes em torno do parlamento no dia 14. A natureza predominantemente juvenil dos atos – entre estudantes e jovens trabalhadores e trabalhadoras – se refletiu nos bastões de LED e celulares que iluminavam as ruas nas noites geladas de vigília, em substituição às velas de 2016 (quando da luta pelo impeachment da presidenta Park Geun-hye, acusada de corrupção) e no coro uníssono da canção “Into the new world”, do grupo de K-Pop feminino Girl’s Generation – que já vinha sendo o hino de protestos estudantis nos últimos anos.
A Lei Marcial foi evidentemente a razão mais imediata das manifestações, mas as raízes da crise política vêm de mais tempo. O governo de extrema direita conservadora acirrou as contradições de todo tipo do capitalismo sul-coreano. Ao longo de seus dois anos de mandato, Yoon Suk-yeol realizou um ciclo de reformas trabalhistas e sindicais ultraneoliberais, retirando os já restritos direitos de uma classe assalariada que em geral tem férias reduzidas, trabalha até 14 horas diárias e tem períodos de experiência sem direitos que podem durar anos. O governo prolongou a jornada de trabalho, em alguns casos, a exaustivas 69 horas semanais (!). Atacou frontalmente o feminismo, a organização de mulheres, ao extinguir o Ministério da Igualdade de Gênero. Não deu resposta satisfatória (em investigação criteriosa e medidas preventivas) ao clamor da sociedade civil contra a tragédia ocorrida em 29 de outubro de 2022 no bairro boêmio Itaewon, de Seul, quando 159 pessoas morreram asfixiadas ou pisoteadas – por excesso na aglomeração – e 195 ficaram feridas. Somente o chefe de polícia de Itaewon terminou no cárcere.
Nos primeiros meses deste ano, uma greve de residentes médicos (12 mil no país), apoiada pelos profissionais seniors do setor, expôs ao mundo a grave crise do setor de saúde sul-coreano: não há médicos suficientes para a ampla rede hospitalar (cerca de 300 hospitais) dar conta do atendimento de uma população que envelhece rapidamente (a população deixou de crescer em 2022). O governo respondeu com repressão aos grevistas, ameaçou com corte das licenças médicas e insistiu na decisão de não ampliar o número de vagas nas faculdades de medicina. Multiplicaram-se os casos de morte por falta de atenção de urgência e emergência, o que transformou o tema no centro de um debate nacional sobre o futuro.
Somando-se a essa fórmula de desastres, o governo viu-se questionado pela falta de transparência das investigações sobre a morte de um militar numa operação de salvamento de vítimas de enchentes (ocorrida em 2023) e tem a primeira-dama acusada de corrupção por ter aceitado uma bolsa de grife caríssima como presente.
Da destruição ao clube dos ricos
Localizada estrategicamente na Península da Coreia, a poucos quilômetros da China, abaixo da irmã e rival Coreia do Norte, o país é uma peça central para os Estados Unidos na disputa pelo Nordeste do continente asiático. Depois da fratricida Guerra da Coreia (1950-1953), entre uma aliança pró-Ocidental (leia-se imperialista) em favor do Sul e a parte Norte do país, dirigida pelos comunistas, apoiada militarmente pelo Exército chinês e politicamente pela União Soviética, restaram 3 milhões de mortes e um território destruído. (Curiosidade histórica: nunca houve armistício, os dois países continuam tecnicamente em guerra, razão pela qual todo jovem coreano cumpre serviço militar de dois anos; nem os meninos do BTS escapam…)
Hoje, a Coreia do Sul é parte da OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), um clube dos países ricos, com a 14ª maior economia do mundo. Seu Produto Interno Bruto avaliado em 1,713 trilhões de dólares (dados de 2023; frente a pouco mais de 2 trilhões do Brasil), a situa atrás da Austrália por uma pequena diferença, mas à frente de países como Espanha e Indonésia.
O contraste entre as situações de meados do século passado para a atual costuma ser explicada, pela mídia corporativa e economistas neoliberais, por meio de um “milagre capitalista”: a execução de um modelo de industrialização voltada para exportações com preços em padrões internacionais e grande investimento em educação. Economistas políticos heterodoxos (entre os quais se situam os marxistas) têm outra visão: a Coreia do Sul deu um salto graças a uma política de Estado desenvolvimentista orientada a criar um processo de acumulação de capital e depois um crescimento baseado em investimentos estatais e privados significativos.
Nos anos 50, com o aval dos EUA, o Estado fez a reforma agrária, deu suporte em crédito, por meio de bancos públicos, à indústria de bens de consumo de baixa tecnologia, criando grupos capitalistas “nacionais” por meio da privatização de grandes empresas herdadas da colonização japonesa (entre 1910 e 1945, a Coreia inteira foi colônia do Japão fascista). Esses grupos se chamam chaebol(s). Você pode pensar que não conhece nenhum, mas LG, Samsung, Hyunday e SK são chaebols, empresas familiares transnacionais. Ao mesmo tempo, à época, o país deu início a um esforço de alfabetização e educação em geral, que ganharia ainda mais peso nas décadas seguintes.
O incentivo às exportações continuou nos anos 60, quando os bancos comerciais foram totalmente estatizados e nasceu um banco de desenvolvimento. Naquela década, a Coreia fez fortes investimento em transportes, comunicações e outros serviços facilitadores das exportações. Nos anos 70, o Estado fez surgir as indústrias pesadas: siderurgia, metal-mecânica, construção naval, eletrônica e produtos químicos.
Àquela altura, o mercado interno fortalecido já garantia uma procura significativa dentro de casa – a chamada demanda doméstica. A falácia liberal segundo a qual a educação explica tudo fica exposta: não haveria onde empregar tal mão de obra bem formada não fossem os investimentos pesados na industrialização e infraestrutura. Juntamente com Taiwan, Cingapura e Hong Kong (então território britânico na China), a Coreia conformou os quatro “tigres asiáticos” de primeira geração, que tiveram papel fundamental na criação de um mercado regional integrado no Leste asiático, antes mesmo que a China desse seu salto capitalista a partir dos anos 90, para catapultar a Ásia à condição de novo polo capitalista.
Choque no mínimo regional
Nos últimos 30 anos, com a revolução digital, o capitalismo coreano transitou para um status em que telecomunicações e informática ganharam peso decisivo, sem falar na indústria cultural e do entretenimento, que invade o mundo com bom cinema, grupos de música pop, culinária, séries televisivas e recentemente um prêmio Nobel de literatura. Foi esse “modelo” de capitalismo bem-sucedido que entrou subrepticiamente em crise nos últimos anos e se viu ameaçado pelos desmandos de Yoon, com desdobramentos ainda imprevisíveis.
Com o presidente impedido, deveria governar o “primeiro-ministro” (que, pelo regime coreano não é indicado pelo Congresso, mas uma espécie de vice com mais atribuições) até que a Corte Constitucional avalie o impeachment e seja possível chamar eleições – para o que este órgão tem de 60 a 90 dias. No entanto, o presidente do partido de Yoon, Han Dong-Hoon, já declarou oficialmente que é ele que determina as políticas governamentais na ausência do presidente eleito – o que a oposição no Congresso e nas ruas já denuncia como um novo e mal-disfarçado intento de golpe.
O impasse institucional agrava as incertezas sobre um país muito importante, tanto econômica quanto geopoliticamente para o funcionamento do sistema interestatal imperialista. A Coreia do Sul vem se somar ao Sri Lanka, Paquistão e Bangladesh na lista de países asiáticos que viveram turbulências importantes no ano que se encerra. Como assinala o New York Times, “o país enfrenta agora uma economia em desaceleração, uma crise das dívidas com habitação, preços dos imóveis inacessíveis e uma série de outros problemas intratáveis”. Talvez sejam esses “problemas intratáveis” do capitalismo a razão da súbita movimentação e politização dos mais jovens – que antes estiveram apáticos frente a um sistema político corrupto e ineficiente, para se tornarem os protagonistas desse dezembro histórico na Península.
Ainda é cedo para tirar lições mais profundas e definitivas sobre o processo sul-coreano. De qualquer maneira salta aos olhos pelo menos a conclusão que só se vencem batalhas contra a extrema direita e seus golpes se houver mobilização.
*Ana Cristina Carvalhaes é jornalista, mestre em Economia Política Internacional e militante do PSOL; Israel Dutra é da Direção Nacional do PSOL e do Movimento Esquerda Socialista (MES).