Adaptação climática antirracista

Por Rede por Adaptação Climática Antirracista*

Eventos climáticos extremos são e serão cada vez mais comuns e intensos. Dados do Sexto Relatório de Avaliação (AR6) de Impacto, Adaptação e Vulnerabilidades do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não deixam dúvidas sobre isso. Não é aceitável, portanto, que grandes chuvas, deslizamentos, enchentes ou fortes secas sejam tratados com surpresa, como desastres imprevistos. Do mesmo modo, não basta se falar vagamente da necessidade de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas: a emergência é global, mas seus impactos são sentidos dentro de estruturas profundamente desiguais nos territórios e localidades.

No Brasil, em geral, é a população negra que vive nas zonas de sacrifício, entendidas como espaços em que o risco e a ameaça são constantes. Aqui é importante reforçar o óbvio: nenhuma pessoa vive em uma zona de sacrifício por tê-la escolhido como local ideal para viver. A ocupação de áreas íngremes, por exemplo, não deveria ser sinônimo de desastre para os mais pobres. Em cidades como São Paulo, há morros ocupados pelas elites econômicas nos quais a fragilidade das condições topográficas foi mitigada por investimentos públicos e privados em infraestrutura. 

Populações negras que vivem nas áreas periféricas, suburbanas, territórios tradicionais, baixadas, ressacas e favelas do país estão vivendo tragédias preveníveis e evitáveis dada a carência de infraestrutura urbana. Essa realidade é produto da lógica da especulação imobiliária, que transforma o direito à moradia, uma necessidade humana básica, em mercadoria. Não se trata, portanto, apenas de uma pretensa falta de planejamento: o risco é produzido pela própria ausência de uma política habitacional destinada à garantia do direito à habitação digna para a população negra e periférica.

Negar o racismo ambiental é negar a realidade da vida nas periferias das grandes cidades e o aumento da fome, que impacta principalmente as pessoas negras. É negar a constante violação dos direitos constitucionais das comunidades, territórios quilombolas, comunidades tradicionais e povos indígenas: grupos que menos contribuem com as causas da crise climática, mas sofrem suas piores consequências. Fechar os olhos para o racismo ambiental é ignorar a própria orientação da colonização na história de urbanização do país, é negar as profundas desigualdades territoriais do Brasil, um Estado racista.

A inação do poder público e do setor privado são consequências diretas desse racismo estrutural. Urge, portanto, reconhecer e entender as desigualdades raciais e territoriais urbanas no contexto de cada região para a formulação e a estruturação de políticas de combate, redução e/ou limitação dos impactos das mudanças climáticas, em atenção as diretrizes do Comitê de Adaptação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC). As circunstâncias exigem que as medidas de adaptação garantam a segurança das populações negras em resposta aos impactos climáticos.

Daí a importância de conceituarmos, defendermos e promovermos uma adaptação climática antirracista, ou seja: o enfrentamento às desigualdades raciais, de gênero, geracionais, sociais, regionais e territoriais, a partir de um conjunto de políticas públicas estruturantes, interseccionais e intersetoriais. Essas políticas devem ter como foco assegurar o bem viver, a proteção das vidas vulnerabilizadas e a conservação dos biomas, através de medidas estruturais e emergenciais que reduzam o impacto dos eventos climáticos extremos para as populações mais vulnerabilizadas.

As políticas de adaptação antirracista, em sua concepção, planejamento, financiamento, implementação, monitoramento e avaliação, devem incorporar os saberes, as soluções e práticas populares, ancestrais e tradicionais, e as especificidades dos territórios. Não é aceitável que haja mobilização somente nos momentos de tragédia, deixando de lado a obrigação legal de garantir uma abordagem sistêmica das ações de prevenção, mitigação, preparação, reparação, resposta e recuperação em desastres, com participação das populações mais afetadas. 

O Relator Especial da ONU Ian Fry, em relatório para a promoção dos direitos humanos no contexto das mudanças climáticas de 2022, indicou, inclusive, que é preciso avançar na operacionalização de sistemas jurídico-institucionais anti-racistas que respondam às perdas e danos decorrentes da crise e da falta de medidas adequadas de adaptação, a partir das demandas dos territórios. Devemos desnaturalizar os desastres e garantir que poder público e privado sejam devidamente responsabilizados: a culpa não é da chuva, das árvores, da lama, da seca ou do fogo.

Além disso, uma real adaptação antirracista implica em desenhar e implementar políticas de longo prazo de democratização do acesso à terra, além de políticas habitacionais, de urbanização e de regularização fundiária destinadas à população negra e periférica para que elas possam se adaptar às mudanças do clima. A elaboração e implementação dessas políticas devem se dar a partir de Planos Comunitários de urbanização e regularização fundiária, com foco na gestão das áreas de risco e adaptação às emergências climáticas dos territórios vulneráveis.

No caso de áreas de risco já mapeadas, é necessária a instalação de sistemas de alertas, tais como sirenes, e o desenvolvimento de planos de fuga em conjunto com as pessoas atingidas; o estabelecimento de centros de monitoramento e a instalação de novas estações meteorológicas para controle de possíveis episódios extremos; além do próprio desenvolvimento de planos de adaptação nas cidades, sob a lente da justiça climática antirracista e em alinhamento com os planos diretores dos municípios, quando existam.

Por fim, urge investigar e responsabilizar empresas pelas perdas materiais e não-materiais que tenham causado em decorrência de suas atividades. O setor privado não pode seguir agindo a despeito do meio ambiente e da sociedade, agravando a crise climática e promovendo desastres socioambientais. Somente transversalizando esforços de adaptação climática antirracista, incidindo inclusive na regulamentação de atividades corporativas e suas devidas responsabilidades, estaremos protegendo toda a população e garantindo vida e dignidade às pessoas mais impactadas pelos eventos climáticos extremos. 

*Criada em 2023 a partir das inquietações de diversos movimentos e organizações diante dos desastres climáticos ocorridos no Brasil no ano anterior. Oficialmente lançada em 2024, a Rede reúne cerca de 40 entidades antirracistas e atuantes no campo socioambiental.

**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.

FLCMF
FLCMFhttps://flcmf.org.br
Fundação do PSOL
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